IV
“DIFERENÇA GENÉRICA ENTRE
OS PRINCÍPIOS DAS FILOSOFIAS DA
NATUREZA
“DIFERENÇA GENÉRICA ENTRE
OS PRINCÍPIOS DAS FILOSOFIAS DA
NATUREZA
DE
DEMÓCRITO E DE EPICURO
“Notas:
“1. Quanto ao fato de este procedimento moral vencer todo o
desinteresse teórico ou prático, encontramos uma estarrecedora prova histórica
na biografia de Marius escrita por Plutarco. Depois de descrever o terrível fim
dos Cimbros, conta-nos que o número de cadáveres era tal que os Massaliotas
podiam utilizá-los como adubo em suas vinhas. Acrescenta que, tendo chovido
posteriormente, esse ano se tornou o mais fértil em vinhos e em frutos. Quais
são as reflexões a que se entrega o nobre historiador a propósito da
desaparição trágica desse povo? Plutarco acha moral que Deus tivesse deixado
morrer e apodrecer todo um nobre povo a fim de dar aos pobres de espírito
marselheses uma rica colheita de frutos. Assim, até mesmo a transformação de um
povo num monte de estrume pode constituir uma ocasião para os deleites do
devaneio moral.
“ 2. Mesmo no que diz respeito a Hegel, é uma prova de
ignorância da parte dos seus discípulos entenderem qualquer determinação do seu
sistema como uma adaptação cômoda, numa palavra, moralmente. Esquecem que ainda não há muito tempo, como se pode
demonstrar de forma evidente a partir de suas próprias obras, eles aderiam com
entusiasmo a todas estas determinações unilaterais.
“Se tivessem sido realmente seduzidos pela ciência que
recebiam já acabada ao ponto de se lhe entregarem de com uma confiança ingênua
e não crítica, qual não seria a sua falta de consciência ao censurarem o seu
mestre por manter uma intenção escondida, ele para quem a ciência não estava
terminada mas sim em devir, e que não descansou enquanto não atingiu os limites
extremos desta ciência. Lançam a suspeita sobre si mesmos e fazem crer que
anteriormente não tomavam a coisa a sério; é seu próprio passado que combatem
julgando combater Hegel. Mas esquecem, ao fazê-lo, que ele estava numa relação
imediata e substancial com seu sistema, ao passo que eles se encontram,
relativamente a este sistema, numa posição de reflexão.
“Que um filósofo cometa uma inconsequência por comodismo, é
compreensível; até pode ter consciência disso. Mas aquilo de que pode não ter
consciência é que a possibilidade de uma tal acomodação aparente tem a sua
origem mais profunda numa insuficiência ou numa compreensão insuficiente do
princípio de que parte. Se tal acontecer a um filósofo, os seus discípulos
devem explicar a partir da consciência
íntima e essencial desse filósofo o que nele
apresentava a forma de uma consciência
exotérica. Desse modo, o que constitui um progresso da consciência é
simultaneamente um progresso da ciência. Não se suspeita da consciência
particular do filósofo; descobre-se a forma essencial dessa consciência,
atribui-se-lhe uma caracterização e um significado determinados e, desse modo,
ela é ultrapassada.
“Aliás, considero esta viragem para a não-filosofia
manifestada por grande parte da escola hegeliana como um fenômeno que
acompanhará sempre a passagem da disciplina para a liberdade.
“Constitui uma lei psicológica o fato do espírito teórico que
se torna livre em si mesmo se transformar em energia prática, sair como vontade do reino das sombras do Amênti e
voltar-se contra a realidade mundana que existe sem ele. (Mas é importante, do
ponto de vista filosófico, especificar-se os diversos aspectos desta relação,
dado que a partir da forma concreta como se efetua esta conversão é possível
remontar àquilo que a provocou e ao caráter histórico e mundial de uma
filosofia. Por assim dizer veremos aí seu curriculum
vitae reduzido ao essencial, levado à
sua caracterização subjetiva). Mas a prática
da filosofia é em si mesma teórica. É
a crítica que mensura da existência
singular à essência, da realidade efetiva particular à ideia. [Optei pela
versão francesa da tradução desta frase]. Mas esta realização imediata da filosofia é, na sua essência mais imediata,
atormentada por contradições: e esta essência, que é sua, toma forma no próprio
fenômeno imprimindo-lhe seu selo.
“Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo dos
fenômenos, o sistema transforma-se numa totalidade abstrata, num lado do mundo
a que se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, ao desejar
realizar-se entra em luta com o Outro. A autossatisfação e a perfeição que a
caracterizavam desaparecem; e o que era luz interior torna-se chama devoradora
voltada para o exterior. Como consequência o devir-filosófico do mundo é
simultaneamente um devir-mundano da filosofia, a sua realização efetiva é a sua
perca e o que ela combate no exterior não é mais do que o seu defeito interior.
É precisamente no decorrer desta luta que a filosofia acaba por cair nas
fraquezas que combatia no seu contrário. Aquilo que se lhe opõe e o que combate
não são mais do que ela própria, encontrando-se os fatores simplesmente
invertidos.
“Este é o primeiro aspecto, o que resulta de considerarmos a
questão de um ponto de vista
puramente objetivo, como a realização imediata da filosofia. Mas apresenta
igualmente um aspecto subjetivo. É a relação do sistema filosófico
efetivamente realizada, com seus suportes espirituais, com as consciências de
si particulares que refletem o seu progresso; é uma consequência da relação que
faz com que a filosofia, na sua realização imediata, se oponha ao mundo, que as
consciências de si particulares tenham duas exigências opostas, uma contra o
mundo e outra contra a própria filosofia.
Com efeito, o que aqui surge como uma relação invertida é para elas uma
exigência e um ato duplos, em contradição consigo mesmos. Libertando o mundo da
não-filosofia, estas consciências libertam-se a si próprias da filosofia que,
enquanto sistema determinado, as acorrentava. Mas como elas só são concebidas
no ato e na energia imediata do desenvolvimento e não ultrapassaram ainda, sob
o ponto de vista teórico, este sistema, apenas se ressentem da contradição
plástica da identidade-de-si-mesma com o sistema; e, não se apercebem de que se
revoltando contra ele, não fazem mais do que realizar lhe efetivamente os
diversos momentos.
“Finalmente, este ser-desdobrado da consciência de si
filosófica se apresenta como a luta de duas tendências que se opõem da forma
mais extrema, e em que uma, a parte (o partido, na versão francesa) liberal, tal qual a podemos designar
genericamente, se atém, como determinação principal, ao conceito e ao princípio
da filosofia, enquanto que a outra defende o não-conceito, o momento de realidade. Esta segunda tendência é a da
filosofia positiva. A atividade da primeira consiste na crítica, isto é, no
voltar-se-para-o-exterior da filosofia, a atividade da segunda é a tentativa de
filosofar ou seja, o ato de se-voltar-para-si da filosofia pois concebe o
defeito como sendo imanente à filosofia enquanto a primeira o concebe como
defeito do mundo que é preciso tornar filosófico. Cada uma delas faz
precisamente aquilo que não quer fazer; e acaba por realizar o que a outra se
propõe. Mas a primeira tem consciência, no seio da sua própria contradição, do
princípio em geral e do seu objetivo. Na segunda surge o capricho, por assim
dizer a loucura, como tal. No que respeita ao conteúdo, só a parte (o partido,
na versão francesa) liberal, a que defende o conceito, pode chegar a progressos
reais, enquanto que a filosofia positiva só consegue elaborar exigências e
tendências cuja forma contradiz o significado.
“Logo, o que nos surge como uma relação invertida e uma
divisão hostil da filosofia e do mundo torna-se em seguida uma cisão da
consciência de si particular contida em si mesma e, finalmente, uma separação
exterior é um ser-desdobrado sob a forma de duas tendências filosóficas
opostas.
“É lógico que surja ainda uma multidão de formações
subordinadas, lamuriantes, sem individualidade, que se abrigam por trás de uma
gigantesca figura filosófica do passado – mas não tarda para que nos
apercebamos do asno sob a pele do leão, pois a voz lacrimejante de um manequim
do passado e do presente transparece, num contraste cômico, sob a poderosa voz
que atravessa os séculos (a de Aristóteles, por exemplo) e da qual ela se
arvorou despropositadamente em arauto; é como se um mudo pretendesse arranjar
voz socorrendo-se de um enorme altifalante – ou como se um liliputiano de
binóculos, instalado num cantinho do traseiro de um gigante, anunciasse ao
mundo, todo maravilhado, a extraordinária perspectiva que alcança de seu punctum visus (ponto de vista), e fazendo os mais ridículos esforços para
explicar que não é no coração palpitante mas na sólida e firme região onde se
encontra que se situa o ponto de Arquimedes (pú stó: no qual devo estar), ponto do qual o
mundo está suspenso por dobradiças. Assim nascem filósofos-cabelos,
filósofos-unhas, filósofos-excrementos, etc., que no homem-mundo de Swedenborg
ainda ocupariam um lugar inferior. Mas, de acordo com a sua essência, todos
esses mini-moluscos caem, como se estivessem no seu elemento, nas duas direções
que indiquei. Quanto a essas, explicarei noutro local e de forma mais completa
as suas relações recíprocas e com a filosofia hegeliana, assim como os diversos
momentos históricos nos quais se verifica este desenvolvimento. ”
Por ter sido um dos capítulos perdidos da tese de Marx é
evidente que ignoramos seu conteúdo. Porém, restaram duas notas escritas do
próprio punho de Marx, quer dizer, expressando o pensamento dele mesmo e são
elas que nos levam a fazer suposições a respeito do assunto do capítulo. Não se
pode dizer que o assunto presente nestas notas seja o assunto de todo este
capítulo, mas, sem dúvida, se pode dizer que parte considerável e, até mesmo,
essencial do capítulo está presente no assunto destas notas.
Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido,
o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento
moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica. “E qual é a moral da história? ” A prova é a
resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus
cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse
uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção
deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar
alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra
rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal
“moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo
humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a
extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.
A segunda nota é bem extensa, mas também começa com este
mesmo interesse teórico e prático focado no tal procedimento moral. A
caracterização deste procedimento moral como acomodação é algo conhecido e é
argumento usado por muitos. Por isso, na segunda nota, a posição crítica de
Marx, aos discípulos de Hegel, que o acusam de agir comodamente, quer dizer, de
acordo com este procedimento, mostra a existência de uma sutileza e/ou de um
rodeio que critica a crítica dos discípulos de Hegel que o acusam de agir tal
qual Plutarco em relação a determinações de seu sistema. Para estes discípulos
Hegel privilegiava umas determinações em detrimento de outras, já que, desse
modo, o seu sistema se mostraria privilegiado em detrimento de outros e seria
festejado. Marx considera que estes discípulos é que receberam o sistema de
Hegel como um sistema vitorioso e privilegiado, estes discípulos é que
aceitaram entusiasmados o sistema de Hegel em detrimento do sistema de outros.
Então, para Marx foram os discípulos que aderiram ao sistema de Hegel como quem
adere à moral da história, quer dizer,
como quem adere ao sistema festejando sua vitória
e privilégio.
E Marx faz esta crítica a partir igualmente de prova histórica, como na prova
histórica do escrito de Plutarco, ou seja, parte dos escritos destes discípulos
quando aderiram a Hegel. Marx considera que estes discípulos não estão
capacitados para criticar Hegel, já que considera que um verdadeiro discípulo
de Hegel, caso aventasse a possibilidade de uma acomodação do seu mestre,
trataria de se aproximar ainda mais do sistema de Hegel para conhecer a própria
consciência de Hegel e, desse modo, compreender aquilo que nesta consciência
permanece isento de crítica do sistema filosófico, quer dizer, permanece
existindo no sistema filosófico como determinação de uma consciência exotérica,
como determinação de uma consciência exterior ao sistema filosófico, portanto,
como determinação não-filosófica presente no sistema como tal porque a
consciência íntima do filósofo autor do sistema chegou no seu limite
filosófico. Então, a tarefa de ir adiante na crítica do que está fora do
sistema filosófico, quer dizer, na crítica do que existe como determinação
não-filosófica ou positiva cabe ao discípulo ou aos discípulos que tenha ou
tenham feito esta aproximação e conhecimento íntimo de seu mestre.
É aí que ele avança para esta passagem da intimidade com a
consciência do autor do sistema para a intimidade com a sua própria consciência
e/ou com as consciências dos demais discípulos que, como ele, estão se voltando
para a crítica do que permanece fora do sistema, para a crítica da
não-filosofia. Noutras palavras, para ir além e avançar o sistema filosófico é
preciso avançar para a crítica do que permanece não-filosófico. Neste sentido é
preciso mudar a crítica do campo filosófico para o campo não-filosófico. E,
aliás, é isto que está acontecendo tanto com os discípulos que acusam Hegel de
acomodação quanto com os discípulos que, à maneira de Marx, conhecem o mestre na
intimidade e respeitam os limites de sua consciência pessoal, quer dizer, sabem
com o mestre o que é aquilo que ele mesmo considerou que estava fora e além dos
limites de sua consciência filosófica íntima.
Ambos estão participando do mesmo movimento de viragem para a
não-filosofia, mas de forma diferenciada. O movimento do qual participam é o
mesmo movimento comum de passagem da filosofia para a não-filosofia, de
passagem da disciplina para a liberdade. Como se explica este movimento comum
dos discípulos de um sistema filosófico de sair da filosofia para entrar na
não-filosofia?
Marx explica o movimento de saída da filosofia para a
não-filosofia como resultante de uma lei psicológica no sentido de uma
consequência necessária do espírito teórico que fica livre em si mesmo, ou
seja, os discípulos que se tornam livres em si mesmos transformam essa
liberdade em energia prática ou em vontade e se lançam na realidade que existe
sem sua liberdade teórica. Porém, estamos vendo uns discípulos se lançando
sobre o mundo por se libertarem do sistema acomodado e suspeito do mestre,
enquanto outros se lançam sobre o mundo depois de alcançar a liberdade mais
completa de desenvolvimento e compreensão do sistema do mestre.
Daí que ele argumente que é preciso especificar mais os lados
desta relação porque dependendo da forma concreta que assume a conversão da
teoria em prática é possível saber aquilo que originou esta conversão e também
ver aí o seu curriculum vitae, à maneira do filme “Ovo da Serpente” de Ingmar
Bergman. Um lado teórico se converte em lado prático porque não vai mais ser
prisioneiro de um sistema falso, acomodado e suspeito, quer dizer, de um
espírito filosófico que não desenvolve a liberdade porque não passa de um
sistema de prisioneiro da falsidade, da acomodação e da suspeita. Outro lado
teórico se converte em lado prático porque chegou ao máximo de liberdade dentro
do sistema filosófico e para usufruir desta liberdade precisa desenvolver e
realizar esta liberdade na prática mundana. Por isso, Marx observa que a prática da filosofia é ela mesma teórica e que é a crítica que mensura se a conversão prática da filosofia está mesmo
realizando e desenvolvendo a teoria da filosofia, quer dizer, mensura se a
conversão da filosofia em prática de existência singular e da realidade efetiva
particular é mesmo a teoria da filosofia, quer dizer, é mesmo a essência ou a
ideia da filosofia. Só que esta mensuração da “realização imediata da filosofia é na sua essência mais íntima
atormentada por contradições e esta essência que é sua toma forma no fenômeno e
lhe imprime seu selo”. Um lado da
conversão é o dos discípulos que rompem com o mestre, por isso, eles pretendem
realizar algo que seja efetivamente uma ruptura com a filosofia do mestre,
logo, algo que seja exclusivamente deles e não do mestre, precisamente porque
estão insatisfeitos com as realizações que fizeram, às quais consideram
consequência de suas prisões teóricas no sistema do mestre; desse modo, se
continuar a aparecer, na realização imediata da conversão da teoria em prática,
aquilo que pode ser chamado de sobrevivências do falso sistema do mestre, então
eles argumentarão que precisam aprofundar o corte epistemológico com a teoria
do mestre para vir a inovar teoricamente na prática, quer dizer, vir a inovar
na prática com a teoria deles próprios discípulos e não mais com a teoria do
mestre.
O outro lado da conversão é dos discípulos que dão
continuidade à liberdade que aprenderam e desfrutaram com o mestre e é por isso
que eles se propõem a levar a prática da liberdade mais adiante, para além da
teoria do sistema filosófico, porque querem mais do que a liberdade teórica do
sistema filosófico, querem a liberdade teórica do sistema filosófico na
liberdade prática fora do sistema filosófico. Estes discípulos trazem
efetivamente para a prática do mundo não-filosófico a realização e a
continuidade da liberdade teórica do sistema filosófico.
Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a
ruptura e o corte epistemológico com o sistema do mestre são aqueles discípulos
ressentidos com o mestre e com o sistema filosófico do mestre.
Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a
liberdade teórica conquistada e desenvolvida pelo mestre e pelo seu sistema são
aqueles discípulos que se satisfizeram e se libertaram com o mestre e com o
sistema filosófico do mestre.
Mas este movimento comum dos discípulos da vontade voltada
contra o mundo se mostra movimento da totalidade abstrata do sistema de Hegel,
que como tal, se opõe ao mundo como um lado do mundo ao qual se opõe outro lado.
Marx caracteriza esta como uma “relação de reflexão”. Ele, antes, disse que os
discípulos, que acusam Hegel de nutrir más intenções, esquecem que Hegel se
encontrava numa relação imediata e substancial com seu sistema, enquanto que os
discípulos se encontram numa relação de reflexão. Hegel se encontrava numa
relação de imediata autossatisfação e perfeição circular com o seu sistema,
enquanto que os discípulos, no seu conjunto, se encontram numa relação de
mediação, seja porque a condição na qual se encontram é a de discípulos,
portanto, uma relação com o sistema mediada pelo mestre e autor do sistema,
seja porque o sistema, no momento ou época dos discípulos, já não é uma totalidade
abstrata que abrange e contém a filosofia e o mundo, mas sim uma totalidade
abstrata, mediada pelo mestre e o mundo do mestre, desenvolvida pelos
discípulos como tal e contra o mundo dos discípulos que ainda não foi mediado
por esta totalidade abstrata. Então, o que vem à tona é a atividade crítica
voltada para o exterior, seja para um “exterior interno”, que é o sistema do
mestre, seja para o exterior propriamente dito, que é o mundo dos discípulos. É
a este último que Marx ainda está se referindo ao descrever o movimento de
conversão do conjunto dos discípulos de um sistema, ressaltando aí que o
defeito que combatem no mundo (que é o mundo dos discípulos) é o mesmo defeito
que possuem na filosofia (estão numa relação mediada com o sistema) “no curso
desta luta” a totalidade abstrata dos discípulos “cai nas fraquezas que ela
combatia como fraqueza no seu contrário, não podendo suprimir estas fraquezas
sem cair nelas. O que se opõe a ela e o que ela combate é sempre aquilo que ela
é ela-própria, encontrando-se os fatores apenas invertidos”. Isso é um
niilismo?! Sim e não. Olhando de um ponto de vista puramente objetivo parece
que sim. Mas, mesmo aí, estamos diante de que fenômeno? Existe um sistema
filosófico de um filósofo cuja prática teórica pura já não satisfaz mais os
discípulos que tratam de convertê-lo em prática teórica prática/impura, quer
dizer, que tratam de converter o sistema teórico em sistema prático. Porque? Porque
a prática teórica dos discípulos não é mais imediata e substancial, quer dizer,
pura prática teórica. Não, antes de tudo eles precisam ser disciplinados pela
prática teórica do mestre, então a prática teórica deles não imediata e sim
mediada pela do mestre nem é livre e sim disciplinada pela prática teórica do
mestre. Eles querem ser mestres, eles querem uma prática teórica imediata e
livre, quer dizer, deles próprios. Ora, o defeito de não ter seu próprio
sistema é dos próprios discípulos e não do mestre e o mundo que não é nem tem
seu próprio sistema filosófico é o mundo deles mesmos discípulos. O mundo
sistêmico do mestre era uma perfeição circular, mas o mundo sistêmico dos
discípulos é a quebra da perfeição circular e a efetivação da imperfeição
circular, a qual, precisa ser percorrida para alcançar a perfeição e/ou a saída
efetiva da circularidade, ainda que, mesmo assim, no fim se afirme a
circularidade: só é possível suprimir as imperfeições ou fraquezas caindo
nelas.
Isto tudo se torna mais compreensível se olhado do ponto de
vista subjetivo, que é o da relação do sistema filosófico, que efetivamente se
realiza, com as consciências de si singulares ou os suportes espirituais
individuais, nos quais aparece seu progresso. Os sujeitos então mostram o progresso do
sistema filosófico, logo, se estão atrasados precisam se entregar ao sistema
filosófico e combater o atraso mundano deles, mas se estão adiantados já se
entregaram ao sistema filosófico e precisam combater o atraso mundano dos
outros que não se entregaram ainda ou suficientemente ao sistema filosófico. Se
estão atrasados precisam se entregar ao sistema filosófico e combater o atraso
deles mesmos e também o atraso dos outros. Se estão adiantados precisam
combater o atraso dos outros, mas também desenvolver o avanço deles mesmos para
além do sistema filosófico. A situação dos atrasados é a de entrega ao sistema filosófico
e combate ao próprio atraso mundano e ao atraso mundano dos outros, então é
muito mais uma situação de conversão sujeito mundano em teoria filosófica do
que do sujeito filosófico em prática mundana. Já a situação dos adiantados é
precisamente a que está em foco aqui no texto de Marx. Porque os adiantados são
os discípulos, quer dizer, os sujeitos filosóficos voltados para converter a teoria
filosófica em prática mundana, quer dizer, os sujeitos filosóficos em sujeitos
mundanos. É aí que entra a avaliação que fazem da sua condição de adiantados,
de modo que se consideram responsáveis pelo avanço do sistema filosófico no
mundo, seja porque acham que já ultrapassaram o sistema, seja porque acham que
precisam realizar o sistema para ultrapassá-lo. Se acham que já ultrapassaram o
sistema, então vão contra ele e a favor da ultrapassagem sistêmica que fizeram,
quer dizer, a favor do sistema deles mesmos. Porém, como o momento deles é o da
conversão, então ainda não ultrapassaram o sistema e se encontram no momento de
realizar o sistema para poder ultrapassar o sistema. Os que acham que já
ultrapassaram o sistema vão contra a filosofia, enquanto sistema hegeliano, e
contra o mundo sem o novo sistema que desenvolvem ou desenvolveram. Os que
avaliam que precisam realizar o sistema hegeliano para ultrapassar o sistema
hegeliano vão a favor da filosofia para ir contra a filosofia enquanto sistema
determinado, por outro lado, vão contra o mundo para poder realizar o sistema
filosófico determinado e, assim, vão a favor do mundo além da realização do
sistema filosófico determinado.
Os discípulos, que desde o início estão num mesmo movimento
de maneira diferenciada, finalmente, nesse processo de conversão da filosofia em
mundo, convertem as duas tendências, do movimento de conversão da filosofia em
mundo, em dois lados do mundo. Desse modo, a filosofia se converte em mundo, via
diferenciação em duas tendências filosóficas antagônicas convertidas em dois
lados do mundo, logo, o mundo, propriamente dito, está suprimido porque foi
convertido pelas duas tendências em dois lados do próprio mundo. E a filosofia,
propriamente dita, que está se convertendo em dois lados do mundo, também está
sendo suprimida no movimento que a converte em mundo, já que as duas tendências
da filosofia se tornaram tendências do mundo.
Mas é aqui e agora que a contradição fica clara, porque as
duas tendências filosóficas aparecem como dois partidos filosóficos. Um partido
é aquele que parte do conceito do sistema filosófico, logo, da compreensão
íntima do sistema filosófico, portanto, parte da compreensão da consciência
íntima do filósofo autor do sistema. O outro partido é aquele que parte do
momento de realidade em oposição ao sistema filosófico, logo, da compreensão do
momento de realidade exterior ao sistema filosófico, portanto, parte da
compreensão da consciência do momento de realidade exterior à consciência do
filósofo autor do sistema filosófico. O partido do conceito se volta para a
atividade de crítica do momento de realidade e o partido do momento de
realidade se volta para a atividade de crítica do conceito. Fazendo a crítica
do mundo o partido do conceito se realiza como prática mundana da filosofia (do
conceito) e fazendo a crítica da filosofia o partido do momento de realidade se
realiza como prática da filosofia positiva (do momento de realidade). Enquanto
movimento geral de conversão da filosofia/teoria em mundo/prática a avaliação
de Marx é que o partido do conceito realiza efetivamente a conversão, quer
dizer, a emancipação/libertação do sistema filosófico na realização prática, enquanto
que o partido do momento de realidade realiza efetivamente a interdição da
conversão. É por isso que Marx diz que este último é o partido do capricho e da
loucura de quem faz exigências e desenvolve tendências cuja forma contradiz o
significado, porque o que faz é realizar a interdição, quer dizer, a
escravização/sujeição do sistema filosófico no eterno retorno da realização teórica.
Marx descreve a si mesmo como membro do partido do conceito e
faz uma descrição que antecipa e prevê a vinda de Nietzsche como membro do
partido do momento de realidade.
Depois, de resumir o percurso do movimento de conversão desde
o início até chegar às duas tendências antagônicas, Marx se refere a “uma
multidão de formações subordinadas, gementes, sem individualidade que se abrigam
por trás de uma gigantesca figura filosófica do passado”, então, ao que parece,
se refere àqueles atrasados que mencionamos antes. Porém, aqui nesta passagem
final existe muito mais coisa do que, em geral, imaginamos ao ler uma conclusão
que sai do elevado para o mais baixo. Porque? Porque o próprio movimento de
conversão da teoria filosófica em prática mundana é um movimento de uma escola
filosófica, logo, de uma multidão que se abriga por trás de uma gigantesca
figura do passado (Hegel) e porque lá na frase final desta passagem final ele anuncia
aquilo que fez com os jovens hegelianos (Bauer & consortes, Proudhon) com
seus livros “A Questão Judaica”, “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã” e “Miséria
da Filosofia”. Ou seja, parte considerável desta multidão subordinada abrigada
por trás de uma gigantesca figura do passado é vista por ele como parte constituinte
do movimento dos jovens hegeliano, melhor, do movimento hegeliano que quer se
converter em mundo. Entre este início e o final ele descreve o grau de pequenez
e falta de individualidade desta multidão subordinada e lamuriante. E, com
isso, ele prevê muito mais do apenas o movimento hegeliano de sua época, porque
antecipa a descrição de “uma multidão de formações subordinadas, lamuriantes,
sem individualidade que se abrigam por trás da gigantesca figura” de... Marx. E
antecipa mais. Antecipa aquilo que Nietzsche chama de ressentimento e de
revolta dos escravos na moral. Ainda que a saída de Marx seja fazer a crítica
destas formações subordinadas para abrir espaço e tempo para o desenvolvimento
da formação do partido do conceito ou da emancipação, enquanto que a de
Nietzsche faz esta crítica com o fim antagônico de abrir espaço e tempo para o
desenvolvimento da formação do partido do momento de realidade ou da interdição.
Marx faz a crítica para tirar esta multidão da interdição na qual se encontra e
Nietzsche a faz para aprofundar e, até mesmo, aniquilar esta multidão na
interdição na qual se encontra, aliás, é nesse sentido que ele é niilista e
também pretende que seu niilismo abra espaço e tempo para que possa ser
criador/criativo. Nietzsche se assemelha ao Plutarco descrito na primeira nota
deste capítulo da tese de Marx, talvez, até, um pouco mais, com a descrição que
fiz da nota sobre Plutarco feita por Marx:
Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido,
o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento
moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica. “E qual é a moral da história? ” A prova é a
resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus
cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse
uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção
deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar
alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra
rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal
“moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo
humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a
extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.
Porque é evidente que aí está o dionisíaco, tão cultuado e
cultivado por Nietzsche, presente como moral
de Plutarco. Além disso, é curioso que este mesmo dionisíaco seja o culto da
Sociedade Dezembrista de Napoleão III e de todos que comemoravam o golpe de
Estado dele (Ver “O Dezoito Brumário”, de Karl Marx, onde se informa que Dionísio
era o deus tutelar da sociedade do lumpenproletariado francês da época).
Se lembrarmos agora que todo o movimento inicial da conversão
da filosofia/teoria em mundo/prática é aquele considerado de um ponto de vista
puramente objetivo, então poderemos entender que o partido do momento de
realidade se fixa neste ponto de vista, logo, também poderemos compreender
Nietzsche como aquele que leva este ponto de vista puramente objetivo até às
suas últimas consequências porque tudo aquilo que nele aparece como niilismo,
exaltação do aniquilamento do humano como ponte entre o animal e o super-homem,
é, enfim, precisamente o que é feito por este ponto de vista puramente
objetivo:
“O que era luz interior vem a ser chama devoradora voltada
para o exterior. Daí resulta como consequência que o devir-filosófico do mundo
é ao mesmo tempo um devir-mundano da filosofia, que a realização efetiva da
filosofia é ao mesmo tempo sua perda, que o que ela combate no exterior é seu
próprio defeito interior, e que é justamente no curso desta luta que ela cai
nas fraquezas que ela combatia como fraqueza no seu contrário, só podendo
suprimir estas fraquezas caindo nelas. Aquilo que se opõe a ela e aquilo que
ela combate é sempre aquilo que ela é ela-mesma. Estando os fatores apenas
invertidos”.
O Dionísio exaltado por Nietzsche é a figura do eterno
retorno, a figura que é inteiramente destruída e que, em seguida, retorna.
Podemos dizer que este é ser divinizado pelo ponto de vista puramente objetivo
da conversão da filosofia/teoria em mundo/prática.
Ainda podemos ver mais nesse ponto de vista puramente
objetivo. Podemos ver aí a tragédia de Édipo-Rei e ainda a posição de
Demócrito. Porém, ainda mais importante, para a compreensão do pensamento de
Marx, podemos ver aí no ponto de vista puramente objetivo aquilo que, aos olhos de Marx, surge na luta de classes entre
a burguesia e o proletariado como a ditadura do proletariado que levará ao fim
das classes.
O ponto de vista subjetivo é aquele assumido pelo partido do
conceito, logo, é o de Marx. É o ponto de vista que realiza efetivamente a
filosofia e, assim, a ultrapassa. É o ponto de vista que aparece explícito na “Introdução
à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. É o ponto de vista, claro, da sua
tese sobre Demócrito e Epicuro, o qual está expresso por este último que, ao
invés de ficar no eterno retorno do atomismo tal qual Demócrito, realiza efetivamente
o atomismo como dissolução que constitui o vir a ser da consciência humana de
si. E este ponto de vista subjetivo, do partido do conceito, quando, aplicado
no tal desenvolvimento da luta de classes, na tal ditadura do proletariado e no
tal fim das classes, aparece como uma atividade do sujeito proletariado que na
luta não mais se limita a tomar o poder, mas se desviando disso, cuida de
desenvolver um poder social, um poder comunitário que é por si mesmo uma
dissolução da máquina de poder do Estado. O grande problema é que o sujeito
proletariado propriamente dito nunca passou desta realização efetiva. Ou seja,
toda tomada do poder, que teve por ponto de apoio e de partida esta instituição
do poder social e/ou comunitário do sujeito proletariado, que veio a ser foi
uma tomada de poder da corrente, tendência ou partido do momento de realidade,
logo, não do partido do conceito que é o do sujeito
proletariado, ainda que possa ter sido do partido do momento de realidade que é
o do objeto proletariado.
Desse modo que fica claro que os supostos avanços dos
marxismos, quer dizer, dos movimentos que se abrigam por trás da figura de
Marx, o qual, por sua vez, era contra o marxismo bem como declarou que nunca
foi marxista, foram avanços do partido do momento de realidade e nunca avanços
do partido do conceito, o qual, por sua vez, quando se efetivou realmente,
nunca foi marxista, nem mesmo, quando se efetivou realmente, com Marx que
carregava o nome que deu origem a esta denominação duma “multidão de formações
subordinadas, gementes, sem individualidade”.
Se ficar claro que o partido do conceito, assumido e
desenvolvido por Marx, é também o do sujeito proletariado, então há de ficar
igualmente claro que o movimento de conversão deste partido em realização
efetiva do conceito ainda não passou dos meros anúncios do movimento de vir a
ser, porque foi sempre substituído no seu desenvolvimento pela interdição feita pelo partido do momento de
realidade que soube usar a insuficiência ou a compreensão insuficiente deste
partido do seu conceito ou princípio para afirmar a suficiência ou a compreensão
suficiente do princípio do partido do momento de realidade.
O partido do conceito e do sujeito proletariado permanece
tendo de enfrentar o partido do momento de realidade e do objeto proletariado,
isto é, se permanecer visando converter seu conceito e subjetividade em
movimento real e objetivo da sua liberdade e continuar visando ultrapassar e suprimir
a realidade e objetividade da sua interdição em dissolvido e ultrapassado movimento
conceitual e subjetivo.