quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

As notas do materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx




               IV

“DIFERENÇA GENÉRICA ENTRE
  
OS PRINCÍPIOS DAS FILOSOFIAS DA 

NATUREZA

DE DEMÓCRITO E  DE  EPICURO


 “Notas:


“1. Quanto ao fato de este procedimento moral vencer todo o desinteresse teórico ou prático, encontramos uma estarrecedora prova histórica na biografia de Marius escrita por Plutarco. Depois de descrever o terrível fim dos Cimbros, conta-nos que o número de cadáveres era tal que os Massaliotas podiam utilizá-los como adubo em suas vinhas. Acrescenta que, tendo chovido posteriormente, esse ano se tornou o mais fértil em vinhos e em frutos. Quais são as reflexões a que se entrega o nobre historiador a propósito da desaparição trágica desse povo? Plutarco acha moral que Deus tivesse deixado morrer e apodrecer todo um nobre povo a fim de dar aos pobres de espírito marselheses uma rica colheita de frutos. Assim, até mesmo a transformação de um povo num monte de estrume pode constituir uma ocasião para os deleites do devaneio moral.


“ 2. Mesmo no que diz respeito a Hegel, é uma prova de ignorância da parte dos seus discípulos entenderem qualquer determinação do seu sistema como uma adaptação cômoda, numa palavra, moralmente. Esquecem que ainda não há muito tempo, como se pode demonstrar de forma evidente a partir de suas próprias obras, eles aderiam com entusiasmo a todas estas determinações unilaterais.


“Se tivessem sido realmente seduzidos pela ciência que recebiam já acabada ao ponto de se lhe entregarem de com uma confiança ingênua e não crítica, qual não seria a sua falta de consciência ao censurarem o seu mestre por manter uma intenção escondida, ele para quem a ciência não estava terminada mas sim em devir, e que não descansou enquanto não atingiu os limites extremos desta ciência. Lançam a suspeita sobre si mesmos e fazem crer que anteriormente não tomavam a coisa a sério; é seu próprio passado que combatem julgando combater Hegel. Mas esquecem, ao fazê-lo, que ele estava numa relação imediata e substancial com seu sistema, ao passo que eles se encontram, relativamente a este sistema, numa posição de reflexão.


“Que um filósofo cometa uma inconsequência por comodismo, é compreensível; até pode ter consciência disso. Mas aquilo de que pode não ter consciência é que a possibilidade de uma tal acomodação aparente tem a sua origem mais profunda numa insuficiência ou numa compreensão insuficiente do princípio de que parte. Se tal acontecer a um filósofo, os seus discípulos devem explicar a partir da consciência íntima e essencial desse filósofo o que nele apresentava a forma de uma consciência exotérica. Desse modo, o que constitui um progresso da consciência é simultaneamente um progresso da ciência. Não se suspeita da consciência particular do filósofo; descobre-se a forma essencial dessa consciência, atribui-se-lhe uma caracterização e um significado determinados e, desse modo, ela é ultrapassada.


“Aliás, considero esta viragem para a não-filosofia manifestada por grande parte da escola hegeliana como um fenômeno que acompanhará sempre a passagem da disciplina para a liberdade.


“Constitui uma lei psicológica o fato do espírito teórico que se torna livre em si mesmo se transformar em energia prática, sair como vontade do reino das sombras do Amênti e voltar-se contra a realidade mundana que existe sem ele. (Mas é importante, do ponto de vista filosófico, especificar-se os diversos aspectos desta relação, dado que a partir da forma concreta como se efetua esta conversão é possível remontar àquilo que a provocou e ao caráter histórico e mundial de uma filosofia. Por assim dizer veremos aí seu curriculum vitae reduzido ao essencial, levado à sua caracterização subjetiva). Mas a prática da filosofia é em si mesma teórica. É a crítica que mensura da existência singular à essência, da realidade efetiva particular à ideia. [Optei pela versão francesa da tradução desta frase]. Mas esta realização imediata da filosofia é, na sua essência mais imediata, atormentada por contradições: e esta essência, que é sua, toma forma no próprio fenômeno imprimindo-lhe seu selo.


“Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo dos fenômenos, o sistema transforma-se numa totalidade abstrata, num lado do mundo a que se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, ao desejar realizar-se entra em luta com o Outro. A autossatisfação e a perfeição que a caracterizavam desaparecem; e o que era luz interior torna-se chama devoradora voltada para o exterior. Como consequência o devir-filosófico do mundo é simultaneamente um devir-mundano da filosofia, a sua realização efetiva é a sua perca e o que ela combate no exterior não é mais do que o seu defeito interior. É precisamente no decorrer desta luta que a filosofia acaba por cair nas fraquezas que combatia no seu contrário. Aquilo que se lhe opõe e o que combate não são mais do que ela própria, encontrando-se os fatores simplesmente invertidos.


“Este é o primeiro aspecto, o que resulta de considerarmos a questão de um ponto de vista puramente objetivo, como a realização imediata da filosofia. Mas apresenta igualmente um aspecto subjetivo. É a relação do sistema filosófico efetivamente realizada, com seus suportes espirituais, com as consciências de si particulares que refletem o seu progresso; é uma consequência da relação que faz com que a filosofia, na sua realização imediata, se oponha ao mundo, que as consciências de si particulares tenham duas exigências opostas, uma contra o mundo e outra contra a própria filosofia. Com efeito, o que aqui surge como uma relação invertida é para elas uma exigência e um ato duplos, em contradição consigo mesmos. Libertando o mundo da não-filosofia, estas consciências libertam-se a si próprias da filosofia que, enquanto sistema determinado, as acorrentava. Mas como elas só são concebidas no ato e na energia imediata do desenvolvimento e não ultrapassaram ainda, sob o ponto de vista teórico, este sistema, apenas se ressentem da contradição plástica da identidade-de-si-mesma com o sistema; e, não se apercebem de que se revoltando contra ele, não fazem mais do que realizar lhe efetivamente os diversos momentos.



“Finalmente, este ser-desdobrado da consciência de si filosófica se apresenta como a luta de duas tendências que se opõem da forma mais extrema, e em que uma, a parte (o partido, na versão francesa) liberal, tal qual a podemos designar genericamente, se atém, como determinação principal, ao conceito e ao princípio da filosofia, enquanto que a outra defende o não-conceito, o momento de realidade. Esta segunda tendência é a da filosofia positiva. A atividade da primeira consiste na crítica, isto é, no voltar-se-para-o-exterior da filosofia, a atividade da segunda é a tentativa de filosofar ou seja, o ato de se-voltar-para-si da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente à filosofia enquanto a primeira o concebe como defeito do mundo que é preciso tornar filosófico. Cada uma delas faz precisamente aquilo que não quer fazer; e acaba por realizar o que a outra se propõe. Mas a primeira tem consciência, no seio da sua própria contradição, do princípio em geral e do seu objetivo. Na segunda surge o capricho, por assim dizer a loucura, como tal. No que respeita ao conteúdo, só a parte (o partido, na versão francesa) liberal, a que defende o conceito, pode chegar a progressos reais, enquanto que a filosofia positiva só consegue elaborar exigências e tendências cuja forma contradiz o significado.


“Logo, o que nos surge como uma relação invertida e uma divisão hostil da filosofia e do mundo torna-se em seguida uma cisão da consciência de si particular contida em si mesma e, finalmente, uma separação exterior é um ser-desdobrado sob a forma de duas tendências filosóficas opostas.


“É lógico que surja ainda uma multidão de formações subordinadas, lamuriantes, sem individualidade, que se abrigam por trás de uma gigantesca figura filosófica do passado – mas não tarda para que nos apercebamos do asno sob a pele do leão, pois a voz lacrimejante de um manequim do passado e do presente transparece, num contraste cômico, sob a poderosa voz que atravessa os séculos (a de Aristóteles, por exemplo) e da qual ela se arvorou despropositadamente em arauto; é como se um mudo pretendesse arranjar voz socorrendo-se de um enorme altifalante – ou como se um liliputiano de binóculos, instalado num cantinho do traseiro de um gigante, anunciasse ao mundo, todo maravilhado, a extraordinária perspectiva que alcança de seu punctum visus (ponto de vista), e fazendo os mais ridículos esforços para explicar que não é no coração palpitante mas na sólida e firme região onde se encontra que se situa o ponto de Arquimedes ( stó: no qual devo estar), ponto do qual o mundo está suspenso por dobradiças. Assim nascem filósofos-cabelos, filósofos-unhas, filósofos-excrementos, etc., que no homem-mundo de Swedenborg ainda ocupariam um lugar inferior. Mas, de acordo com a sua essência, todos esses mini-moluscos caem, como se estivessem no seu elemento, nas duas direções que indiquei. Quanto a essas, explicarei noutro local e de forma mais completa as suas relações recíprocas e com a filosofia hegeliana, assim como os diversos momentos históricos nos quais se verifica este desenvolvimento. ”

Por ter sido um dos capítulos perdidos da tese de Marx é evidente que ignoramos seu conteúdo. Porém, restaram duas notas escritas do próprio punho de Marx, quer dizer, expressando o pensamento dele mesmo e são elas que nos levam a fazer suposições a respeito do assunto do capítulo. Não se pode dizer que o assunto presente nestas notas seja o assunto de todo este capítulo, mas, sem dúvida, se pode dizer que parte considerável e, até mesmo, essencial do capítulo está presente no assunto destas notas.


Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido, o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica.  “E qual é a moral da história? ” A prova é a resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal “moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.


A segunda nota é bem extensa, mas também começa com este mesmo interesse teórico e prático focado no tal procedimento moral. A caracterização deste procedimento moral como acomodação é algo conhecido e é argumento usado por muitos. Por isso, na segunda nota, a posição crítica de Marx, aos discípulos de Hegel, que o acusam de agir comodamente, quer dizer, de acordo com este procedimento, mostra a existência de uma sutileza e/ou de um rodeio que critica a crítica dos discípulos de Hegel que o acusam de agir tal qual Plutarco em relação a determinações de seu sistema. Para estes discípulos Hegel privilegiava umas determinações em detrimento de outras, já que, desse modo, o seu sistema se mostraria privilegiado em detrimento de outros e seria festejado. Marx considera que estes discípulos é que receberam o sistema de Hegel como um sistema vitorioso e privilegiado, estes discípulos é que aceitaram entusiasmados o sistema de Hegel em detrimento do sistema de outros. Então, para Marx foram os discípulos que aderiram ao sistema de Hegel como quem adere à moral da história, quer dizer, como quem adere ao sistema festejando sua vitória e privilégio. E Marx faz esta crítica a partir igualmente de prova histórica, como na prova histórica do escrito de Plutarco, ou seja, parte dos escritos destes discípulos quando aderiram a Hegel. Marx considera que estes discípulos não estão capacitados para criticar Hegel, já que considera que um verdadeiro discípulo de Hegel, caso aventasse a possibilidade de uma acomodação do seu mestre, trataria de se aproximar ainda mais do sistema de Hegel para conhecer a própria consciência de Hegel e, desse modo, compreender aquilo que nesta consciência permanece isento de crítica do sistema filosófico, quer dizer, permanece existindo no sistema filosófico como determinação de uma consciência exotérica, como determinação de uma consciência exterior ao sistema filosófico, portanto, como determinação não-filosófica presente no sistema como tal porque a consciência íntima do filósofo autor do sistema chegou no seu limite filosófico. Então, a tarefa de ir adiante na crítica do que está fora do sistema filosófico, quer dizer, na crítica do que existe como determinação não-filosófica ou positiva cabe ao discípulo ou aos discípulos que tenha ou tenham feito esta aproximação e conhecimento íntimo de seu mestre.


É aí que ele avança para esta passagem da intimidade com a consciência do autor do sistema para a intimidade com a sua própria consciência e/ou com as consciências dos demais discípulos que, como ele, estão se voltando para a crítica do que permanece fora do sistema, para a crítica da não-filosofia. Noutras palavras, para ir além e avançar o sistema filosófico é preciso avançar para a crítica do que permanece não-filosófico. Neste sentido é preciso mudar a crítica do campo filosófico para o campo não-filosófico. E, aliás, é isto que está acontecendo tanto com os discípulos que acusam Hegel de acomodação quanto com os discípulos que, à maneira de Marx, conhecem o mestre na intimidade e respeitam os limites de sua consciência pessoal, quer dizer, sabem com o mestre o que é aquilo que ele mesmo considerou que estava fora e além dos limites de sua consciência filosófica íntima.


Ambos estão participando do mesmo movimento de viragem para a não-filosofia, mas de forma diferenciada. O movimento do qual participam é o mesmo movimento comum de passagem da filosofia para a não-filosofia, de passagem da disciplina para a liberdade. Como se explica este movimento comum dos discípulos de um sistema filosófico de sair da filosofia para entrar na não-filosofia?


Marx explica o movimento de saída da filosofia para a não-filosofia como resultante de uma lei psicológica no sentido de uma consequência necessária do espírito teórico que fica livre em si mesmo, ou seja, os discípulos que se tornam livres em si mesmos transformam essa liberdade em energia prática ou em vontade e se lançam na realidade que existe sem sua liberdade teórica. Porém, estamos vendo uns discípulos se lançando sobre o mundo por se libertarem do sistema acomodado e suspeito do mestre, enquanto outros se lançam sobre o mundo depois de alcançar a liberdade mais completa de desenvolvimento e compreensão do sistema do mestre.


Daí que ele argumente que é preciso especificar mais os lados desta relação porque dependendo da forma concreta que assume a conversão da teoria em prática é possível saber aquilo que originou esta conversão e também ver aí o seu curriculum vitae, à maneira do filme “Ovo da Serpente” de Ingmar Bergman. Um lado teórico se converte em lado prático porque não vai mais ser prisioneiro de um sistema falso, acomodado e suspeito, quer dizer, de um espírito filosófico que não desenvolve a liberdade porque não passa de um sistema de prisioneiro da falsidade, da acomodação e da suspeita. Outro lado teórico se converte em lado prático porque chegou ao máximo de liberdade dentro do sistema filosófico e para usufruir desta liberdade precisa desenvolver e realizar esta liberdade na prática mundana. Por isso, Marx observa que a prática da filosofia é ela mesma teórica e que é a crítica que mensura se a conversão prática da filosofia está mesmo realizando e desenvolvendo a teoria da filosofia, quer dizer, mensura se a conversão da filosofia em prática de existência singular e da realidade efetiva particular é mesmo a teoria da filosofia, quer dizer, é mesmo a essência ou a ideia da filosofia. Só que esta mensuração da “realização imediata da filosofia é na sua essência mais íntima atormentada por contradições e esta essência que é sua toma forma no fenômeno e lhe imprime seu selo”.  Um lado da conversão é o dos discípulos que rompem com o mestre, por isso, eles pretendem realizar algo que seja efetivamente uma ruptura com a filosofia do mestre, logo, algo que seja exclusivamente deles e não do mestre, precisamente porque estão insatisfeitos com as realizações que fizeram, às quais consideram consequência de suas prisões teóricas no sistema do mestre; desse modo, se continuar a aparecer, na realização imediata da conversão da teoria em prática, aquilo que pode ser chamado de sobrevivências do falso sistema do mestre, então eles argumentarão que precisam aprofundar o corte epistemológico com a teoria do mestre para vir a inovar teoricamente na prática, quer dizer, vir a inovar na prática com a teoria deles próprios discípulos e não mais com a teoria do mestre.


O outro lado da conversão é dos discípulos que dão continuidade à liberdade que aprenderam e desfrutaram com o mestre e é por isso que eles se propõem a levar a prática da liberdade mais adiante, para além da teoria do sistema filosófico, porque querem mais do que a liberdade teórica do sistema filosófico, querem a liberdade teórica do sistema filosófico na liberdade prática fora do sistema filosófico. Estes discípulos trazem efetivamente para a prática do mundo não-filosófico a realização e a continuidade da liberdade teórica do sistema filosófico.


Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a ruptura e o corte epistemológico com o sistema do mestre são aqueles discípulos ressentidos com o mestre e com o sistema filosófico do mestre.


Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a liberdade teórica conquistada e desenvolvida pelo mestre e pelo seu sistema são aqueles discípulos que se satisfizeram e se libertaram com o mestre e com o sistema filosófico do mestre.


Mas este movimento comum dos discípulos da vontade voltada contra o mundo se mostra movimento da totalidade abstrata do sistema de Hegel, que como tal, se opõe ao mundo como um lado do mundo ao qual se opõe outro lado. Marx caracteriza esta como uma “relação de reflexão”. Ele, antes, disse que os discípulos, que acusam Hegel de nutrir más intenções, esquecem que Hegel se encontrava numa relação imediata e substancial com seu sistema, enquanto que os discípulos se encontram numa relação de reflexão. Hegel se encontrava numa relação de imediata autossatisfação e perfeição circular com o seu sistema, enquanto que os discípulos, no seu conjunto, se encontram numa relação de mediação, seja porque a condição na qual se encontram é a de discípulos, portanto, uma relação com o sistema mediada pelo mestre e autor do sistema, seja porque o sistema, no momento ou época dos discípulos, já não é uma totalidade abstrata que abrange e contém a filosofia e o mundo, mas sim uma totalidade abstrata, mediada pelo mestre e o mundo do mestre, desenvolvida pelos discípulos como tal e contra o mundo dos discípulos que ainda não foi mediado por esta totalidade abstrata. Então, o que vem à tona é a atividade crítica voltada para o exterior, seja para um “exterior interno”, que é o sistema do mestre, seja para o exterior propriamente dito, que é o mundo dos discípulos. É a este último que Marx ainda está se referindo ao descrever o movimento de conversão do conjunto dos discípulos de um sistema, ressaltando aí que o defeito que combatem no mundo (que é o mundo dos discípulos) é o mesmo defeito que possuem na filosofia (estão numa relação mediada com o sistema) “no curso desta luta” a totalidade abstrata dos discípulos “cai nas fraquezas que ela combatia como fraqueza no seu contrário, não podendo suprimir estas fraquezas sem cair nelas. O que se opõe a ela e o que ela combate é sempre aquilo que ela é ela-própria, encontrando-se os fatores apenas invertidos”. Isso é um niilismo?! Sim e não. Olhando de um ponto de vista puramente objetivo parece que sim. Mas, mesmo aí, estamos diante de que fenômeno? Existe um sistema filosófico de um filósofo cuja prática teórica pura já não satisfaz mais os discípulos que tratam de convertê-lo em prática teórica prática/impura, quer dizer, que tratam de converter o sistema teórico em sistema prático. Porque? Porque a prática teórica dos discípulos não é mais imediata e substancial, quer dizer, pura prática teórica. Não, antes de tudo eles precisam ser disciplinados pela prática teórica do mestre, então a prática teórica deles não imediata e sim mediada pela do mestre nem é livre e sim disciplinada pela prática teórica do mestre. Eles querem ser mestres, eles querem uma prática teórica imediata e livre, quer dizer, deles próprios. Ora, o defeito de não ter seu próprio sistema é dos próprios discípulos e não do mestre e o mundo que não é nem tem seu próprio sistema filosófico é o mundo deles mesmos discípulos. O mundo sistêmico do mestre era uma perfeição circular, mas o mundo sistêmico dos discípulos é a quebra da perfeição circular e a efetivação da imperfeição circular, a qual, precisa ser percorrida para alcançar a perfeição e/ou a saída efetiva da circularidade, ainda que, mesmo assim, no fim se afirme a circularidade: só é possível suprimir as imperfeições ou fraquezas caindo nelas.


Isto tudo se torna mais compreensível se olhado do ponto de vista subjetivo, que é o da relação do sistema filosófico, que efetivamente se realiza, com as consciências de si singulares ou os suportes espirituais individuais, nos quais aparece seu progresso.  Os sujeitos então mostram o progresso do sistema filosófico, logo, se estão atrasados precisam se entregar ao sistema filosófico e combater o atraso mundano deles, mas se estão adiantados já se entregaram ao sistema filosófico e precisam combater o atraso mundano dos outros que não se entregaram ainda ou suficientemente ao sistema filosófico. Se estão atrasados precisam se entregar ao sistema filosófico e combater o atraso deles mesmos e também o atraso dos outros. Se estão adiantados precisam combater o atraso dos outros, mas também desenvolver o avanço deles mesmos para além do sistema filosófico. A situação dos atrasados é a de entrega ao sistema filosófico e combate ao próprio atraso mundano e ao atraso mundano dos outros, então é muito mais uma situação de conversão sujeito mundano em teoria filosófica do que do sujeito filosófico em prática mundana. Já a situação dos adiantados é precisamente a que está em foco aqui no texto de Marx. Porque os adiantados são os discípulos, quer dizer, os sujeitos filosóficos voltados para converter a teoria filosófica em prática mundana, quer dizer, os sujeitos filosóficos em sujeitos mundanos. É aí que entra a avaliação que fazem da sua condição de adiantados, de modo que se consideram responsáveis pelo avanço do sistema filosófico no mundo, seja porque acham que já ultrapassaram o sistema, seja porque acham que precisam realizar o sistema para ultrapassá-lo. Se acham que já ultrapassaram o sistema, então vão contra ele e a favor da ultrapassagem sistêmica que fizeram, quer dizer, a favor do sistema deles mesmos. Porém, como o momento deles é o da conversão, então ainda não ultrapassaram o sistema e se encontram no momento de realizar o sistema para poder ultrapassar o sistema. Os que acham que já ultrapassaram o sistema vão contra a filosofia, enquanto sistema hegeliano, e contra o mundo sem o novo sistema que desenvolvem ou desenvolveram. Os que avaliam que precisam realizar o sistema hegeliano para ultrapassar o sistema hegeliano vão a favor da filosofia para ir contra a filosofia enquanto sistema determinado, por outro lado, vão contra o mundo para poder realizar o sistema filosófico determinado e, assim, vão a favor do mundo além da realização do sistema filosófico determinado.


Os discípulos, que desde o início estão num mesmo movimento de maneira diferenciada, finalmente, nesse processo de conversão da filosofia em mundo, convertem as duas tendências, do movimento de conversão da filosofia em mundo, em dois lados do mundo. Desse modo, a filosofia se converte em mundo, via diferenciação em duas tendências filosóficas antagônicas convertidas em dois lados do mundo, logo, o mundo, propriamente dito, está suprimido porque foi convertido pelas duas tendências em dois lados do próprio mundo. E a filosofia, propriamente dita, que está se convertendo em dois lados do mundo, também está sendo suprimida no movimento que a converte em mundo, já que as duas tendências da filosofia se tornaram tendências do mundo.


Mas é aqui e agora que a contradição fica clara, porque as duas tendências filosóficas aparecem como dois partidos filosóficos. Um partido é aquele que parte do conceito do sistema filosófico, logo, da compreensão íntima do sistema filosófico, portanto, parte da compreensão da consciência íntima do filósofo autor do sistema. O outro partido é aquele que parte do momento de realidade em oposição ao sistema filosófico, logo, da compreensão do momento de realidade exterior ao sistema filosófico, portanto, parte da compreensão da consciência do momento de realidade exterior à consciência do filósofo autor do sistema filosófico. O partido do conceito se volta para a atividade de crítica do momento de realidade e o partido do momento de realidade se volta para a atividade de crítica do conceito. Fazendo a crítica do mundo o partido do conceito se realiza como prática mundana da filosofia (do conceito) e fazendo a crítica da filosofia o partido do momento de realidade se realiza como prática da filosofia positiva (do momento de realidade). Enquanto movimento geral de conversão da filosofia/teoria em mundo/prática a avaliação de Marx é que o partido do conceito realiza efetivamente a conversão, quer dizer, a emancipação/libertação do sistema filosófico na realização prática, enquanto que o partido do momento de realidade realiza efetivamente a interdição da conversão. É por isso que Marx diz que este último é o partido do capricho e da loucura de quem faz exigências e desenvolve tendências cuja forma contradiz o significado, porque o que faz é realizar a interdição, quer dizer, a escravização/sujeição do sistema filosófico no eterno retorno da realização teórica.


Marx descreve a si mesmo como membro do partido do conceito e faz uma descrição que antecipa e prevê a vinda de Nietzsche como membro do partido do momento de realidade.


Depois, de resumir o percurso do movimento de conversão desde o início até chegar às duas tendências antagônicas, Marx se refere a “uma multidão de formações subordinadas, gementes, sem individualidade que se abrigam por trás de uma gigantesca figura filosófica do passado”, então, ao que parece, se refere àqueles atrasados que mencionamos antes. Porém, aqui nesta passagem final existe muito mais coisa do que, em geral, imaginamos ao ler uma conclusão que sai do elevado para o mais baixo. Porque? Porque o próprio movimento de conversão da teoria filosófica em prática mundana é um movimento de uma escola filosófica, logo, de uma multidão que se abriga por trás de uma gigantesca figura do passado (Hegel) e porque lá na frase final desta passagem final ele anuncia aquilo que fez com os jovens hegelianos (Bauer & consortes, Proudhon) com seus livros “A Questão Judaica”, “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã” e “Miséria da Filosofia”. Ou seja, parte considerável desta multidão subordinada abrigada por trás de uma gigantesca figura do passado é vista por ele como parte constituinte do movimento dos jovens hegeliano, melhor, do movimento hegeliano que quer se converter em mundo. Entre este início e o final ele descreve o grau de pequenez e falta de individualidade desta multidão subordinada e lamuriante. E, com isso, ele prevê muito mais do apenas o movimento hegeliano de sua época, porque antecipa a descrição de “uma multidão de formações subordinadas, lamuriantes, sem individualidade que se abrigam por trás da gigantesca figura” de... Marx. E antecipa mais. Antecipa aquilo que Nietzsche chama de ressentimento e de revolta dos escravos na moral. Ainda que a saída de Marx seja fazer a crítica destas formações subordinadas para abrir espaço e tempo para o desenvolvimento da formação do partido do conceito ou da emancipação, enquanto que a de Nietzsche faz esta crítica com o fim antagônico de abrir espaço e tempo para o desenvolvimento da formação do partido do momento de realidade ou da interdição. Marx faz a crítica para tirar esta multidão da interdição na qual se encontra e Nietzsche a faz para aprofundar e, até mesmo, aniquilar esta multidão na interdição na qual se encontra, aliás, é nesse sentido que ele é niilista e também pretende que seu niilismo abra espaço e tempo para que possa ser criador/criativo. Nietzsche se assemelha ao Plutarco descrito na primeira nota deste capítulo da tese de Marx, talvez, até, um pouco mais, com a descrição que fiz da nota sobre Plutarco feita por Marx:


Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido, o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica.  “E qual é a moral da história? ” A prova é a resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal “moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.


Porque é evidente que aí está o dionisíaco, tão cultuado e cultivado por Nietzsche, presente como moral de Plutarco. Além disso, é curioso que este mesmo dionisíaco seja o culto da Sociedade Dezembrista de Napoleão III e de todos que comemoravam o golpe de Estado dele (Ver “O Dezoito Brumário”, de Karl Marx, onde se informa que Dionísio era o deus tutelar da sociedade do lumpenproletariado francês da época).


Se lembrarmos agora que todo o movimento inicial da conversão da filosofia/teoria em mundo/prática é aquele considerado de um ponto de vista puramente objetivo, então poderemos entender que o partido do momento de realidade se fixa neste ponto de vista, logo, também poderemos compreender Nietzsche como aquele que leva este ponto de vista puramente objetivo até às suas últimas consequências porque tudo aquilo que nele aparece como niilismo, exaltação do aniquilamento do humano como ponte entre o animal e o super-homem, é, enfim, precisamente o que é feito por este ponto de vista puramente objetivo:


“O que era luz interior vem a ser chama devoradora voltada para o exterior. Daí resulta como consequência que o devir-filosófico do mundo é ao mesmo tempo um devir-mundano da filosofia, que a realização efetiva da filosofia é ao mesmo tempo sua perda, que o que ela combate no exterior é seu próprio defeito interior, e que é justamente no curso desta luta que ela cai nas fraquezas que ela combatia como fraqueza no seu contrário, só podendo suprimir estas fraquezas caindo nelas. Aquilo que se opõe a ela e aquilo que ela combate é sempre aquilo que ela é ela-mesma. Estando os fatores apenas invertidos”.


O Dionísio exaltado por Nietzsche é a figura do eterno retorno, a figura que é inteiramente destruída e que, em seguida, retorna. Podemos dizer que este é ser divinizado pelo ponto de vista puramente objetivo da conversão da filosofia/teoria em mundo/prática.


Ainda podemos ver mais nesse ponto de vista puramente objetivo. Podemos ver aí a tragédia de Édipo-Rei e ainda a posição de Demócrito. Porém, ainda mais importante, para a compreensão do pensamento de Marx, podemos ver aí no ponto de vista puramente objetivo aquilo que, aos olhos de Marx, surge na luta de classes entre a burguesia e o proletariado como a ditadura do proletariado que levará ao fim das classes.


O ponto de vista subjetivo é aquele assumido pelo partido do conceito, logo, é o de Marx. É o ponto de vista que realiza efetivamente a filosofia e, assim, a ultrapassa. É o ponto de vista que aparece explícito na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. É o ponto de vista, claro, da sua tese sobre Demócrito e Epicuro, o qual está expresso por este último que, ao invés de ficar no eterno retorno do atomismo tal qual Demócrito, realiza efetivamente o atomismo como dissolução que constitui o vir a ser da consciência humana de si. E este ponto de vista subjetivo, do partido do conceito, quando, aplicado no tal desenvolvimento da luta de classes, na tal ditadura do proletariado e no tal fim das classes, aparece como uma atividade do sujeito proletariado que na luta não mais se limita a tomar o poder, mas se desviando disso, cuida de desenvolver um poder social, um poder comunitário que é por si mesmo uma dissolução da máquina de poder do Estado. O grande problema é que o sujeito proletariado propriamente dito nunca passou desta realização efetiva. Ou seja, toda tomada do poder, que teve por ponto de apoio e de partida esta instituição do poder social e/ou comunitário do sujeito proletariado, que veio a ser foi uma tomada de poder da corrente, tendência ou partido do momento de realidade, logo, não do partido do conceito que é o do sujeito proletariado, ainda que possa ter sido do partido do momento de realidade que é o do objeto proletariado.


Desse modo que fica claro que os supostos avanços dos marxismos, quer dizer, dos movimentos que se abrigam por trás da figura de Marx, o qual, por sua vez, era contra o marxismo bem como declarou que nunca foi marxista, foram avanços do partido do momento de realidade e nunca avanços do partido do conceito, o qual, por sua vez, quando se efetivou realmente, nunca foi marxista, nem mesmo, quando se efetivou realmente, com Marx que carregava o nome que deu origem a esta denominação duma “multidão de formações subordinadas, gementes, sem individualidade”.


Se ficar claro que o partido do conceito, assumido e desenvolvido por Marx, é também o do sujeito proletariado, então há de ficar igualmente claro que o movimento de conversão deste partido em realização efetiva do conceito ainda não passou dos meros anúncios do movimento de vir a ser, porque foi sempre substituído no seu desenvolvimento pela  interdição feita pelo partido do momento de realidade que soube usar a insuficiência ou a compreensão insuficiente deste partido do seu conceito ou princípio para afirmar a suficiência ou a compreensão suficiente do princípio do partido do momento de realidade.



O partido do conceito e do sujeito proletariado permanece tendo de enfrentar o partido do momento de realidade e do objeto proletariado, isto é, se permanecer visando converter seu conceito e subjetividade em movimento real e objetivo da sua liberdade e continuar visando ultrapassar e suprimir a realidade e objetividade da sua interdição em dissolvido e ultrapassado movimento conceitual e subjetivo.