Não sei se li outras versões deste texto de Kant, mas sei que o último texto que escrevi a respeito, citando inclusive esta tradução, "lê" sobre profissões ("padeiro", "mercador") que não se encontram no texto. Como é fácil "inventar" mesmo cheio de "boas intenções", sem querer prejudicar o autor ou os autores do texto ou textos.
Marx faz referência à época de Frederico no prefácio de sua tese de doutorado e termina sua tese defendendo Epicuro como "o maior filósofo das luzes". E Epicuro dizia que "nenhum sábio é superior a outro sábio em sabedoria" mas a cada um cabe a sabedoria que possui, a sabedoria de sua época. Marx na sua tese critica os jovens hegelianos por suspeitarem de Hegel. E ele defende que não se deve suspeitar da consciência de um mestre supondo que ele agiu com má fé visando manipular seus discípulos porque os sábios ou os mestres filosóficos estão antes de tudo voltados para a sua auto-emancipação e, por isso mesmo, não visam a manipulação dos outros e sim a libertação de si mesmos e, por isso mesmo, também a libertação dos outros. Se se quer apreender com um sábio é preciso antes de tudo confiar na consciência do sábio e procurar conhecer por inteiro sua consciência íntima e essencial e, assim, aprender o que para o sábio era uma consciência externa e desconhecida, o que para o sábio era ignorância de sua sabedoria. No caso de Kant, parece fácil, já que ele diz ignorar, por ser incognoscível, a coisa em si, mas no caso de Hegel que afirma chegar ao saber absoluto, logo, afirma conhecer a coisa em si, já é um pouco mais difícil saber o que é uma consciência exterior e desconhecida para ele. Marx dá a entender que esta consciência exterior e desconhecida para Hegel é aquela da época dos seus discípulos ou sucessores, ou seja, é a consciência da própria época de Marx. Porque ele diz que conhecendo a consciência própria e essencial do sábio se torna possível perceber e vir a conhecer aquela consciência que se encontra fora da consciência íntima e essencial do mestre. A seu ver um mestre filosófico não fica tutelando seus discípulos de maneira manipuladora, senhorial ou exploradora porque ele visa antes de tudo sua própria auto-emancipação e, desse modo, também visa a auto-emancipação dos discípulos porque se limitar sua sabedoria à escravidão de outrem estará ignorando a sabedoria da liberdade e se acorrentando à ignorância da escravidão. Nenhum sábio é superior a outro sábio e cada um vive a sua própria sabedoria - cada um alcança e usufrui da liberdade de sua própria maioridade ou vice-versa, quer dizer, da maioridade da sua própria liberdade, cada sábio alcança e usufrui da sua própria plenitude (Nietzsche diria que cada um realiza efetivamente ou efetiva realmente o seu "eterno retorno", vive e quer plenamente toda a vida que viveu tal qual a viveu).
Saber o que é consciência externa para Kant é mais fácil porque ele diz que só é possível conhecer o fenômeno ou a coisa para nós e que não é possível conhecer o númeno ou a coisa em si. Já Hegel diz que chega ao saber absoluto e, portanto, que conhece o númeno ou a coisa em si, então, qual a consciência exterior a Hegel, o qual chegou, inclusive, ao conhecimento do fim da história?! Marx dá a entender que é aquilo que está fora da consciência íntima e essencial de Hegel e, portanto, aquilo que é ou pertence à consciência íntima e essencial dos seus discípulos ou sucessores, ou seja, é a consciência de uma outra época, mas é também precisamente aquilo que se encontra fora do sistema filosófico íntimo e essencial de Hegel que é o Idealismo Absoluto, logo, começa por ser o Materialismo que se encontra evidentemente fora do Idealismo e ainda o Materialismo Relativo, até por ser sucessor de um Idealismo Absoluto e sem brechas para o Materialismo e por não querer cair no mesmo erro de Hegel de não deixar nenhuma relação com a consciência externa e alheia à sua.
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O que é o esclarecimento?1
Immanuel KantI
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. [Aqui se apresenta aquilo que será retomado e desenvolvido por Hegel como dialética do Senhor e do Escravo no capítulo da Consciência de Si da Fenomenologia. Kant apresenta o problema como uso da Consciência de Si ou uso da Consciência de um Outro, o tutor/senhor.] É a si próprio que se deve atribuir essa menoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro.[Aqui se apresenta aquilo que será retomado e desenvolvido por Marx como movimento de auto-emancipação do proletariado, como "a emancipação dos trabalhadores é obra dos trabalhadores"] Sapere aude!2 Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.
A preguiça e a covardia [não trabalhar e não lutar. Problema: Não trabalhar num mundo de desemprego estrutural como o atual. Problema: Não lutar num mundo onde quase que toda e qualquer luta é suprimida por ser entendida como terror.] são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia (naturaliter majorennes), comprazem-se em permanecer por toda sua vida menores; e é por isso que é tão fácil a outros instituírem-se seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim [as correntes religiosas do Livro {Bíblia, de onde vem biblioteca} e também as filosóficas {kantismo, hegelianismo, marxismo etc.}], um diretor espiritual que possui consciência em meu lugar [padre, pastor, filósofo, dirigente partidário etc.], um médico que decida acerca de meu regime, etc., não preciso eu mesmo esforçar-me [pensar, refletir, estudar, trabalhar, lutar]. Não sou obrigado a refletir, se é suficiente pagar [reino da sociedade civil de mercado]; outros se encarregarão por mim da aborrecida tarefa [tutelados pelo consumo de mercadorias e serviços mercantis]. Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção [os tutores que que querem permanecer senhores não querem que os tutelados façam uso da razão, então eles também não fazem uso da razão porque o uso da razão visa o fim da tutela diz Kant, do senhorial diz Hegel, da exploração do homem pelo homem diz Marx]. Após ter começado a emburrecer seus animais domésticos e cuidadosamente impedir que essas criaturas tranqüilas sejam autorizadas a arriscar o menor passo sem o andador que as sustenta, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentam andar sozinhas [Nietzsche que tanto critica com "surras" esses animais domésticos diz que o perigo que teem pela frente é apenas o da tragédia]. Ora, esse perigo não é tão grande assim, pois após algumas quedas elas acabariam aprendendo a andar; mas um exemplo desse tipo intimida e dissuade usualmente toda tentativa ulterior [Kant tira o espantalho da tragédia que, de certa forma, é o próprio perigo terrível usado pelos tutores, senhores, exploradores].
É portanto difícil para todo homem tomado individualmente livrar-se dessa menoridade que se tornou uma espécie de segunda natureza. Ele se apegou a ela, e é então realmente incapaz de se servir de seu entendimento, pois não deixam que ele o experimente jamais. Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, são os entraves desse estado de menoridade que se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de uma tal liberdade de movimento [Kant também deixa espaço para a tragédia, deve ser daqui que Nietzsche "pegou" a imagem de salto que tanto usa, inclusive, com uma queda mortal, como a do cadáver carregado por Zaratustra]. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa menoridade tendo ao mesmo tempo um andar seguro [os esclarecidos ou libertos são poucos, então, a libertação ainda está no horizonte da luta cotidiana e também no problema desses poucos tenderem a ser mestres e por aí a ocorrência do retorno da menoridade da qual o próprio homem é culpado sob nova forma].
Que um público, porém, esclareça-se a si mesmo, é ainda assim possível; é até, se lhe deixarem a liberdade, praticamente inevitável [aqui ele situa o uso da razão que consegue se situar fora do horizonte da menoridade e dentro do horizonte da maioridade e é precisamente na atividade de auto-esclarecimento, na atividade autodidata de um determinado público {na Grécia Antiga era a atividade do Coro que originou o teatro e da participação na Ágora ou assembléia dos cidadãos que sustentava a Democracia Grega, em todo caso, envolve também o julgamento num tribunal, numa defesa de tese, na aprovação para publicação de um artigo em revista científica etc., quer dizer, envolve a ação aprovada e reprovada numa comunidade, envolve a comun-ic-ação}]. Pois então sempre se encontrarão alguns homens pensando por si mesmos, incluindo os tutores oficiais da grande maioria, que, após terem eles mesmos rejeitado o jugo da menoridade, difundirão o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada homem de pensar por si mesmo [a ideia do liberalismo, da democracia] . O que há de especial nesse caso é que o público, que outrora eles haviam submetido, os forçará então a permanecer nesse estado, por pouco que eles sejam pressionados pelas iniciativas de alguns de seus tutores totalmente inaptos ao Esclarecimento [a democracia resiste ao retorno da ausência de democracia]. O que prova a que ponto é nocivo inculcar preconceitos, pois eles acabam vingando-se de seus autores ou dos predecessores destes [os autocratas acabam sendo superados pelos democratas]. É por esse motivo que um público só pode aceder lentamente ao Esclarecimento [o processo de esclarecimento precisa ser de auto-emancipação]. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir [o problema da hetero-emancipação, da emancipação da menoridade realizada efetivamente pelos tutores e não pelos tutelados, pelos que se encontram e permanecem na menoridade, na escravidão, na exploração].
Esse Esclarecimento não exige todavia nada mais do que a liberdade; e mesmo a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer um uso público de sua razão em todos os domínios [nada mais de acordo com um filósofo do que o uso público da razão, mas também de acordo com a assembléia, com o tribunal, com o teatro, com a defesa de tese, com o debate científico, mesmo com o debate religioso etc.]. Mas ouço clamar de todas as partes: não raciocinai! O oficial [as Forças Armadas sustentam o poder armado do Estado] diz: não raciocinai, mas fazei o exercício! O conselheiro de finanças [as finanças sustentam a manutenção e os gastos do Estado e ainda o novo sistema da Sociedade Civil de mercado]: não raciocinai, mas pagai! O padre [a base do antigo sistema de poder do Estado que se tornou parte do sistema tutelar da nova Sociedade Civil das mercadorias {até um tempo atrás na oração do padre nosso se rezava assim "... perdoai as nossas dívidas como nós perdoamos os nossos devedores..." e hoje é assim "... perdoai as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...", talvez porque o excesso de mercadorias se tornou tal e seu consumo é tão obrigatório que a dívida nem importa mais desde que haja consumo daí que a imposição do consumo ofenda}]: não raciocinai, mas crede! (Só existe um senhor no mundo que diz:raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) [Frederico ou qualquer déspota esclarecido como os czares russos e os reis absolutistas da França]. Em toda parte só se vê limitação da liberdade. Mas que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante freqüência ser estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave particular ao progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que fazemos enquanto sábios [autodidatas e eruditos] para o conjunto do público que lê [a imprensa no sentido de impressão de jornais, leis e livros]. Denomino de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados [existem atividades ou funções na sociedade civil que não impedem o uso privado da razão]. Ora, muitas tarefas que concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los. Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se somente obedecer [outras que não própria nem necessariamente da sociedade civil e sim mais própria e necessariamente do poder político ou do estado, a exceção aí é a que era do poder político ou estado e se tornou exclusiva do poder privado ou civil que é a religião. Kant aqui retoma todos os que dizem não raciocinai e o que diz obedecei]. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal, assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público, no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam afetadas. Desse modo, seria muito nocivo que um oficial, tendo recebido uma ordem de seus superiores, ponha-se durante seu serviço a raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade dessa ordem; ele só pode obedecer. Mas não se pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, fazer observações sobre as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de seu [aqui ele se refere a um público interno] público [como erudito ele se manifesta de modo que as forças armadas possam se aperfeiçoar, progredir, se desenvolver]. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; a crítica insolente de tais impostos no momento em que ele tem a obrigação de pagá-los pode até ser punida como um escândalo (que poderia provocar rebeliões gerais). Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo injustas [aqui já se trata do público em geral de um Estado que é todo e qualquer cidadão que fala de sua experiência de cidadão ou fala como erudito. Também porque a nova Sociedade Civil, a de mercado capitalista, se baseia na economia]. Do mesmo modo, um padre está obrigado diante de seus catecúmenos e sua paróquia a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele serve; pois ele foi empregado sob essa condição. Mas, enquanto erudito, ele dispõe de liberdade total, e mesma da vocação para tanto, de partilhar com o público todas suas idéias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem da religião e da Igreja. Não há nada aí que seja contrário à sua consciência. Pois o que ele ensina em virtude de sua função enquanto dignitário da Igreja, ele o expõe como algo que ele não pode ensinar como quiser, mas que é obrigado a expor segundo a regra e em nome de uma outra. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto ou aquilo; eis as provas das quais ela se serve. Ele extrairá em seguida todas as vantagens práticas, para sua paróquia, dos preceitos os quais, por sua parte, ele não subscreve com convicção total, mas que ele expõe de modo sólido, pois não é impossível que haja neles uma verdade oculta, e em todo caso, nada há ali que contradiga a religião interior. Pois, se ele julgasse encontrar tal coisa, não poderia em consciência exercer sua função; deveria demitir-se [as discordâncias religiosas podem ser expressas publicamente sem que o padre perca sua fé, mas caso a perca, então ele deve abandonar/sair da Igreja]. O uso, portanto, que um pastor [aqui do padre se passa para o pastor, então do catolicismo e passa para o protestantismo ou a Reforma, que já é um tipo de uso público da razão em contradição com o poder do catolicismo de então] em função faz de sua razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma assembléia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que, por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome [a fé fica limitada ao uso privado da razão e no uso público ela não atua para coibir ou impor quaisquer de seus dogmas]. Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.
Entretanto, uma sociedade de eclesiásticos, um sínodo, por exemplo, ou uma Classe 3 (como são chamados entre os holandeses) não deveriam ter o direito de comprometer-se mutuamente por juramento sobre um certo símbolo imutável, para assim manter sob tutela superior permanente cada um de seus membros e, graças a eles, o povo, e desse modo perenizar tal tutela? Digo que é absolutamente impossível. Tal contrato, concluído para proibir para sempre toda extensão do Esclarecimento ao gênero humano, é completamente nulo e para todos os efeitos não ocorrido, tivesse sido implementado mesmo pelo poder supremo, pelas Dietas do Império e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas decisões tomadas de maneira ilegítima e criminosa. A pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua qualidade de erudito, a fazer publicamente, isto é, por escrito, suas observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso mantida a ordem introduzida. E isso até que a compreensão de tais coisas esteja publicamente tão avançada e confirmada a ponto de, reunindo as vozes de seus defensores (nem todos, com certeza), trazer diante do trono um projeto: proteger as paróquias que se julgassem a respeito de uma instituição da religião modificadas segundo suas concepções, sem prejudicar contudo aquelas que quisessem manter-se na situação antiga. Mas é simplesmente proibido acordar-se sobre uma constituição religiosa imutável, a não ser contestada publicamente por ninguém, mesmo que fosse o tempo de duração de uma vida, e anular literalmente, desse modo, todo um período da marcha da humanidade em direção à sua melhoria, e torná-la não só estéril, mas ainda prejudicial à posteridade. Um homem pode, a rigor, pessoalmente e, mesmo então, somente por algum tempo, retardar o Esclarecimento em relação ao que ele tem a obrigação de saber; mas renunciar a ele, seja em caráter pessoal, seja ainda mais para a posteridade, significa lesar os direitos sagrados da humanidade, e pisar-lhe em cima. [defesa explícita da Reforma e da novidade advinda com ela: a emancipação política!]
Mas o que um povo não é sequer autorizado a decidir por si mesmo, um monarca tem ainda menos o direito de decidir pelo povo; pois sua autoridade legislativa repousa precisamente sobre o fato de que ele reúne toda a vontade popular na sua. Se ele propõe apenas conciliar toda verdadeira ou pretensa melhoria com a ordem civil, ele só pode, por outro lado, deixar a cargo de seus súditos o que eles estimam necessário para a salvação de sua alma; isto não lhe diz respeito. Em contrapartida, ele deve velar para que ninguém impeça a outro pela violência de trabalhar com todas suas forças para a definição e promoção de sua salvação. Ele prejudica à sua própria majestade quando intervém nesses assuntos, como se concernissem à autoridade do governo os escritos nos quais seus súditos tentam esclarecer sua idéia, ou quando age por sua própria vontade e se expõe à censura de Caesar non est supra Grammaticos4 . É também, e mais ainda, o caso quando ele rebaixa seu poder supremo defendendo contra o resto de seus súditos o despotismo eclesiástico de alguns tiranos em seu Estado. [defesa da emancipação política da separação da Igreja e do Estado, da Fé e da Razão]
Quando se pergunta, portanto: vivemos atualmente numa época esclarecida? A resposta é: não, mas numa época de esclarecimento.[a emancipação política permite apenas que um público dê início a sua auto-emancipação mas só a auto-emancipação humana poderá vir a realizar o esclarecimento, a época esclarecida] Muito falta ainda para que os homens, no estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem [sem padres, pastores, sacerdotes]. Mas que, desde já, o campo lhes esteja aberto para mover-se livremente, e que os obstáculos à generalização do Esclarecimento e à saída da menoridade que lhes é auto-imputável sejam cada vez menos numerosos, é o que temos signos evidentes para crer. A esse respeito, é a época do Esclarecimento, ou o século de Frederico. 5 [o déspota esclarecido, aquele que defende que se raciocine livremente desde que se obedeça, quer dizer, que defende o uso público da Razão e o uso privado da Fé desde que se respeite a lei secular/racionalmente instituída. Na tese de doutorado de Marx existe uma referência elogiosa a esse período da Alemanha. Aliás, ele termina a tese defendendo Epicuro como "o maior filósofo das luzes"]
Um príncipe que não julga indigno de si mesmo que ele considere como um dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, que lhes deixa sobre esse ponto uma liberdade total, e recusa, no que lhe diz respeito, o orgulhoso termo de tolerância, é ele mesmo esclarecido, e por ter sido o primeiro a libertar o gênero humano de sua menoridade, pelo menos no que concernia ao governo, e por ter deixado a cada um livre de se servir de sua própria razão em todas as questões de consciência, merece ser louvado pelo mundo que lhe é contemporâneo, e pelo futuro agradecido. Sob seu reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar livre e publicamente ao exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos símbolos adotados; melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se encontram limitados por seu dever de função. Esse espírito de liberdade estende-se também ao exterior, mesmo onde deve lutar com os obstáculos externos de um governo que ignora sua verdadeira missão. Pois mostra a este, por seu exemplo brilhante, que ali onde reina a liberdade nada há a temer para a tranqüilidade pública e unidade do Estado. Os homens procuram libertar-se de sua grosseria, por pouco que não se esforcem para mantê-los artificialmente em tal condição. [elogio da emancipação politica, o elogio do dever assumido por Frederico também é o elogio da filosofia da razão prática de Kant que assume sua efetivação como dever cumprido da coisa pública para nós da liberdade da coisa privada em si]
Situei o alvo principal do Esclarecimento, a saída do homem da menoridade da qual ele próprio é culpado, principalmente no domínio da religião: pois, em relação às ciências e às artes, nossos soberanos não se interessaram em desempenhar o papel de tutores de seus súditos. Além disso, essa menoridade à qual me referi, além de ser a mais nociva, é também a mais desonrosa. Mas a reflexão de um chefe de Estado que favorece o Esclarecimento vai mais longe e vê bem que, mesmo a respeito da legislação, não há perigo em autorizar seus súditos a fazer publicamente uso de sua própria razão, e em expor ao mundo suas idéias sobre uma melhor redação das leis, mesmo que seja com ajuda de uma crítica franca das já existentes; é disso que temos um exemplo brilhante, que nenhum outro monarca a não ser aquele que veneramos forneceu ainda. [elogio da emancipação política]
Mas somente aquele que, além disso, ele mesmo esclarecido, não teme as trevas, mas ao mesmo tempo tendo sob o comando um exército numeroso e bem disciplinado, garantia da tranqüilidade pública, pode dizer o que um Estado livre não ousa dizer:raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei! Revela-se assim uma marcha estranha, inesperada das coisas humanas; de todo modo, aqui como em todo lugar, quando se considera globalmente, quase tudo o que há nisso é paradoxal. Um grau mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos elevado daquela proporciona a este em contrapartida a possibilidade de estender-se de acordo com suas forças. Quando, portanto, a natureza libertou de seu duro envoltório o germe sobre o qual ela vela mais ternamente, isto é, a inclinação e a vocação para pensar livremente, então essa inclinação age por sua vez sobre a sensibilidade do povo (graças à qual este se torna cada vez mais capaz de ter a liberdade de agir) e finalmente, também sobre os princípios do governo, que encontra o seu próprio interesse em tratar o homem, que doravante é mais do que uma máquina, na medida de sua dignidade.* [elogio da emancipação política enquanto condição de possibilidade de um avanço para o advento da auto-emancipação humana, aquela que supera e suprime a máquina do Estado por não ser o humano reduzido a mero componente da mesma, quer dizer, por ser mais do que uma máquina]
Immanuel Kant
Königsberg, Prússia, 30 de setembro de 1784
Notas do autor
- O crítico da "Berlinischer Monatschrifft" coloca de início a seguinte observação: "É conveniente que a união conjugal fique sob a sanção da religião?" E o reverendo Sr. Zöllner: "O que é o Esclarecimento?" Essa questão é aproximadamente a seguinte: o que é a verdade, é preciso responder a essa questão para que o homem se julgue esclarecido! E ainda não vi ninguém que tenha respondido a isso!
- Na revista semanal de Büsching de 13 de setembro, leio hoje, 30 do mesmo mês, o anúncio da Berlinische Monatsschrift deste mês, na qual é anunciada a resposta do senhor Mendelssohn à mesma questão. Ainda não a tive entre as mãos; senão teria segurado a presente, cujo único interesse é agora o de tentar mostrar o que o acaso pode conter de concordância entre pensamentos.
Notas do tradutor
- O termo "Esclarecimento" foi preferido ao termo "Iluminismo" para traduzir a palavra alemã Aufklärung. O termo tem sido adotado em traduções brasileiras, como na obraDialética do Esclarecimento, traduzida por Guido Antonio de Almeida (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985). À pergunta: "Vivemos em uma época esclarecida?", Kant responde: "Não, vivemos em uma época de Esclarecimento"! A substituição por Iluminismo faria perder essa conotação. A tradução foi feita a partir do alemão, e apoiou-se em tradução anterior de Floriano de Souza Fernandes (Kant, I. Textos seletos.Petrópolis: Vozes, 1974) (N.T.).
- "Ousa saber!" Horácio, Epistulae, livro 1, carta 2, verso 40.
- Klassis, termo neerlandês que servia para designar os sínodos ou reuniões de tipo eclesiástico.
- "César não está acima dos gramáticos".
- Trata-se de Frederico II, o Grande, rei da Prússia.