terça-feira, 30 de junho de 2015

"Acadêmicos, céticos e dogmáticos e luta de classes"




“Sexto denomina então aqueles filósofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigações de “dogmáticos”; aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensível de acadêmicos; e aqueles que continuam a investigar de céticos. As filosofias se
dividem, portanto, em dogmática, acadêmica e cética.” (“Ceticismo e dialética especulativa na filosofia de Hegel”, de Luiz Fernando Barrére Martin, tese de doutorado, Campinas, Dezembro de 2009, Universidade Estadual, p. 27)


Kant não seria, segundo o critério de Sexto Empírico, um verdadeiro cético e sim um acadêmico que considera a verdade ou a coisa em si inapreensível. Já Hegel por continuar a investigar os fenômenos desenvolvendo uma fenomenologia poderia estar mais próximo do verdadeiro cético tal qual estabelecido no critério de Sexto Empírico, porém, por afirmar que chega ao saber absoluto e, portanto, à apreensão da verdade ou da coisa em si Hegel termina sendo um dogmático pelo critério de Sexto.


No combate à separação da Religião e do Estado, quer dizer, na luta pela emancipação política da Religião a posição acadêmica de Kant ao considerar Deus, a verdade da Religião, a coisa em si inapreensível e inteiramente separada dos fenômenos, os quais, por sua vez, são inteiramente apreensíveis como coisas ou verdades para nós tal qual a emancipação política do Estado separado da Religião que só trata de conhecer as coisas ou verdades para nós e separa e afasta a Religião e o conhecimento das coisas ou verdades inapreensíveis tais quais são em si da liberdade política e do Estado. Kant chama esse seu combate pela emancipação política de época do Esclarecimento e de século de Frederico, o Grande. Já Hegel começa aceitando o ponto de partida de Kant que é o se ater ao conhecimento dos fenômenos, quer dizer, das coisas ou verdades para nós, logo, aceita se ater ao exercício da emancipação ou liberdade política, portanto, aceita também se ater ao exercício e desenvolvimento do Estado separado da Religião, mas, na sua época, é Napoleão quem faz este desenvolvimento da liberdade política e do Estado separado da Religião até chegar a se coroar Imperador, em 02 de dezembro de 1804, tirando a coroa das mãos do Papa Pio VII, quer dizer, até chegar a uma nova junção do Estado e da Religião na qual a Religião se submete ao Estado, mas aí, o Estado assume o conhecimento da verdade ou da coisa em si. Hegel publica sua “Fenomenologia do Espírito” em 1807 e nela desenvolve a posição investigativa do cético, tal qual estabelecida pelo critério de Sexto Empírico, ou seja, desenvolve o exercício do espírito político em épocas sucessivas até chegar ao saber absoluto do espírito político absoluto, portanto, ao chegar tal qual Napoleão ao conhecimento da verdade ou da coisa em si da Religião.


Ambos, Kant e Hegel, estão conectados ao processo de emancipação política da burguesia ascendente ao Estado. Ambos olham muito mais para o processo de emancipação política ou de emancipação do Estado da Religião do que para a coisa em si e quando olham para esta coisa em si a percebem ocupada pela Religião. Então, para eles, a coisa em si ou a Sociedade Civil é o âmbito da Religião, melhor, é o ambiente saudável para o exercício da Religião que se separou do Estado. Pois os olhos de Marx vão se fixar, junto com os olhos dos economistas e dos materialistas e, para além, dos olhos dos religiosos, nesse ambiente da Sociedade Civil, onde, a partir da emancipação política burguesa, se encontram Religião e coisa em si. Marx irá perceber que aí, na Sociedade Civil, a emancipação política é o feito da burguesia, quer dizer, significa o desenvolvimento duma Sociedade Civil capitalista, mas ele percebe também que nesta Sociedade Civil capitalista existem os trabalhadores que são fundamentais para a existência e desenvolvimento da mesma e, no entanto, eles se encontram numa situação que requer, para além da emancipação política, da qual carecem mas podem obter com relativa facilidade, da emancipação social, isto é, da emancipação da dominação e exploração que os capitalistas e a Sociedade Civil capitalista fazem deles e esta eles só podem obter se emancipando da própria Sociedade Civil capitalista ou da própria coisa em si.



Dois filósofos sucessivos olhando para a coisa para nós, de forma acadêmica e cética, até alcançar o dogmatismo do Idealismo Absoluto, são sucedidos por um filósofo e um movimento social olhando para a coisa em si, de forma dogmática, visando a emancipação social Materialista ou materialmente efetivada.



domingo, 28 de junho de 2015

"Elementar, meus caros hegelianos!", diria Marx, o anglófilo.




Os discípulos de Hegel, mais cedo ou mais tarde, se percebem todos às voltas com o problema da consciência de si posto pelo sistema de Hegel como novidade dialética. E o problema da consciência de si do sistema hegeliano é um problema filosófico historicamente determinado pela existência das filosofias da consciência, as quais, de acordo com as determinações do sistema hegeliano, se situam na história geral da filosofia na história da filosofia da Grécia Antiga onde surgem nos ciclos das filosofias estoica, cética e epicurista.


Marx se assume às voltas com o problema da consciência de si posto como novidade dialética do sistema de Hegel bem cedo, ou seja, logo com o seu primeiro trabalho filosófico após se assumir discípulo de Hegel. E o seu primeiro trabalho filosófico como discípulo hegeliana foi sua dissertação de doutorado sobre o epicurismo nomeada de “Diferenças entre as filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro”. No capítulo da Fenomenologia do Espírito, dedicado à dialética da consciência de si, o epicurismo aparece como momento final do ciclo completo da consciência de si sob o nome de “consciência infeliz” e os momentos anteriores aparecem sob os nomes “estoicismo” (primeiro momento) e “ceticismo” (segundo momento). Marx optou pela “consciência infeliz” que na Fenomenologia sequer mereceu seu nome próprio de epicurismo. Em todo caso, ele fez esta opção porque a construção da consciência de si termina e só se completa com o epicurismo ou porque o epicurismo, dentre os momentos da consciência de si, é o materialismo mais completo e acabado?! Aliás, para Hegel, a construção da consciência de si termina na consciência infeliz por preceder a construção da razão ou porque, infelizmente, é o materialismo mais completo e acabado que precede a construção da razão?!


Marx, que se assume às voltas com o problema da consciência de si, situa a construção e o ciclo das filosofias da consciência de si gregas estoica, cética e epicurista como sucessores do fim da história objetiva da filosofia grega, de modo que a importância do estoicismo, do ceticismo e do epicurismo se situa na continuidade da história subjetiva da filosofia tanto em relação à Grécia como para além da Grécia. Ele ressalta que são essas formas subjetivas estoicas, céticas e epicuristas que migraram para Roma e mesmo para a época de Frederico, o Grande ou do iluminismo de Kant. Ora, rapidamente, podemos resumir as formas subjetivas de Kant, Hegel e Marx. Kant é o filósofo do espaço e do tempo como formas subjetivas a priori da sensibilidade humana, Hegel é o filósofo do espírito como forma subjetiva da coisa em si ideal, Marx, enfim, é o filósofo da força humana de trabalho como forma subjetiva da coisa em si material. Num tal resumo caberia a Kant o ceticismo, a Hegel o estoicismo e a Marx o   epicurismo. Marx herda de David Ricardo o sistema capitalista constituído por três classes de proprietários que são os proprietários das fontes materiais ou fundiários, os proprietários dos meios/instrumentos de produção/trabalho ou capitalistas e os proprietários e os proprietários das forças/energias humanas de produção/trabalho ou trabalhadores. Mas, é curioso como essas classes de proprietários correspondem às formas subjetivas da consciência de si estoica proprietária do todo natural/divinamente produtivo, da consciência de si cética proprietária dos meios/instrumentos ou formas de produção e da consciência de si epicurista proprietária de si própria, de sua força ou energia humana de produção.


Marx percebeu que, para os discípulos do sistema hegeliano, que havia chegado ao fim da história da filosofia objetiva do idealismo alemão, a saída era por meio da retomada do problema dialético da construção da consciência de si dentro da qual o estoicismo era uma saída conservadora, de direita ou da tendência dos chamados velhos hegelianos, já o ceticismo era uma saída progressista ou dentro da tendência dos chamados jovens hegelianos mas que se limitava a retomar as origens kantianas do sistema hegeliano, as quais, ainda que fossem fundamentais enquanto raízes e princípios de partida do sistema, permaneciam conduzindo ao retorno do sistema hegeliano e não à sua superação e, por isso, esta saída progressista era uma saída centrista e contra a qual se levantava, no interior mesmo da tendência dos jovens hegelianos, a saída epicurista que era a única a ir além do sistema hegeliano porque simplesmente retomava o que havia sido abandonado pelo hegelianismo desde suas origens kantianas e que era o conhecimento da coisa em si como conhecimento da matéria em si, quer dizer, o conhecimento do materialismo e não a recusa desse conhecimento sob a alegação de se entregar à metafísica. Marx percebeu que a tendência estoica permanecia nos limites do sistema hegeliano duma consciência de si absolutamente idealista; que a tendência cética permanecia nos fundamentos idealistas do sistema hegeliano duma consciência de si subjetivamente idealista e que só a tendência epicurista ia além dos princípios idealistas do sistema hegeliano como consciência de si subjetivamente materialista.



Então, a passagem do discípulo hegeliano para a sua maestria é a passagem da disciplina espiritual absoluta hegeliana para a liberdade da energia de trabalho como maestria humana; é a passagem do fim da história do espírito absoluto e do sistema da necessidade humana para a continuidade da história da energia humana de trabalho e para o sistema da liberdade humana.



Materialismo e continuidade histórica




Hegel fez da história a história do desenvolvimento do espírito e ao chegar ao saber absoluto chegou ao espírito absoluto e ao fim da história. Os discípulos de Hegel se encontraram dentro dum sistema que não tinha mais espírito, saber nem história a desenvolver, mas eles não eram o mestre do sistema e sim os discípulos do sistema, ou seja, não tinham desenvolvido o sistema e já o adotaram depois de ter sido desenvolvido por Hegel. Eles se perceberam na mesma situação pela qual passa a consciência de si dentro do sistema de Hegel que é a da dialética do senhor e do servo ou do mestre e do discípulo. Nessa dialética o senhor começa tendo poder de vida e de morte sobre o servo porque o servo para preservar ou por temer perder sua vida se submeteu ao senhor e passou a trabalhar para o senhor produzindo o que o senhor necessitasse. O servo com o desenvolvimento da produção para a satisfação das necessidades do senhor percebe que possui o poder de satisfazer ou não as necessidades vitais do senhor e é com este novo poder que ele vai se libertar do senhor.


Os discípulos se perceberam na mesma situação da consciência de si. Então se submeteram ao mestre que tinha alcançado o desenvolvimento do espírito absoluto e do saber absoluto, logo, que tinha chegado ao fim da história por temerem perder suas vidas sem terem desenvolvido seus espíritos, seus saberes e suas histórias escolheram então trabalhar para o senhor absoluto do espírito, do saber e da história. E foi aí que perceberam que desenvolveram um poder ao produzir os materiais destinados à satisfação das necessidades vitais do sistema do mestre absoluto e/ou do idealismo absoluto. E a partir daí perceberam que podiam vir a desenvolver seus espíritos, seus saberes e suas histórias desenvolvendo a sua maestria sobre os materiais e desenvolvendo a produção material que satisfaz, sustenta e realiza o sistema do idealismo absoluto do mestre. Ou seja, perceberam que podiam se libertar do sistema do idealismo absoluto ao desenvolverem a produção material, ao desenvolverem o sistema do materialismo.



Os discípulos hegelianos que se voltaram para o materialismo se voltaram para o desenvolvimento material de suas subjetividades e não mais apenas para o desenvolvimento espiritual das suas subjetividades porque viram nesse desenvolvimento material de suas subjetividades a forma de desenvolver e usufruir de seus espíritos, de seus saberes e de suas histórias. Enfim, viram que poderiam desenvolver seus espíritos, seus saberes e suas histórias se se fixassem no desenvolvimento do materialismo, quer dizer, se entregassem ao desenvolvimento do ser material, do saber material e da história material.



sábado, 27 de junho de 2015

O que é que importa?!




Qual é o momento filosófico atual? Quais são os filósofos e as filosofias da atualidade? Eu pura e simplesmente não sei, ignoro e, nesse sentido, faço da atualidade filosófica uma coisa em si incognoscível, mesmo ela sendo fenômeno e não númeno; também poderia dizer que faço da atualidade filosófica uma atualidade não-filosófica ou, no máximo, uma atualidade filosófica do fim da história e do fim da filosofia, então mesmo ela sendo um fenômeno é sem relevância espiritual ou filosófica; também poderia dizer que faço da atualidade filosófica uma inatualidade ou um anacronismo ideológico que ignora que a atividade filosófica da atualidade é o conhecimento da coisa em si, da matéria em si. Mas que conhecimento da matéria em si é este? A atualidade filosófica não seria naturalmente expressão dum esforço ou atividade de conhecimento dessa matéria ou coisa em si?! Desprezá-la ou ignorá-la não é precisamente desprezar ou ignorar o conhecimento dessa matéria ou coisa em si?! Desprezar e ignorar a atualidade filosófica em nome do conhecimento da matéria ou coisa em si é naturalmente considerar a existência de um objeto, coisa ou matéria cujo conhecimento precede a consciência que se faz dele, portanto, implica considerar que, antes de tudo, é preciso apreciar e conhecer o objeto, coisa ou matéria em si porque o resultado desse conhecimento é uma determinada consciência dessa realidade atual em si e, desse modo, se insere no conjunto de expressões da consciência da atualidade ou no âmbito das expressões da atualidade consciente, espiritual, filosófica, ideológica. Mas o resultado desta atividade de conhecimento, por sua vez, já não se encontra determinado antecipadamente pela consciência, espírito, filosofia, ideologia, quer dizer, de forma mais precisa não se encontra antecipadamente marcado pela objetividade, coisidade, materialidade, sensibilidade da atividade de conhecimento do sujeito e, então, nesse sentido, é preciso apreciar e conhecer, antes de tudo, a própria atividade sensivelmente humana de conhecimento da matéria em si, ou seja, é preciso apreciar e conhecer a própria prática da sensibilidade, da materialidade, da coisidade, da objetividade. Nesse último sentido, o conhecimento da coisa em si é conhecimento do fenômeno, não é conhecimento de algo para além do fenômeno, conhecimento que é impossível, segundo Kant, e que é conhecimento do fenômeno da ideia que suprime o fenômeno do real, segundo Hegel mas que, aqui, no caso de Marx, é conhecimento do fenômeno da matéria realizada e transformada pelo fenômeno objetivo do sujeito humano.


No sentido kantiano o conhecimento é limitado. Só podemos conhecer a superfície sensível e acessível para nós, quer dizer, o concreto, já que a profundidade insensível e inacessível em si é abstrata. A coisa em si abstrata, insensível e inacessível pode ser considerada de duas maneiras. De um lado, ela se encontra sob a superfície de todos os objetos sensíveis que percebemos, quer dizer, se encontra sob a objetividade dos fenômenos. De outro lado, ela se encontra sob a superfície de toda a nossa sensibilidade perceptiva, quer dizer, se encontra sob a nossa subjetividade fenomênica. E é nesse último sentido que Kant desenvolve as relações com a coisa em si como desenvolvimento da atividade prática, ou seja, não é possível conhecer mas é possível praticar a coisa em si, desde que se suponha e estabeleça que ela é tal qual a crença que se faz dela se torna possível praticá-la tal qual a crença que se faz dela e, desse modo, se torna possível desenvolvê-la como prática, quer dizer, como criação prática, como arte, como costume, como moral, como invenção e instituição.


No sentido hegeliano o conhecimento é absoluto. Podemos conhecer a profundidade abstrata porque ela é acessível e se faz sensível não apenas como consciência do fenômeno objetivo mas também como consciência do fenômeno subjetivo, como consciência de si. E, nesse último sentido, o conhecimento fenômeno subjetivo já não é mais limitado, ou seja, a coisa em si sob a subjetividade fenomênica não se limita a ser crença, prática etc. mas também é cognoscível, fenômeno, quer dizer, conhecimento do espírito. Desse modo, as invenções e/ou instituições do espírito não são apenas práticas, costumes, moralidades mas são também e principalmente conhecimentos e/ou ciências do espírito. E, portanto, o desenvolvimento do espírito é o desenvolvimento do conhecimento e/ou da ciência. Se com Kant é a lei moral e o Estado de Direito que se desenvolve, então, com Hegel é a ciência do direito e da moralidade que se desenvolve como Estado do espírito até chegar ao espírito absoluto do Estado.


No sentido marxiano o conhecimento é material. Conhecemos a superfície sensível e acessível para nós, mas também vamos conhecendo a profundidade abstrata que vai se tornando sensível e acessível para nós e aquela que, ainda não é acessível para nós, vem a ser, não por um desenvolvimento do nosso espírito, e sim, por um conhecimento nosso da matéria em si. A ciência que fazemos é uma ciência dos fenômenos, mas a nossa prática não se limita à crença que fazemos da coisa em si nem no conhecimento espiritual da coisa em si e se fixa sim no conhecimento material que fazemos da coisa, objeto ou matéria em si. Desse modo, o desenvolvimento material é o desenvolvimento do conhecimento e/ou da ciência, então, não é a ideologia nem o Estado, quer dizer, a superestrutura que faz o desenvolvimento do conhecimento ou ciência material e sim a infraestrutura da Sociedade Civil, ou seja, a moralidade e o direito são efetivamente realizados pela prática material dos humanos em sociedade/pela prática material da sociedade humana, a qual, a depender dessa prática material se mostra humana ou desumana, moral ou imoral.


Esse dito sentido marxiano, aparentemente é o que mais corresponde à realidade efetiva das sociedades capitalistas nas quais vivemos, onde por toda parte o direito está ligado às práticas materiais dos diferentes sujeitos (“... todos são iguais em direitos... sem discriminação de raça, cor, sexo, classe, riqueza...”), dos diferentes egoístas que só serão livres com o desenvolvimento diversificado de suas práticas materiais de diferentes egoístas em diferentes altruístas, de proprietários individuais (de rendas, de lucros e de salários) em proprietários sociais.



No entanto, que importância tem isto na atualidade filosófica?! Ao que parece nenhuma importância, logo, também não deve ter nenhuma importância material, já que tanto o conhecimento atual e quanto o conhecimento material partem do conhecimento dos fenômenos. Que atualidade é essa? Que materialidade é essa? O que é que importa na atualidade e na materialidade? A vontade, respondem os que observam os fenômenos do terrorismo, do poder imperial da guerra ao terror dos EUA, do “nós podemos” de Obama, do “mudar o mundo” da Coca & Cola, da corrupção por toda parte. Enfim, a vontade também está implicada na falta de vontade, melhor, na vontade de nada, quer dizer, no niilismo. Outros consideram que a vontade e o niilismo estão no fim e o que importa na atualidade e na materialidade é a ausência de sentido, de paradigma. Todos, no entanto, parecem ver por toda parte da atualidade e da materialidade uma criação destrutiva e uma destruição criativa que eterniza o tédio, o terror, o niilismo e também o ânimo, a paz, a mudança como faces duma mesma moeda, dum mesmo real.



quinta-feira, 25 de junho de 2015

O materialismo do discípulo hegeliano





A relação de Kant estabelecendo um fosso entre o real em si e o real para nós, entre o real em si e o real imaginário serviu para que Hegel desenvolvesse o conhecimento do real imaginário até chegar ao imaginário real negando a existência e persistência do real em si. Os discípulos de Hegel, da filosofia do espírito absoluto ou do idealismo absoluto, insatisfeitos com este resultado, se voltaram para o contrário do espírito ou da ideia, se voltaram para a matéria. A matéria já se encontrava marcada pelo fosso de Kant entre o real em si e o real para nós ou imaginário, então ou a matéria é incognoscível por ser o real em si inacessível ou ela é cognoscível por ser acessível o real em si. Porém, nesse último caso, o real em si não é algo separado de nós, logo, não é mais exatamente somente em si e sim também em nós. Ora, nesse último caso, de ser também em nós, volta a valer com força o feito de Hegel, já que Hegel encontrou o real em nós no imaginário real ou no espírito. No entanto, o real em nós e não separado do real em si é apenas o imaginário real ou o espírito? Não é, antes disso, a nossa atividade sensível por ser ela tanto nossa quanto do próprio real "em si”? Se é a nossa atividade sensível e imaginária e não separada da atividade sensível e imaginária do real, então, a nova maneira de lidar com os fenômenos é parecida com a de Kant que só conhece os fenômenos e diferente da de Kant porque conhece a coisa ou o real em si, logo, é parecida com a de Hegel que afirma conhecer a coisa ou o real em si, mas também é diferente da de Hegel porque afirma conhecer a coisa ou o real em si como movimento ou atividade material sensível e não exclusivamente como movimento ou atividade ideal imaginária.


Marx é um discípulo hegeliano consequente dessa passagem do idealismo para o materialismo. E como o conhecimento da coisa, do real ou da matéria em si é acessível e, portanto, está presente em nós que, aliás, somos quem efetivamente produz o conhecimento, então, é em nós que se encontra a coisa, o real ou a matéria em si, quer dizer, é em nós que se produz o conhecimento, a consciência, a ciência e/ou a tecnologia da coisa, do real ou da matéria, mas, não exclusivamente como espírito e sim como atividade espacial e temporal humana, como atividade sensivelmente humana, como prática, como atividade humana criativa, como trabalho humano.


A Natureza é sensível, material, real com imagens, mas são, principalmente, e, talvez, até, exclusivamente, os humanos que, com sua atividade naturalmente sensível, material, real com imagens, transformam sensível, material e realmente as imagens dos corpos/as formas das coisas da Natureza. De modo que o conhecimento humano não é ou não se limita a um desenvolvimento espiritual, a um desenvolvimento do espírito até chegar ao espírito absoluto. E isto porque o desenvolvimento do conhecimento humano se faz como um desenvolvimento material, um desenvolvimento da matéria humanamente transformada até chegar a um tal desenvolvimento material humano no qual a matéria natural transformada humanamente alcançou um tal grau de transformação e de incorporação da racionalidade humana do conhecimento humano que é muito mais o chamado software do que o chamado hardware que passa a ter papel preponderante na atividade sensível humana. Noutras palavras, o discípulo materialista quer realizar a filosofia do espírito absoluto do mestre Hegel como desenvolvimento material da atividade sensivelmente humana e não como desenvolvimento ideal da atividade abstratamente humana, ainda que queira precisamente conseguir que a atividade material humana seja efetivamente atividade abstratamente humana. Ou seja, o processo de automação e de libertação humana do trabalho, o qual, aliás, já havia sido cogitado por Aristóteles que por meio da introdução do autômato viu a libertação do escravo do trabalho e a expansão absoluta do ócio intelectivo próprio do filósofo e da filosofia.



quarta-feira, 24 de junho de 2015

Compreensão ou confusão?!




O real e o imaginário/real imaginário e imaginário real. O real fornece as imagens para o imaginário, então sem o real o imaginário não imagina, mas e o real realiza sem o imaginário? Kant dizia que sim, que o real realiza sem o imaginário, mas dizia também que a realização do real sem imagens é incognoscível porque nosso acesso ao conhecimento do real se faz pelo imaginário. (É importante saber que o imaginário não é composto só pela visão e que o tato, o olfato, o paladar e a audição também fazem parte da composição do imaginário).


Então, segundo Kant, nosso acesso não é ao real em si nem nosso conhecimento é do real em si porque nosso acesso é ao real imaginário e nosso conhecimento também é do real imaginário.


A partir do real imaginário já é possível para o imaginário imaginar e é o que ele faz e a tal ponto que é capaz de desenvolver o imaginário para que ele venha a ser o imaginário real, quer dizer, venha a inverter a via da produção do imaginário que se origina no fornecimento de imagens do real para o imaginário e se torne uma via da produção do imaginário que se origina no fornecimento de imagens do imaginário para o real. Esta novidade do imaginário real, quer dizer, do imaginário que fornece imagens para o real é aquela que Hegel ressalta ou destaca com sua filosofia e que ele chama de espírito.


O problema do real sem imagens, melhor, do real que se realiza sem a presença do imaginário para obter imagens do real é saber se o real sem imagens ainda é tal qual ele aparece para o imaginário, para os sentidos e para nós. Se a resposta for negativa, isto é, o real sem imagens, o real em si e sem o imaginário é diferente do real para nós, do real com imagens ou do real imaginário, então, por sua vez, o real imaginário, o real com imagens ou o real para nós também é completamente diferente do real em si. O real em si é inacessível para nós e nós nunca acessamos o real em si porque só acessamos o real para nós, o real imaginário, então, o desenvolvimento lógico dessa nossa posição de acesso exclusivo ao real imaginário, ao real para nós é chegar ao imaginário real, ao desenvolvimento de nós para o real, quer dizer, é efetivamente desenvolver o imaginário como real, o imaginário real, o mundo real da ideia, o mundo humano mas não o mundo real do real, o mundo do real em si.


O resultado dessa posição de Kant desenvolvida por Hegel foi partir de um idealismo do sujeito e chegar a um idealismo absoluto que afirma o imaginário real como o em si e nega o real em si. Os jovens hegelianos que herdaram este conhecimento que chegou até o imaginário real, ao espírito sentiram a falta do real em si que tinha sido negado por Hegel e que, ainda que afirmado por Kant, permanecia inacessível e isto porque o imaginário real, o espírito e/ou o saber absoluto não os satisfazia como prática porque permanecia teórico e eles queriam que fosse prático, real e não tão somente imaginário, pensamento, ideia. Então, é porque os discípulos de Hegel querem o imaginário real e/ou o espírito ao qual Hegel chegou como prática, como real e não apenas como imaginário que eles se voltam para a retomada do real em si e, por aí, em primeiro lugar, para a retomada de Kant, que ainda afirmava o real em si, e que Hegel, na sua caminhada para o imaginário real, terminou por negar o real em si e afirmar o imaginário em si como o absoluto.


De um lado, se encontra o real imaginário ou o limite do espírito que não acessa o real em si e sem limites, do outro lado, se encontra o imaginário real ou o espírito absoluto que acessa o imaginário em si e sem limites. Esta última realização filosófica, a do conhecimento absoluto do imaginário em si, significa um grande avanço do conhecimento do espírito em si, no entanto, os discípulos dessa realização filosófica do conhecimento do espírito em si se defrontam com um abismo crescente entre o conhecimento filosófico do espírito em si e sua realização mundana como conhecimento mundano da realidade para si, ou seja, se defrontam com a contradição crescente entre o feito de Hegel do conhecimento absoluto do espírito em si e o feito de Kant do conhecimento limitado da realidade para si. E isto porque o espírito que alcançou o autoconhecimento não conseguiu alcançar, por outro lado, o conhecimento do real em si e, assim, ficou limitado ao conhecimento do real para si. Kant colocou as condições de possibilidade para o conhecimento do real para nós ou dos fenômenos, ou seja, o conhecimento possível é o conhecimento do real imaginário e não do real em si. Hegel parte dessas condições de possibilidade postas por Kant, parte do conhecimento do real imaginário para chegar ao conhecimento do imaginário real em si, do espírito em si ou do absoluto, mas também estabelece condições de possibilidade para chegar ao conhecimento do absoluto, do espírito em si ou do imaginário real em si e, a mais importante condição, é que se tenha chegado ao fim da história, ao fim do espaço e do tempo, ao fim do real imaginário, ao fim da dialética porque é dentro dessa condicionalidade que se efetiva o imaginário real em si. Mas o fim da história, o fim do espaço e do tempo, o fim do real imaginário, o fim da dialética que é a efetivação do absoluto, do espírito em si e do imaginário real em si significa precisamente a interdependência entre o real imaginário que se dissolve no imaginário real e do imaginário real que suprime todo e qualquer desenvolvimento do real imaginário de modo que a realidade imaginária para si estanca para que tenha vez o estancamento na imaginária realidade em si.


Ora, os discípulos percebem aí nesse fim generalizado também o fim da filosofia e, mais especificamente, o fim da filosofia idealista que com Hegel chegou ao idealismo absoluto. Os discípulos se voltam para fora da filosofia e para fora do idealismo e não necessariamente porque queiram mas porque se sentem expulsos do sistema hegeliano já que o conhecimento absoluto do espírito em si satisfaz Hegel mas não os discípulos que adotaram o conhecimento do espírito absoluto em si de Hegel como filosofia ou espírito para si com o qual percorrem ou pretendem percorrer o desenvolvimento até chegar ao espírito absoluto em si neles próprios. Ora, Hegel parece cortar essa possibilidade ao fazer coincidir a chegada aos absolutos com a chegada aos fins, ao fazer coincidir a filosofia do espírito para si com a chegada ao espírito em si da filosofia, ao fazer coincidir o cume da sua filosofia com o conhecimento absoluto do espírito de Hegel em si mesmo, ou seja, Hegel coincide a realização de sua filosofia consigo mesmo e torna impossível fazer história com a sua filosofia, torna impossível continuar a história do idealismo absoluto de Hegel. Os discípulos se sentem não só expulsos mas igualmente encaminhados por Hegel para o que ficou fora do percurso do idealismo desde seu início com Kant até chegar ao idealismo absoluto de Hegel, portanto, encaminhados e expulsos pelo mestre para o problema filosófico que os discípulos precisam enfrentar desenvolvendo respostas próprias e que é o problema da prática material em si ou da efetivação do imaginário real em si no real em si. O problema do conhecimento da coisa em si é o problema do conhecimento material em si, é o problema do conhecimento materialista, logo, é o problema do materialismo que em todo o desenvolvimento do idealismo até ao absoluto foi deixado de fora e interdito por ser considerado impossível conhecer a coisa, o objeto ou a matéria em si.


Os discípulos obrigados logicamente pelo sistema hegeliano a ir para o materialismo, a ir para a prática começaram a tentar responder positivamente ao problema do real sem a presença de imaginário, quer dizer, a considerar que o real emite imagens sensíveis mesmo na ausência de percepções sensíveis das mesmas, ou seja, a considerar que as imagens sensíveis não são uma produção exclusiva dos seres portadores de imaginários sensíveis, logo, passaram a considerar que o sensível ou a sensibilidade é comum ao real e ao imaginário, portanto, a considerar que o espaço e o tempo não são formas a priori da sensibilidade imaginária animal e/ou humana porque são sim formas sensíveis das próprias coisas em si. Mas, assim o conhecimento do real sensível é um conhecimento do real imaginário mas porque as imagens do real natural saem efetivamente do real natural para adentrar no imaginário animal e humano, sendo este último o imaginário realmente mais significativo. As imagens se desprendem imediatamente da superfície dos corpos e não da interioridade dos corpos, então, nesse sentido, as imagens das coisas são normalmente da exterioridade das coisas ou corpos e não da interioridade das coisas ou corpos, ou seja, a possibilidade do conhecimento começa pela exterioridade das coisas ou corpos, começa pela objetividade e se desenvolve historicamente com acessos à interioridade das coisas ou corpos, com acessos à subjetividade, ainda que esta última seja mais efetiva e significativa nos humanos.



Conhecer a coisa em si ou a matéria em si é possível mas é dificultoso porque o acesso do conhecimento é fácil na superfície da matéria e difícil na interioridade da matéria e o aprofundamento do conhecimento da matéria é histórico de modo que todo o desenvolvimento dos instrumentos técnicos e tecnológicos humanos são igualmente desenvolvimento histórico do conhecimento humano da matéria. Mas todo esse conhecimento histórico da matéria é produzido pelo trabalho humano de modo que o conhecimento histórico da subjetividade humana é o conhecimento histórico das condições humanas libertas do trabalho humano porque é este trabalho humano e não o espírito humano quem efetivamente realiza o desenvolvimento histórico do conhecimento e a força humana de trabalho, que é a base de todo e qualquer trabalho humano, se encontra aprisionada e explorada pelo processo de produção do conhecimento histórico humano. Para o materialismo o importante não é chegar ao desenvolvimento do espírito humano em si e sim ao desenvolvimento do ser e/ou do sujeito humano em si.



segunda-feira, 22 de junho de 2015

Pistas para compreender ou para confundir?!




Com Kant o conhecimento se dá por meio de condições de possibilidade que implicam só ser possível o conhecimento dos fenômenos por meio das formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo. Já o conhecimento das coisas em si ou dos númenos é impossível por se situarem fora do espaço e do tempo, quer dizer, das formas a priori da sensibilidade e dos fenômenos.


Hegel parte das condições de possibilidade do conhecimento estabelecidas por Kant, ou seja, coloca seu foco no conhecimento dos fenômenos por meio das formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo. A novidade é que nesse caminho do conhecimento fenomenológico por meio das formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo, ele vai se aprofundando no conhecimento das formas a priori da sensibilidade, do espaço e do tempo, de um modo que vai trazendo à tona cada vez mais profundamente a interioridade das formas a priori da sensibilidade e/ou do espaço e do tempo que vão se configurando como espírito, como sucessivas formas do espírito, sucessivos espíritos de espaços e tempos diferentes ou de épocas diferentes ou fenômenos diferenciados. E Hegel afirma conseguir um conhecimento completo dessas formas espirituais sucessivas, quer dizer, afirma alcançar um conhecimento absoluto do espírito por conseguir chegar ao conhecimento do espírito absoluto, ou seja, afirma chegar ao conhecimento do númeno, nesse caso, o espírito absoluto, por meio do conhecimento do fenômeno acessível pelas formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo, de modo que o além do espaço e do tempo ou o fim da história é acessível e alcançado pela fenomenologia de Hegel.


A coisa em si incognoscível de Kant se situa fora do espaço e do tempo os quais, por sua vez, a encobrem e impedem o acesso à coisa em si. A coisa em si cognoscível de Hegel se situa além do espaço e do tempo, os quais, por sua vez, são vias de desvelamento e acesso à coisa em si, a este além do espaço e do tempo.


Kant parece não conseguir chegar à matéria em si, à coisa em si material sob as formas a priori do espaço e do tempo. Hegel parece respeitar este mesmo limite de Kant, mas, na verdade, porque ele consegue chegar à ideia em si, à coisa em si ideal além das formas a priori do espaço e do tempo, ele parece negar à coisa em si material suposta por Kant, quer dizer, uma coisa material sob as formas do espaço e do tempo por afirmar sim uma coisa ideal além das formas do espaço e do tempo. Então Kant parece afirmar uma matéria em si fora do tempo e do espaço e Hegel parece negar uma matéria em si fora do tempo e do espaço por parecer afirmar uma ideia em si além do espaço e do tempo. Kant parece estar preso no espaço e no tempo e estar interdito de acessar a matéria ou coisa em si. Hegel parece estar preso no espaço e no tempo mas livre para acessar a ideia ou coisa em si. Kant tem ou pode fazer uma ideia da liberdade da matéria ou coisa em si mas essa ideia da liberdade na prática é prisioneira das condições do espaço e do tempo, quer dizer, essa ideia da liberdade na prática é a materialização do dever. Hegel tem acesso ou pode acessar a ideia da liberdade ou da coisa em si como prática do espírito no espaço e no tempo, ou seja, essa ideia da liberdade é a prática do espírito da liberdade, melhor, essa ideia da liberdade na prática é o espírito da liberdade concretizando a liberdade. Mas, o espírito da liberdade que concretiza a prática da liberdade é aquele que aparece no fim da fenomenologia, no fim do espaço e do tempo, no fim da história objetiva ou fenomênica, logo, é aquele que aparece no voo ou libertação do espírito na história subjetiva, no espaço e no tempo subjetivos, no fenômeno numênico ou na coisa em si fenomenal. Por isso que os discípulos de Hegel vão se voltar para a prática e para a realização da filosofia hegeliana na prática, por isso que os jovens hegelianos vão querer a materialização do espírito livre, por isso que os jovens hegelianos, como Feuerbach e Marx, vão querer o materialismo da filosofia hegeliana, o materialismo da história e/ou da dialética como começo da prática da liberdade, por isso que eles vão querer o materialismo ou a materialização prática da liberdade e não mais o idealismo ou a espiritualização prática da liberdade. De certa forma todos eles retornam a Kant que acreditava numa matéria em si que permanecia fora de espaço e do tempo, mas eles agora querem esta matéria em si, negada por Hegel e de acesso interdito em Kant, porque querem o conhecimento da coisa material em si que se encontra dentro do espaço e do tempo, ou seja, consideram que é a matéria mesma que se encontra no espaço e no tempo, logo, que eles são as formas da sensibilidade da própria matéria de modo que o conhecimento é relativo, melhor, histórico, dialético porque depende das relações dos humanos com a natureza e entre si.



domingo, 21 de junho de 2015

O xis da questão: o real e o imaginário/real imaginário e imaginário real




O simples consumo humano, quer dizer, por meio das atividades de coleta e de caça já se diferencia dos demais animais não apenas pelo uso e produção de instrumentos nem apenas pelo uso e produção de um habitat próprio mas principalmente pelo uso e produção do fogo e pelo uso e produção da pintura e, por aí, de sinais até chegar à escrita.


Com o uso do fogo o consumo humano já não é mais simples e sim inteiramente diferente de todos os demais animais, alterando o ambiente de um modo que nenhum outro animal consegue, logo, demarcando também o ambiente no qual o humano está presente. Com o uso da pintura o consumo humano é ainda mais complexo porque agora o uso e a produção da imaginação participam dele, ou seja, surge ao lado e como "concorrente" da Natureza real a Natureza imaginária e, esta última, é afirmada como sendo exclusivamente humana. O chamado trabalho humano é uma concentração dessa Natureza imaginária humana e tem por finalidade fazer com que esta Natureza imaginária humana alcance seu objetivo de efetivação real e mais completa possível da Natureza real. É nisso, nessa dialética, que o pensamento de Hegel permanece insuperável e muitíssimo materialista com sua fórmula dita idealista segundo a qual "todo racional é real e todo real é racional" e vice-versa.



sábado, 20 de junho de 2015

Economia, religião, ecologia, ideologia, filosofia, ilusão e/ou libertação?!




“A oferta do paraíso e a perda do mesmo pelo consumo do fruto da árvore do bem e do mal ou pelo estabelecimento do pacto de não cometer nem sofrer prejuízos e a procura do paraíso e o ganho do mesmo pela prática do trabalho e da disciplina de desenvolver um pacto de não sofrer e de não cometer danos, quer dizer, o pacto de um mundo livre, o pacto de um mundo da liberdade.”


A oferta do paraíso e sua perda pelo consumo. A procura do paraíso e o seu ganho pelo trabalho. Troca e compensação, porque com o consumo se retira a energia do paraíso da abundância, já com o trabalho se devolve a energia dum oásis para a escassez. E a esperança é conseguir com o trabalho devolver a energia que reconstitua o paraíso da abundância.


A Natureza é perfeita porque é um paraíso, mas o consumo humano é a introdução da imperfeição e da perda do paraíso. Nessa economia política bíblica Malthus é a ortodoxia e a outra ortodoxia que aí também está suposta e presente é a ecologia porque ambos consideram que o consumo humano é superior à produtividade da Natureza e a desequilibra e empobrece. A humanidade é a falha e a queda da produtividade da Natureza, a destruição e/ou perda do paraíso. No entanto, com o suor do trabalho a humanidade consegue repor parte da produtividade perdida da Natureza garantindo assim o salário, ou o valor correspondente ao sal extraído do suor da jornada de trabalho, com o qual limita seu consumo da Natureza a uma ração que repõe o seu desgaste com a jornada de trabalho ao mesmo tempo que poupa e não consome a outra parte da jornada de trabalho com a qual agrega e, assim, repõe, com trabalho, produtividade à produtividade perdida da Natureza.


Então, ao que tudo indica parece que é assim. A humanidade começa a coletar e caçar na Natureza e chega numa situação que a população cresceu e as mudanças ou rodízios de locais não são mais suficientes para que uma área muito consumida volte à sua produtividade habitual. Mas, nessa época, a humanidade descobre ou inventa a agricultura e a pecuária, quer dizer, passa a usar o trabalho e a disciplina da domesticação e criação dos animais para repor a produtividade da Natureza. Desse modo, a população humana aumenta ainda mais e a Natureza trabalhada e domesticada também. Porém, as atividades de coleta e de caça precisam ser controladas e impedidas para que ocorra o desenvolvimento das atividades da agricultura e criação de rebanhos, caso contrário, elas serão impossíveis e não se desenvolverão. O coletor e o caçador na prática se assemelham aos demais animais da Natureza que também coletam e caçam. Parece então que a agricultura e a criação de rebanhos separam a humanidade dos animais, separam o trabalho e/ou produção humana do consumo e/ou fruição animal. E também que esta separação é uma separação no interior da humanidade entre coletores e caçadores para os quais não existe Natureza trabalhada ou humanamente produzida, quer dizer, Natureza que é própria ou propriedade da humanidade porque para os coletores e caçadores toda e qualquer Natureza é própria ou propriedade da humanidade. Para os agricultores, pastores e/ou pecuaristas os coletores e caçadores são preguiçosos, ladrões, predadores, agressores, guerreiros ou terroristas porque a coleta e a caça só deve continuar existindo onde a Natureza ainda continua não sendo trabalhada nem humanamente produzida. Tudo indica então que com o trabalho também veio a propriedade, ou seja, a Natureza trabalhada ou humanamente produzida está não só separada do mero consumo e fruição animal na instituição duma sociedade humana, mas esta sociedade humana para além da sociedade animal é também a instituição da Natureza de propriedade humana.


Para a humanidade voltar a ser meramente coletora e caçadora é preciso destruir a população humana e impedir que ela cresça, ou seja, é preciso um controle da sexualidade e do crescimento populacional similar ao usado no mito grego onde “Cronos era aquele que comia seus próprios filhos”.  Mas, segundo Malthus, para que a humanidade desenvolva uma Natureza humanamente produzida (agropecuária) também é preciso controlar a população, impedir que ela cresça e favorecer que ela decresça, porque o crescimento da população que consome é maior do que o da produtividade da Natureza trabalhada. Equivale a dizer que tem mais gente consumindo do que produzindo ou que o crescimento da população humana é maior do que o crescimento dos recursos naturais.


Mas, quem vem antes, a Natureza (Deus) ou a humanidade? Se é a Natureza (Deus), como tudo parece indicar que seja, então a falha, trazida pela humanidade com sua capacidade populacional de crescer mais às custas do decréscimo da produtividade da Natureza, é uma falha produzida pela Natureza (Deus) ou originada da Natureza (Deus). Nesse caso, o trabalho, desenvolvido pela humanidade para suprir essa falha originada pela Natureza (Deus) que criou a humanidade, ainda que seja humano é naturalmente humano, ou seja, é uma força da Natureza (Deus), logo, é parte do desenvolvimento da própria Natureza ou é propriedade da Natureza. Sendo assim a Natureza precisa que a humanidade desenvolva o trabalho para que a própria Natureza se desenvolva, ou seja, ela precisa que a humanidade se desenvolva como Natureza trabalhada para que ela própria Natureza se revele naturalmente humana. Então, deve ser o seguinte. A humanidade por meio do trabalho que faz e desenvolve a ciência (da árvore) do bem e do mal, do prazer e da dor, do pacto de não prejudicar nem ser prejudicado vai chegar a fazer e desenvolver a ciência (da árvore) da vida, do íntimo da Natureza, da essência da liberdade. A suposição é que pelo desenvolvimento do trabalho a humanidade saia do mundo da luta com a necessidade e alcance o mundo do saber/sabor(ear) da liberdade.



Ou seja, a humanidade está obrigada a lutar com a necessidade e a desenvolver o trabalho de tal forma que ela poderá vir a suprir suas necessidades e, assim, a suprimir o mundo e a luta com a necessidade, quer dizer, suprimir o trabalho com a ciência da vida, com a tecnologia e a educação, com a fruição-saber natural e vital do mundo da liberdade.



quinta-feira, 18 de junho de 2015

Que fazer, aqui e agora, com esse uso público da razão e da liberdade humanas?!




Que interesse existe em interesse? Que existência existe em existir? Para as perguntas sem reposta é preciso desenvolver respostas sem perguntas?! Mas, em geral, logicamente, é impossível responder sem que seja a uma pergunta, melhor, uma resposta sem uma pergunta não é conceitualmente uma resposta porque não responde a uma pergunta, seja porque não existe nem foi feita a pergunta, seja porque não responde à pergunta que existe e que foi feita, mas responde sim a uma pergunta que ou não existe nem foi feita ou é ignorada/incognoscível.


Que é o melhor: ignorar ou saber?


A primeira suposição é que a pergunta sequer se coloca quando o melhor é ignorar, já que simplesmente é ignorada. De modo que a segunda suposição é que ela se coloca quando o pior é saber, posto ser impossível ignorá-la.


No primeiro caso, ainda não se entrou naquilo que, na Bíblia, foi chamado de “ciência do bem e do mal”. Enquanto, no segundo caso, já se entrou precisamente naquilo que foi chamado na Bíblia de “ciência do bem e do mal”. O estado de inocência e de ignorância do bem e do mal se encontram lado a lado, enquanto que o estado de responsabilidade e de conhecimento do bem e do mal também se encontram caminhando lado a lado.


Na Grécia Antiga também se fez relação entre ignorância e saber, inocência e responsabilidade, por exemplo, Epicuro refletia assim “Os animais, que não puderam convencionar algum pacto de não prejudicar nem de ser prejudicado, não recebem justiça nem sofrem injustiça. O mesmo ocorre com os povos que, seja por não poder fazer, seja por não querer fazer, não fizeram tais pactos de não prejudicar nem ser prejudicado.” “A justiça nada é por si mesma; mas no trato comum e recíproco se fazem algumas convenções por todas as partes de não causar nem receber danos.” “A injustiça não é um mal por si mesma, mas pelo medo de que não poderá se ocultar aos castigadores dela.”


A Bíblia estabelece que, depois de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, se passa a ter a responsabilidade de viver às custas do suor do próprio rosto pelo trabalho e a usar roupa para proteger e esconder a nudez, por isso, muitas vezes se interpreta o consumo do fruto como a descoberta e exercício da sexualidade. Mas, antes de ser a sexualidade, ainda que nela mesma esteja presente, parece ser a descoberta no exercício “do trato comum e recíproco" da possibilidade "de causar prejuízo e de ser prejudicado”.


Conhecimento, vergonha, convenção, trabalho, roupa, educação são um conjunto não natural que resulta do uso do artifício e/ou do raciocínio nas relações com as circunstâncias naturais, portanto, são forças humanas modificadoras das circunstâncias naturais e criadoras das circunstâncias convencionais, artificiais ou contextuais. E as forças humanas modificadoras, quer dizer, aquelas que não agem apenas por impulso natural mas que retornando a si agem de forma consciente, com conhecimento de si ou de forma convencional, são, antes de tudo, práticas de trabalho e/ou de disciplina para estabelecer o pacto de não cometer e nem sofrer danos, para estabelecer o pacto liberto do cometer e do sofrer danos, para estabelecer a convenção da liberdade que não comete nem sofre danos, logo, são antes de tudo práticas de trabalho e/ou de disciplina sobre as necessidades naturais que visam não apenas a satisfação das necessidades naturais mas também a saída de suas imposições do cometer e do sofrer danos para um mundo da liberdade de não promover nem sofrer danos.


A oferta do paraíso e a perda do mesmo pelo consumo do fruto da árvore do bem e do mal ou pelo estabelecimento do pacto de não cometer nem sofrer prejuízos e a procura do paraíso e o ganho do mesmo pela prática do trabalho e da disciplina de desenvolver um pacto de não sofrer e de não cometer danos, quer dizer, o pacto de um mundo livre, o pacto de um mundo da liberdade.


A infância e a menoridade são tidas por paradisíacas e, até mesmo, existem leis protegendo a infância e os menores de trabalhar e das responsabilidades dos adultos e dos maiores. Mas o trabalho infantil já foi normal e também o trabalho escravo já foi normal. E, mesmo sendo proibido, o trabalho infantil continua ocorrendo ainda hoje e o mesmo acontece com o trabalho escravo, apesar de também ser proibido.


As lutas contra o trabalho infantil e contra o trabalho escravo também foram lutas pela infância e pela menoridade livres do trabalho e contra o trabalho escravo de maiores sem maioridade, responsabilidade ou liberdade e pelo trabalho livre dos maiores com maioridade, responsabilidade ou liberdade. São as lutas e os trabalhos que libertam e disciplinam ao estabelecer para a infância e a menoridade uma proteção contra os danos do trabalho e da responsabilidade (de cometer e sofrer danos) para quem necessita e muito de atenção e de cuidado para desenvolver o pacto de não cometer nem sofrer danos, de quem precisa muito de cuidado e de atenção para desenvolver o pacto da convenção, do artificio, do raciocínio, de quem precisa muito de cuidado e de atenção para desenvolver a educação, melhor ainda, de quem precisa de cuidado e de atenção para desenvolver a força humana modificadora das circunstâncias naturais e históricas, desenvolver a força humana de trabalho disciplinadora e criadora das circunstâncias naturais e históricas.


Então, a ausência de trabalho infantil e de trabalho escravo bem como a presença da educação infantil, de menores e de maiores são um critério interno, nestas condições sociais humanas, de progressão do pacto de não sofrer nem promover danos, de desenvolvimento do pacto de criação e fruição do mundo da liberdade. As máquinas e, dentre elas, em especial, os computadores, mas também os celulares, os tabletes etc. aproximam os mundos da educação e do trabalho de uma maneira que tende a fazer da educação e do trabalho tradicionais ou existentes até agora algo ultrapassado. Nessas condições fica muito difícil discernir entre educação e trabalho. Mais do que isso entram em crise tanto o mundo da educação quanto o mundo do trabalho. As escolas deixam de existir como lugar de desenvolvimento da autoestima, do mérito e da educação formal. As fábricas, as indústrias e o trabalho formal se reduzem de um modo que parece até que estão a desaparecer e surge como que do nada e se expande ruidosa e globalmente os ditos mercado informal e trabalho informal. Mas também surgem novas experiências educacionais, com escolas que usam a informática e a informalidade no desenvolvimento da autoestima e do mérito, que aproximam educação e trabalho. Novas experiências de formação e de formalização do trabalho no mundo do trabalho que aproximam o trabalhador individual do empreendedor individual, o empregado do patrão sob a forma do trabalhador ser seu próprio patrão, mas isto num mundo que expande o microempreendedor, a microempresa etc. e, ao mesmo tempo, reduz e concentra a grande empresa.


Nas cadeias, onde deveria existir a recuperação do criminoso que não respeita o pacto de não sofrer e não cometer danos, onde deveria, portanto, existir educação e trabalhos voltados para o aprendizado e desenvolvimento do pacto de não promover nem sofrer danos, o que ocorre é o desenvolvimento do crime organizado dividindo os espaços das cadeias de acordo com o domínio das facções, organizações ou grupos criminosos de cada território; o que ocorre é a porosidade total das cadeias de modo que os criminosos comandam suas organizações e introduzem novas modalidades criminosas desde suas celas nas cadeias; não são apenas os celulares que confirmam essa porosidade e permitem a comunicação da cadeia com o mundo mas são os tráficos de armas, de drogas etc. que mostram que as cadeias são espaços de exercícios e aperfeiçoamentos do crime organizado. As cadeias deixaram de ser os ditos e previstos lugares de recuperação do prisioneiro e passaram, cada vez mais, a mostrar, sem nenhuma ocultação, o que elas, como lugares malditos e imprevistos, são: verdadeiras fábricas ou indústrias de produção do crime organizado mas também verdadeiros centros de graduação e pós-graduação em crime organizado.


É ou não é do interesse desses centros de produção e de formação do crime organizado que, cada vez mais, essa produção e formação de criminosos organizados ocorra mais cedo? Ou seja, que, cada vez mais, menores se tornem maiores e adentrem nesses centros de produção e de formação do crime organizado?! Ou, melhor ainda, que tenha início mais cedo essa produção e formação de criminosos por meio de novos estabelecimentos voltados exclusivamente para os menores criminosos que são punidos como maiores por adquirir a maioridade criminal?!


Quando os mundos da educação e do trabalho se aproximam de maneira que máquinas realizam trabalhos facilmente por meio da educação, então se abre a possibilidade de se trabalhar usando quase que exclusivamente a inteligência educacional, logo, de se reduzir a atividade de trabalho que usa quase que exclusivamente o risco e a dureza do trabalho ou também a monotonia e mesmo a burrice do trabalho. Nesses mundos, que se aproximam cada vez mais, estão sendo requeridas mudanças que satisfaçam os sentidos desses mundos da educação e do trabalho.


Do que se reclama atualmente (na França, em especial, se entendo bem o que ouço um amigo que mora lá falar, mas também aqui no Brasil)? Do lado do trabalho? Que ocorreu uma desindustrialização; que ocorreu uma redução da classe operária; que não existem mais as massas operárias de antigamente; que não existe mais trabalho para os jovens; que existe uma crise da previdência por falta de sustentabilidade da mesma num mundo que reduz continuamente a população economicamente ativa. E do lado da educação? Que para grande parte ou, até mesmo, a maioria dos que se formam não existe trabalho; que permanecer estudando a vida inteira nas universidades se tornou uma “profissão”; que grande parte dos jovens que se formam numa ou mais profissões nunca chegará a trabalhar nelas; que desse modo os gastos e os custos da previdência social só aumentam sem que sua base de arrecadação e sustentação pare de se reduzir continuamente.


De imediato se percebe que o ideal para os trabalhadores seria que uma redução do tempo de trabalho fosse acompanhada duma redução da jornada de trabalho. De imediato se seria tentado a dizer que o ideal para os estudantes seria o oposto, ou seja, que uma expansão do tempo de estudo fosse acompanhada duma expansão da jornada de estudo. No entanto, a redução da jornada de trabalho dos trabalhadores levaria estes a usarem seu tempo livre para desenvolver uma jornada de estudo e, desse modo, iriam aumentar em muito a quantidade dos estudantes, os quais no caso duma redução da jornada de trabalho efetivamente significativa iriam experimentar participar do mundo do trabalho, logo, estariam, na verdade, interessados numa redução do tempo de estudos. No entanto, o problema é que com as novas tecnologias os mundos da educação e do trabalho estão se aproximando e a educação parece estar se tornando preponderante para o uso e o desenvolvimento das novas tecnologias, logo, a expansão do mundo da educação interessa a todos e, em especial, ao mundo do trabalho, o qual, por sua vez, só poderá verdadeiramente se beneficiar duma expansão do mundo e do tempo da educação se ocorrer uma drástica e radical redução do tempo de trabalho de modo que o mundo do trabalho se torne ele próprio cada vez mais um mundo da educação, quer dizer, um mundo livre do tempo de trabalho e, para o qual, o tempo livre seja cada vez mais o tempo da educação. Afinal, o tempo da educação era o tempo livre do trabalho da infância e dos menores, mas também foi o tempo livre do trabalho usado pelos filósofos, pelos iluministas, pelos maiores para desenvolver o uso público da razão, da inteligência, do intelecto ou da educação para estabelecer em bases firmes o pacto de não sofrer nem cometer danos, o pacto do mundo da liberdade. Ora, as novas tecnologias criam as possibilidades de um desenvolvimento muito mais amplo, extenso e expansivo do tempo livre do trabalho como tempo da educação e duma educação que entra no mundo do trabalho de um modo que continuamente suprime tempo de trabalho e aumenta tempo livre ou de educação ou de uso público da razão, da inteligência, do intelecto, enfim, aumenta o uso público do tempo de educação, logo, aumenta o uso público do mundo da liberdade que não comete nem sofre danos. Então, porque, ante tais possibilidades de um mundo ou reino da liberdade, caminhamos para o eterno retorno de um mundo ou reino da necessidade que permanece cometendo e sofrendo quebras do pacto de não cometer nem sofrer danos, permanece sofrendo e cometendo danos ao desenvolvimento dum mundo da liberdade?!


O atual debate em torno da lei da maioridade penal para os menores não é revelador precisamente desse eterno retorno da regressão no estabelecimento do pacto de não cometer nem sofrer danos?! Não é revelador da redução de tudo ao simples controle ou repressão duma natureza que não foi nem é ainda capaz de fazer o pacto de não sofrer nem cometer danos?! Não é revelador duma regressão que, em lugar de proteger a infância e os menores com um tempo livre do trabalho e imerso na educação, teme a infância e os menores com tempo livre do trabalho e imerso no crime?! E que soluciona o problema dessa infância e desses menores com tempo livre do trabalho e imersos no crime lançando-os mais fundo no poço do crime, ou seja, nas instituições de recolhimento e aprisionamento que são dominadas pelo crime organizado que nelas produz e forma criminosos graduados e pós-graduados?! Não é revelador de quão pouco o uso público da razão ou da liberdade é efetivamente um uso público da razão ou da liberdade humanas, posto que se revela um uso público duma razão ou duma liberdade que reduz o uso público da razão ou da liberdade humanas mas aumenta o uso público duma razão ou duma liberdade desumanas, quer dizer, políticas?!



Que fazer, aqui e agora, com esse uso público da razão e da liberdade humanas?!



sábado, 6 de junho de 2015

Que fazer?!




Se matar é o ato digno ensinado pelo sátiro que diz que o pior é ter nascido. O sátiro se revela um amigo de Cronos, aquela que come seus próprios filhos. Platão defendia a filosofia como uma preparação para a morte. Essa relação com a morte está inteira na tragédia grega. Nietzsche defende esse filosofar trágico legado pelos gregos.


Que estamos fazendo vivos?! Hegel chega ao absoluto pelo crônico tempo do "ya pasó", mas tanto o saber absoluto quanto o próprio absoluto se encontram no íntimo do "ya pasó", donde conclui Nietzsche que o absoluto/"Deus está morto!". Hegel diz que só quando o sol se põe, quer dizer, só depois da morte completa de algo e que ocorre o voo de Minerva, melhor, que o espírito absoluto se desprende e voa. É a figura da morte e em torno dela que se desenvolve todo esse filosofar. E Prometeu?! Prometeu, aquele que prevê, aparece acorrentado, tendo o fígado devorado por um abutre, sendo lançado num abismo do Cáucaso nas profundezas do Hades, mesmo lugar onde Cronos foi lançado por Zeus, enfim, aparece gritando que quer o fim  de todos os deuses, ou seja, quer o fim da imortalidade dos deuses, quer a morte dos imortais, logo, quer ele próprio a sua própria morte, quer ser liberto pela morte.


Porque tudo isso?! É que a morte é imortal e nunca pára de morrer de modo que a vida que é mortal pára de viver mas como a morte não pára aquilo que ainda não morreu vive e depois que pára de viver uma outra vida mortal vive porque a morte não pára de morrer, quer dizer, a morte não pára de matar a vida, ou seja, a morte imortal não pára de originar a vida mortal, então, é ela, a morte imortal, o absoluto, o divino, a dialética da matéria?!


Tudo morre com uma única exceção, então tudo está sujeito a uma vida mortal com uma única exceção que é a da morte imortal. Mas, a morte imortal não é uma vida imortal porque não é uma vida que não morre e sim uma morte que não vive porque só morre sem nunca parar de morrer, logo, esta morte sem fim vai deixando seu rastro de morte numa miríade de sucessivas vidas mortais. Morte infinita e vidas finitas são um sistema em contínuo funcionamento.


Que fazer?!



quinta-feira, 4 de junho de 2015

Lendo a Resposta de Kant para aprender O que é o esclarecimento?





Não sei se li outras versões deste texto de Kant, mas sei que o último texto que escrevi a respeito, citando inclusive esta tradução, "lê" sobre profissões ("padeiro", "mercador") que não se encontram no texto. Como é fácil "inventar" mesmo cheio de "boas intenções", sem querer prejudicar o autor ou os autores do texto ou textos.


Marx faz referência à época de Frederico no prefácio de sua tese de doutorado e termina sua tese defendendo Epicuro como "o maior filósofo das luzes". E Epicuro dizia que "nenhum sábio é superior a outro sábio em sabedoria" mas a cada um cabe a sabedoria que possui, a sabedoria de sua época. Marx na sua tese critica os jovens hegelianos por suspeitarem de Hegel. E ele defende que não se deve suspeitar da consciência de um mestre supondo que ele agiu com má fé visando manipular seus discípulos porque os sábios ou os mestres filosóficos estão antes de tudo voltados para a sua auto-emancipação e, por isso mesmo, não visam a manipulação dos outros e sim a libertação de si mesmos e, por isso mesmo, também a libertação dos outros. Se se quer apreender com um sábio é preciso antes de tudo confiar na consciência do sábio e procurar conhecer por inteiro sua consciência íntima e essencial e, assim, aprender o que para o sábio era uma consciência externa e desconhecida, o que para o sábio era ignorância de sua sabedoria. No caso de Kant, parece fácil, já que ele diz ignorar, por ser incognoscível, a coisa em si, mas no caso de Hegel que afirma chegar ao saber absoluto, logo, afirma conhecer a coisa em si, já é um pouco mais difícil saber o que é uma consciência exterior e desconhecida para ele. Marx dá a entender que esta consciência exterior e desconhecida para Hegel é aquela da época dos seus discípulos ou sucessores, ou seja, é a consciência da própria época de Marx. Porque ele diz que conhecendo a consciência própria e essencial do sábio se torna possível perceber e vir a conhecer aquela consciência que se encontra fora da consciência íntima e essencial do mestre. A seu ver um mestre filosófico não fica tutelando seus discípulos de maneira manipuladora, senhorial ou exploradora porque ele visa antes de tudo sua própria auto-emancipação e, desse modo, também visa a auto-emancipação dos discípulos porque se limitar sua sabedoria à escravidão de outrem estará ignorando a sabedoria da liberdade e se acorrentando à ignorância da escravidão. Nenhum sábio é superior a outro sábio e cada um vive a sua própria sabedoria - cada um alcança e usufrui da liberdade de sua própria maioridade ou vice-versa, quer dizer, da maioridade da sua própria liberdade, cada sábio alcança e usufrui da sua própria plenitude (Nietzsche diria que cada um realiza efetivamente ou efetiva realmente o seu "eterno retorno", vive e quer plenamente toda a vida que viveu tal qual a viveu).


Saber o que é consciência externa para Kant é mais fácil porque ele diz que só é possível conhecer o fenômeno ou a coisa para nós e que não é possível conhecer o númeno ou a coisa em si. Já Hegel diz que chega ao saber absoluto e, portanto, que conhece o númeno ou a coisa em si, então, qual a consciência exterior a Hegel, o qual chegou, inclusive, ao conhecimento do fim da história?! Marx dá a entender que é aquilo que está fora da consciência íntima e essencial de Hegel e, portanto, aquilo que é ou pertence à consciência íntima e essencial dos seus discípulos ou sucessores, ou seja, é a consciência de uma outra época, mas é também precisamente aquilo que se encontra fora do sistema filosófico íntimo e essencial de Hegel que é o Idealismo Absoluto, logo, começa por ser o Materialismo que se encontra evidentemente fora do Idealismo e ainda o Materialismo Relativo, até por ser sucessor de um Idealismo Absoluto e sem brechas para o Materialismo e por não querer cair no mesmo erro de Hegel de não deixar nenhuma relação com a consciência externa e alheia à sua.




http://criticanarede.com/fil_iluminismo.html

O que é o esclarecimento?1

Immanuel KantI
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. [Aqui se apresenta aquilo que será retomado e desenvolvido por Hegel como dialética do Senhor e do Escravo no capítulo da Consciência de Si da Fenomenologia. Kant apresenta o problema como uso da Consciência de Si ou uso da Consciência de um Outro, o tutor/senhor.]  É a si próprio que se deve atribuir essa menoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro.[Aqui se apresenta aquilo que será retomado e desenvolvido por Marx como movimento de auto-emancipação do proletariado, como "a emancipação dos trabalhadores é obra dos trabalhadores"] Sapere aude!2 Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.



A preguiça e a covardia [não trabalhar e não lutar. Problema: Não trabalhar num mundo de desemprego estrutural como o atual. Problema: Não lutar num mundo onde quase que toda e qualquer luta é suprimida por ser entendida como terror.] são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia (naturaliter majorennes), comprazem-se em permanecer por toda sua vida menores; e é por isso que é tão fácil a outros instituírem-se seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim [as correntes religiosas do Livro {Bíblia, de onde vem biblioteca} e também as filosóficas {kantismo, hegelianismo, marxismo etc.}], um diretor espiritual que possui consciência em meu lugar [padre, pastor, filósofo, dirigente partidário etc.], um médico que decida acerca de meu regime, etc., não preciso eu mesmo esforçar-me [pensar, refletir, estudar, trabalhar, lutar]. Não sou obrigado a refletir, se é suficiente pagar [reino da sociedade civil de mercado]; outros se encarregarão por mim da aborrecida tarefa [tutelados pelo consumo de mercadorias e serviços mercantis]. Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção [os tutores que que querem permanecer senhores não querem que os tutelados façam uso da razão, então eles também não fazem uso da razão porque o uso da razão visa o fim da tutela diz Kant, do senhorial diz Hegel, da exploração do homem pelo homem diz Marx]. Após ter começado a emburrecer seus animais domésticos e cuidadosamente impedir que essas criaturas tranqüilas sejam autorizadas a arriscar o menor passo sem o andador que as sustenta, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentam andar sozinhas [Nietzsche que tanto critica com "surras" esses animais domésticos diz que o perigo que teem pela frente é apenas o da tragédia]. Ora, esse perigo não é tão grande assim, pois após algumas quedas elas acabariam aprendendo a andar; mas um exemplo desse tipo intimida e dissuade usualmente toda tentativa ulterior [Kant tira o espantalho da tragédia que, de certa forma, é o próprio perigo terrível usado pelos tutores, senhores, exploradores].



É portanto difícil para todo homem tomado individualmente livrar-se dessa menoridade que se tornou uma espécie de segunda natureza. Ele se apegou a ela, e é então realmente incapaz de se servir de seu entendimento, pois não deixam que ele o experimente jamais. Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, são os entraves desse estado de menoridade que se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de uma tal liberdade de movimento [Kant também deixa espaço para a tragédia, deve ser daqui que Nietzsche "pegou" a imagem de salto que tanto usa, inclusive, com uma queda mortal, como a do cadáver carregado por Zaratustra]. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa menoridade tendo ao mesmo tempo um andar seguro [os esclarecidos ou libertos são poucos, então, a libertação ainda está no horizonte da luta cotidiana e também no problema desses poucos tenderem a ser mestres e por aí a ocorrência do retorno da menoridade da qual o próprio homem é culpado sob nova forma].



Que um público, porém, esclareça-se a si mesmo, é ainda assim possível; é até, se lhe deixarem a liberdade, praticamente inevitável [aqui ele situa o uso da razão que consegue se situar fora do horizonte da menoridade e dentro do horizonte da maioridade e é precisamente na atividade de auto-esclarecimento, na atividade autodidata de um determinado público {na Grécia Antiga era a atividade do Coro que originou o teatro e da participação na Ágora ou assembléia dos cidadãos que sustentava a Democracia Grega, em todo caso, envolve também o julgamento num tribunal, numa defesa de tese, na aprovação para publicação de um artigo em revista científica etc., quer dizer, envolve a ação aprovada e reprovada numa comunidade, envolve a comun-ic-ação}]. Pois então sempre se encontrarão alguns homens pensando por si mesmos, incluindo os tutores oficiais da grande maioria, que, após terem eles mesmos rejeitado o jugo da menoridade, difundirão o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada homem de pensar por si mesmo [a ideia do liberalismo, da democracia] . O que há de especial nesse caso é que o público, que outrora eles haviam submetido, os forçará então a permanecer nesse estado, por pouco que eles sejam pressionados pelas iniciativas de alguns de seus tutores totalmente inaptos ao Esclarecimento [a democracia resiste ao retorno da ausência de democracia]. O que prova a que ponto é nocivo inculcar preconceitos, pois eles acabam vingando-se de seus autores ou dos predecessores destes [os autocratas acabam sendo superados pelos democratas]. É por esse motivo que um público só pode aceder lentamente ao Esclarecimento [o processo de esclarecimento precisa ser de auto-emancipação]. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir [o problema da hetero-emancipação, da emancipação da menoridade realizada efetivamente pelos tutores e não pelos tutelados, pelos que se encontram e permanecem na menoridade, na escravidão, na exploração].



Esse Esclarecimento não exige todavia nada mais do que a liberdade; e mesmo a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer um uso público de sua razão em todos os domínios [nada mais de acordo com um filósofo do que o uso público da razão, mas também de acordo com a assembléia, com o tribunal, com o teatro, com a defesa de tese, com o debate científico, mesmo com o debate religioso etc.]. Mas ouço clamar de todas as partes: não raciocinai! O oficial [as Forças Armadas sustentam o poder armado do Estado] diz: não raciocinai, mas fazei o exercício! O conselheiro de finanças [as finanças sustentam a manutenção e os gastos do Estado e ainda o novo sistema da Sociedade Civil de mercado]: não raciocinai, mas pagai! O padre [a base do antigo sistema de poder do Estado que se tornou parte do sistema tutelar da nova Sociedade Civil das mercadorias {até um tempo atrás na oração do padre nosso se rezava assim "... perdoai as nossas dívidas como nós perdoamos os nossos devedores..." e hoje é assim "... perdoai as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...", talvez porque o excesso de mercadorias se tornou tal e seu consumo é tão obrigatório que a dívida nem importa mais desde que haja consumo daí que a imposição do consumo ofenda}]: não raciocinai, mas crede! (Só existe um senhor no mundo que diz:raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) [Frederico ou qualquer déspota esclarecido como os czares russos e os reis absolutistas da França]. Em toda parte só se vê limitação da liberdade. Mas que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante freqüência ser estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave particular ao progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que fazemos enquanto sábios [autodidatas e eruditos] para o conjunto do público que lê [a imprensa no sentido de impressão de jornais, leis e livros]. Denomino de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados [existem atividades ou funções na sociedade civil que não impedem o uso privado da razão]. Ora, muitas tarefas que concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los. Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se somente obedecer [outras que não própria nem necessariamente da sociedade civil e sim mais própria e necessariamente do poder político ou do estado, a exceção aí é a que era do poder político ou estado e se tornou exclusiva do poder privado ou civil que é a religião. Kant aqui retoma todos os que dizem não raciocinai e o que diz obedecei]. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal, assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público, no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam afetadas. Desse modo, seria muito nocivo que um oficial, tendo recebido uma ordem de seus superiores, ponha-se durante seu serviço a raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade dessa ordem; ele só pode obedecer. Mas não se pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, fazer observações sobre as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de seu [aqui ele se refere a um público interno] público [como erudito ele se manifesta de modo que as forças armadas possam se aperfeiçoar, progredir, se desenvolver]. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; a crítica insolente de tais impostos no momento em que ele tem a obrigação de pagá-los pode até ser punida como um escândalo (que poderia provocar rebeliões gerais). Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo injustas [aqui já se trata do público em geral de um Estado que é todo e qualquer cidadão que fala de sua experiência de cidadão ou fala como erudito. Também porque a nova Sociedade Civil, a de mercado capitalista, se baseia na economia]. Do mesmo modo, um padre está obrigado diante de seus catecúmenos e sua paróquia a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele serve; pois ele foi empregado sob essa condição. Mas, enquanto erudito, ele dispõe de liberdade total, e mesma da vocação para tanto, de partilhar com o público todas suas idéias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem da religião e da Igreja. Não há nada aí que seja contrário à sua consciência. Pois o que ele ensina em virtude de sua função enquanto dignitário da Igreja, ele o expõe como algo que ele não pode ensinar como quiser, mas que é obrigado a expor segundo a regra e em nome de uma outra. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto ou aquilo; eis as provas das quais ela se serve. Ele extrairá em seguida todas as vantagens práticas, para sua paróquia, dos preceitos os quais, por sua parte, ele não subscreve com convicção total, mas que ele expõe de modo sólido, pois não é impossível que haja neles uma verdade oculta, e em todo caso, nada há ali que contradiga a religião interior. Pois, se ele julgasse encontrar tal coisa, não poderia em consciência exercer sua função; deveria demitir-se [as discordâncias religiosas podem ser expressas publicamente sem que o padre perca sua fé, mas caso a perca, então ele deve abandonar/sair da Igreja]. O uso, portanto, que um pastor [aqui do padre se passa para o pastor, então do catolicismo e passa para o protestantismo ou a Reforma, que já é um tipo de uso público da razão em contradição com o poder do catolicismo de então] em função faz de sua razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma assembléia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que, por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome [a fé fica limitada ao uso privado da razão e no uso público ela não atua para coibir ou impor quaisquer de seus dogmas]. Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.



Entretanto, uma sociedade de eclesiásticos, um sínodo, por exemplo, ou uma Classe (como são chamados entre os holandeses) não deveriam ter o direito de comprometer-se mutuamente por juramento sobre um certo símbolo imutável, para assim manter sob tutela superior permanente cada um de seus membros e, graças a eles, o povo, e desse modo perenizar tal tutela? Digo que é absolutamente impossível. Tal contrato, concluído para proibir para sempre toda extensão do Esclarecimento ao gênero humano, é completamente nulo e para todos os efeitos não ocorrido, tivesse sido implementado mesmo pelo poder supremo, pelas Dietas do Império e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas decisões tomadas de maneira ilegítima e criminosa. A pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua qualidade de erudito, a fazer publicamente, isto é, por escrito, suas observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso mantida a ordem introduzida. E isso até que a compreensão de tais coisas esteja publicamente tão avançada e confirmada a ponto de, reunindo as vozes de seus defensores (nem todos, com certeza), trazer diante do trono um projeto: proteger as paróquias que se julgassem a respeito de uma instituição da religião modificadas segundo suas concepções, sem prejudicar contudo aquelas que quisessem manter-se na situação antiga. Mas é simplesmente proibido acordar-se sobre uma constituição religiosa imutável, a não ser contestada publicamente por ninguém, mesmo que fosse o tempo de duração de uma vida, e anular literalmente, desse modo, todo um período da marcha da humanidade em direção à sua melhoria, e torná-la não só estéril, mas ainda prejudicial à posteridade. Um homem pode, a rigor, pessoalmente e, mesmo então, somente por algum tempo, retardar o Esclarecimento em relação ao que ele tem a obrigação de saber; mas renunciar a ele, seja em caráter pessoal, seja ainda mais para a posteridade, significa lesar os direitos sagrados da humanidade, e pisar-lhe em cima. [defesa explícita da Reforma e da novidade advinda com ela: a emancipação política!]



Mas o que um povo não é sequer autorizado a decidir por si mesmo, um monarca tem ainda menos o direito de decidir pelo povo; pois sua autoridade legislativa repousa precisamente sobre o fato de que ele reúne toda a vontade popular na sua. Se ele propõe apenas conciliar toda verdadeira ou pretensa melhoria com a ordem civil, ele só pode, por outro lado, deixar a cargo de seus súditos o que eles estimam necessário para a salvação de sua alma; isto não lhe diz respeito. Em contrapartida, ele deve velar para que ninguém impeça a outro pela violência de trabalhar com todas suas forças para a definição e promoção de sua salvação. Ele prejudica à sua própria majestade quando intervém nesses assuntos, como se concernissem à autoridade do governo os escritos nos quais seus súditos tentam esclarecer sua idéia, ou quando age por sua própria vontade e se expõe à censura de Caesar non est supra Grammaticos4 . É também, e mais ainda, o caso quando ele rebaixa seu poder supremo defendendo contra o resto de seus súditos o despotismo eclesiástico de alguns tiranos em seu Estado. [defesa da emancipação política da separação da Igreja e do Estado, da Fé e da Razão]



Quando se pergunta, portanto: vivemos atualmente numa época esclarecida? A resposta é: não, mas numa época de esclarecimento.[a emancipação política permite apenas que um público dê início a sua auto-emancipação mas só a auto-emancipação humana poderá vir a realizar o esclarecimento, a época esclarecida] Muito falta ainda para que os homens, no estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem [sem padres, pastores, sacerdotes]. Mas que, desde já, o campo lhes esteja aberto para mover-se livremente, e que os obstáculos à generalização do Esclarecimento e à saída da menoridade que lhes é auto-imputável sejam cada vez menos numerosos, é o que temos signos evidentes para crer. A esse respeito, é a época do Esclarecimento, ou o século de Frederico[o déspota esclarecido, aquele que defende que se raciocine livremente desde que se obedeça, quer dizer, que defende o uso público da Razão e o uso privado da Fé desde que se respeite a lei secular/racionalmente instituída. Na tese de doutorado de Marx existe uma referência elogiosa a esse período da Alemanha. Aliás, ele termina a tese defendendo Epicuro como "o maior filósofo das luzes"]


Um príncipe que não julga indigno de si mesmo que ele considere como um dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, que lhes deixa sobre esse ponto uma liberdade total, e recusa, no que lhe diz respeito, o orgulhoso termo de tolerância, é ele mesmo esclarecido, e por ter sido o primeiro a libertar o gênero humano de sua menoridade, pelo menos no que concernia ao governo, e por ter deixado a cada um livre de se servir de sua própria razão em todas as questões de consciência, merece ser louvado pelo mundo que lhe é contemporâneo, e pelo futuro agradecido. Sob seu reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar livre e publicamente ao exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos símbolos adotados; melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se encontram limitados por seu dever de função. Esse espírito de liberdade estende-se também ao exterior, mesmo onde deve lutar com os obstáculos externos de um governo que ignora sua verdadeira missão. Pois mostra a este, por seu exemplo brilhante, que ali onde reina a liberdade nada há a temer para a tranqüilidade pública e unidade do Estado. Os homens procuram libertar-se de sua grosseria, por pouco que não se esforcem para mantê-los artificialmente em tal condição. [elogio da emancipação politica, o elogio do dever assumido por Frederico também é o elogio da filosofia da razão prática de Kant que assume sua efetivação como dever cumprido da coisa pública para nós da liberdade da coisa privada em si]


Situei o alvo principal do Esclarecimento, a saída do homem da menoridade da qual ele próprio é culpado, principalmente no domínio da religião: pois, em relação às ciências e às artes, nossos soberanos não se interessaram em desempenhar o papel de tutores de seus súditos. Além disso, essa menoridade à qual me referi, além de ser a mais nociva, é também a mais desonrosa. Mas a reflexão de um chefe de Estado que favorece o Esclarecimento vai mais longe e vê bem que, mesmo a respeito da legislação, não há perigo em autorizar seus súditos a fazer publicamente uso de sua própria razão, e em expor ao mundo suas idéias sobre uma melhor redação das leis, mesmo que seja com ajuda de uma crítica franca das já existentes; é disso que temos um exemplo brilhante, que nenhum outro monarca a não ser aquele que veneramos forneceu ainda. [elogio da emancipação política]



Mas somente aquele que, além disso, ele mesmo esclarecido, não teme as trevas, mas ao mesmo tempo tendo sob o comando um exército numeroso e bem disciplinado, garantia da tranqüilidade pública, pode dizer o que um Estado livre não ousa dizer:raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei! Revela-se assim uma marcha estranha, inesperada das coisas humanas; de todo modo, aqui como em todo lugar, quando se considera globalmente, quase tudo o que há nisso é paradoxal. Um grau mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos elevado daquela proporciona a este em contrapartida a possibilidade de estender-se de acordo com suas forças. Quando, portanto, a natureza libertou de seu duro envoltório o germe sobre o qual ela vela mais ternamente, isto é, a inclinação e a vocação para pensar livremente, então essa inclinação age por sua vez sobre a sensibilidade do povo (graças à qual este se torna cada vez mais capaz de ter a liberdade de agir) e finalmente, também sobre os princípios do governo, que encontra o seu próprio interesse em tratar o homem, que doravante é mais do que uma máquina, na medida de sua dignidade.* [elogio da emancipação política enquanto condição de possibilidade de um avanço para o advento da auto-emancipação humana, aquela que supera e suprime a máquina do Estado por não ser o humano reduzido a mero componente da mesma, quer dizer, por ser mais do que uma máquina]
Immanuel Kant
Königsberg, Prússia, 30 de setembro de 1784

Notas do autor

  1. O crítico da "Berlinischer Monatschrifft" coloca de início a seguinte observação: "É conveniente que a união conjugal fique sob a sanção da religião?" E o reverendo Sr. Zöllner: "O que é o Esclarecimento?" Essa questão é aproximadamente a seguinte: o que é a verdade, é preciso responder a essa questão para que o homem se julgue esclarecido! E ainda não vi ninguém que tenha respondido a isso!
  2. Na revista semanal de Büsching de 13 de setembro, leio hoje, 30 do mesmo mês, o anúncio da Berlinische Monatsschrift deste mês, na qual é anunciada a resposta do senhor Mendelssohn à mesma questão. Ainda não a tive entre as mãos; senão teria segurado a presente, cujo único interesse é agora o de tentar mostrar o que o acaso pode conter de concordância entre pensamentos.

Notas do tradutor

  1. O termo "Esclarecimento" foi preferido ao termo "Iluminismo" para traduzir a palavra alemã Aufklärung. O termo tem sido adotado em traduções brasileiras, como na obraDialética do Esclarecimento, traduzida por Guido Antonio de Almeida (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985). À pergunta: "Vivemos em uma época esclarecida?", Kant responde: "Não, vivemos em uma época de Esclarecimento"! A substituição por Iluminismo faria perder essa conotação. A tradução foi feita a partir do alemão, e apoiou-se em tradução anterior de Floriano de Souza Fernandes (Kant, I. Textos seletos.Petrópolis: Vozes, 1974) (N.T.).
  2. "Ousa saber!" Horácio, Epistulae, livro 1, carta 2, verso 40.
  3. Klassis, termo neerlandês que servia para designar os sínodos ou reuniões de tipo eclesiástico.
  4. "César não está acima dos gramáticos".
  5. Trata-se de Frederico II, o Grande, rei da Prússia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet
PUC-Campinas e Universidade São Marcos (Brasil)
Grupo de Pesquisa Ética e Justiça
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