quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

As notas do materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx




               IV

“DIFERENÇA GENÉRICA ENTRE
  
OS PRINCÍPIOS DAS FILOSOFIAS DA 

NATUREZA

DE DEMÓCRITO E  DE  EPICURO


 “Notas:


“1. Quanto ao fato de este procedimento moral vencer todo o desinteresse teórico ou prático, encontramos uma estarrecedora prova histórica na biografia de Marius escrita por Plutarco. Depois de descrever o terrível fim dos Cimbros, conta-nos que o número de cadáveres era tal que os Massaliotas podiam utilizá-los como adubo em suas vinhas. Acrescenta que, tendo chovido posteriormente, esse ano se tornou o mais fértil em vinhos e em frutos. Quais são as reflexões a que se entrega o nobre historiador a propósito da desaparição trágica desse povo? Plutarco acha moral que Deus tivesse deixado morrer e apodrecer todo um nobre povo a fim de dar aos pobres de espírito marselheses uma rica colheita de frutos. Assim, até mesmo a transformação de um povo num monte de estrume pode constituir uma ocasião para os deleites do devaneio moral.


“ 2. Mesmo no que diz respeito a Hegel, é uma prova de ignorância da parte dos seus discípulos entenderem qualquer determinação do seu sistema como uma adaptação cômoda, numa palavra, moralmente. Esquecem que ainda não há muito tempo, como se pode demonstrar de forma evidente a partir de suas próprias obras, eles aderiam com entusiasmo a todas estas determinações unilaterais.


“Se tivessem sido realmente seduzidos pela ciência que recebiam já acabada ao ponto de se lhe entregarem de com uma confiança ingênua e não crítica, qual não seria a sua falta de consciência ao censurarem o seu mestre por manter uma intenção escondida, ele para quem a ciência não estava terminada mas sim em devir, e que não descansou enquanto não atingiu os limites extremos desta ciência. Lançam a suspeita sobre si mesmos e fazem crer que anteriormente não tomavam a coisa a sério; é seu próprio passado que combatem julgando combater Hegel. Mas esquecem, ao fazê-lo, que ele estava numa relação imediata e substancial com seu sistema, ao passo que eles se encontram, relativamente a este sistema, numa posição de reflexão.


“Que um filósofo cometa uma inconsequência por comodismo, é compreensível; até pode ter consciência disso. Mas aquilo de que pode não ter consciência é que a possibilidade de uma tal acomodação aparente tem a sua origem mais profunda numa insuficiência ou numa compreensão insuficiente do princípio de que parte. Se tal acontecer a um filósofo, os seus discípulos devem explicar a partir da consciência íntima e essencial desse filósofo o que nele apresentava a forma de uma consciência exotérica. Desse modo, o que constitui um progresso da consciência é simultaneamente um progresso da ciência. Não se suspeita da consciência particular do filósofo; descobre-se a forma essencial dessa consciência, atribui-se-lhe uma caracterização e um significado determinados e, desse modo, ela é ultrapassada.


“Aliás, considero esta viragem para a não-filosofia manifestada por grande parte da escola hegeliana como um fenômeno que acompanhará sempre a passagem da disciplina para a liberdade.


“Constitui uma lei psicológica o fato do espírito teórico que se torna livre em si mesmo se transformar em energia prática, sair como vontade do reino das sombras do Amênti e voltar-se contra a realidade mundana que existe sem ele. (Mas é importante, do ponto de vista filosófico, especificar-se os diversos aspectos desta relação, dado que a partir da forma concreta como se efetua esta conversão é possível remontar àquilo que a provocou e ao caráter histórico e mundial de uma filosofia. Por assim dizer veremos aí seu curriculum vitae reduzido ao essencial, levado à sua caracterização subjetiva). Mas a prática da filosofia é em si mesma teórica. É a crítica que mensura da existência singular à essência, da realidade efetiva particular à ideia. [Optei pela versão francesa da tradução desta frase]. Mas esta realização imediata da filosofia é, na sua essência mais imediata, atormentada por contradições: e esta essência, que é sua, toma forma no próprio fenômeno imprimindo-lhe seu selo.


“Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo dos fenômenos, o sistema transforma-se numa totalidade abstrata, num lado do mundo a que se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, ao desejar realizar-se entra em luta com o Outro. A autossatisfação e a perfeição que a caracterizavam desaparecem; e o que era luz interior torna-se chama devoradora voltada para o exterior. Como consequência o devir-filosófico do mundo é simultaneamente um devir-mundano da filosofia, a sua realização efetiva é a sua perca e o que ela combate no exterior não é mais do que o seu defeito interior. É precisamente no decorrer desta luta que a filosofia acaba por cair nas fraquezas que combatia no seu contrário. Aquilo que se lhe opõe e o que combate não são mais do que ela própria, encontrando-se os fatores simplesmente invertidos.


“Este é o primeiro aspecto, o que resulta de considerarmos a questão de um ponto de vista puramente objetivo, como a realização imediata da filosofia. Mas apresenta igualmente um aspecto subjetivo. É a relação do sistema filosófico efetivamente realizada, com seus suportes espirituais, com as consciências de si particulares que refletem o seu progresso; é uma consequência da relação que faz com que a filosofia, na sua realização imediata, se oponha ao mundo, que as consciências de si particulares tenham duas exigências opostas, uma contra o mundo e outra contra a própria filosofia. Com efeito, o que aqui surge como uma relação invertida é para elas uma exigência e um ato duplos, em contradição consigo mesmos. Libertando o mundo da não-filosofia, estas consciências libertam-se a si próprias da filosofia que, enquanto sistema determinado, as acorrentava. Mas como elas só são concebidas no ato e na energia imediata do desenvolvimento e não ultrapassaram ainda, sob o ponto de vista teórico, este sistema, apenas se ressentem da contradição plástica da identidade-de-si-mesma com o sistema; e, não se apercebem de que se revoltando contra ele, não fazem mais do que realizar lhe efetivamente os diversos momentos.



“Finalmente, este ser-desdobrado da consciência de si filosófica se apresenta como a luta de duas tendências que se opõem da forma mais extrema, e em que uma, a parte (o partido, na versão francesa) liberal, tal qual a podemos designar genericamente, se atém, como determinação principal, ao conceito e ao princípio da filosofia, enquanto que a outra defende o não-conceito, o momento de realidade. Esta segunda tendência é a da filosofia positiva. A atividade da primeira consiste na crítica, isto é, no voltar-se-para-o-exterior da filosofia, a atividade da segunda é a tentativa de filosofar ou seja, o ato de se-voltar-para-si da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente à filosofia enquanto a primeira o concebe como defeito do mundo que é preciso tornar filosófico. Cada uma delas faz precisamente aquilo que não quer fazer; e acaba por realizar o que a outra se propõe. Mas a primeira tem consciência, no seio da sua própria contradição, do princípio em geral e do seu objetivo. Na segunda surge o capricho, por assim dizer a loucura, como tal. No que respeita ao conteúdo, só a parte (o partido, na versão francesa) liberal, a que defende o conceito, pode chegar a progressos reais, enquanto que a filosofia positiva só consegue elaborar exigências e tendências cuja forma contradiz o significado.


“Logo, o que nos surge como uma relação invertida e uma divisão hostil da filosofia e do mundo torna-se em seguida uma cisão da consciência de si particular contida em si mesma e, finalmente, uma separação exterior é um ser-desdobrado sob a forma de duas tendências filosóficas opostas.


“É lógico que surja ainda uma multidão de formações subordinadas, lamuriantes, sem individualidade, que se abrigam por trás de uma gigantesca figura filosófica do passado – mas não tarda para que nos apercebamos do asno sob a pele do leão, pois a voz lacrimejante de um manequim do passado e do presente transparece, num contraste cômico, sob a poderosa voz que atravessa os séculos (a de Aristóteles, por exemplo) e da qual ela se arvorou despropositadamente em arauto; é como se um mudo pretendesse arranjar voz socorrendo-se de um enorme altifalante – ou como se um liliputiano de binóculos, instalado num cantinho do traseiro de um gigante, anunciasse ao mundo, todo maravilhado, a extraordinária perspectiva que alcança de seu punctum visus (ponto de vista), e fazendo os mais ridículos esforços para explicar que não é no coração palpitante mas na sólida e firme região onde se encontra que se situa o ponto de Arquimedes ( stó: no qual devo estar), ponto do qual o mundo está suspenso por dobradiças. Assim nascem filósofos-cabelos, filósofos-unhas, filósofos-excrementos, etc., que no homem-mundo de Swedenborg ainda ocupariam um lugar inferior. Mas, de acordo com a sua essência, todos esses mini-moluscos caem, como se estivessem no seu elemento, nas duas direções que indiquei. Quanto a essas, explicarei noutro local e de forma mais completa as suas relações recíprocas e com a filosofia hegeliana, assim como os diversos momentos históricos nos quais se verifica este desenvolvimento. ”

Por ter sido um dos capítulos perdidos da tese de Marx é evidente que ignoramos seu conteúdo. Porém, restaram duas notas escritas do próprio punho de Marx, quer dizer, expressando o pensamento dele mesmo e são elas que nos levam a fazer suposições a respeito do assunto do capítulo. Não se pode dizer que o assunto presente nestas notas seja o assunto de todo este capítulo, mas, sem dúvida, se pode dizer que parte considerável e, até mesmo, essencial do capítulo está presente no assunto destas notas.


Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido, o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica.  “E qual é a moral da história? ” A prova é a resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal “moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.


A segunda nota é bem extensa, mas também começa com este mesmo interesse teórico e prático focado no tal procedimento moral. A caracterização deste procedimento moral como acomodação é algo conhecido e é argumento usado por muitos. Por isso, na segunda nota, a posição crítica de Marx, aos discípulos de Hegel, que o acusam de agir comodamente, quer dizer, de acordo com este procedimento, mostra a existência de uma sutileza e/ou de um rodeio que critica a crítica dos discípulos de Hegel que o acusam de agir tal qual Plutarco em relação a determinações de seu sistema. Para estes discípulos Hegel privilegiava umas determinações em detrimento de outras, já que, desse modo, o seu sistema se mostraria privilegiado em detrimento de outros e seria festejado. Marx considera que estes discípulos é que receberam o sistema de Hegel como um sistema vitorioso e privilegiado, estes discípulos é que aceitaram entusiasmados o sistema de Hegel em detrimento do sistema de outros. Então, para Marx foram os discípulos que aderiram ao sistema de Hegel como quem adere à moral da história, quer dizer, como quem adere ao sistema festejando sua vitória e privilégio. E Marx faz esta crítica a partir igualmente de prova histórica, como na prova histórica do escrito de Plutarco, ou seja, parte dos escritos destes discípulos quando aderiram a Hegel. Marx considera que estes discípulos não estão capacitados para criticar Hegel, já que considera que um verdadeiro discípulo de Hegel, caso aventasse a possibilidade de uma acomodação do seu mestre, trataria de se aproximar ainda mais do sistema de Hegel para conhecer a própria consciência de Hegel e, desse modo, compreender aquilo que nesta consciência permanece isento de crítica do sistema filosófico, quer dizer, permanece existindo no sistema filosófico como determinação de uma consciência exotérica, como determinação de uma consciência exterior ao sistema filosófico, portanto, como determinação não-filosófica presente no sistema como tal porque a consciência íntima do filósofo autor do sistema chegou no seu limite filosófico. Então, a tarefa de ir adiante na crítica do que está fora do sistema filosófico, quer dizer, na crítica do que existe como determinação não-filosófica ou positiva cabe ao discípulo ou aos discípulos que tenha ou tenham feito esta aproximação e conhecimento íntimo de seu mestre.


É aí que ele avança para esta passagem da intimidade com a consciência do autor do sistema para a intimidade com a sua própria consciência e/ou com as consciências dos demais discípulos que, como ele, estão se voltando para a crítica do que permanece fora do sistema, para a crítica da não-filosofia. Noutras palavras, para ir além e avançar o sistema filosófico é preciso avançar para a crítica do que permanece não-filosófico. Neste sentido é preciso mudar a crítica do campo filosófico para o campo não-filosófico. E, aliás, é isto que está acontecendo tanto com os discípulos que acusam Hegel de acomodação quanto com os discípulos que, à maneira de Marx, conhecem o mestre na intimidade e respeitam os limites de sua consciência pessoal, quer dizer, sabem com o mestre o que é aquilo que ele mesmo considerou que estava fora e além dos limites de sua consciência filosófica íntima.


Ambos estão participando do mesmo movimento de viragem para a não-filosofia, mas de forma diferenciada. O movimento do qual participam é o mesmo movimento comum de passagem da filosofia para a não-filosofia, de passagem da disciplina para a liberdade. Como se explica este movimento comum dos discípulos de um sistema filosófico de sair da filosofia para entrar na não-filosofia?


Marx explica o movimento de saída da filosofia para a não-filosofia como resultante de uma lei psicológica no sentido de uma consequência necessária do espírito teórico que fica livre em si mesmo, ou seja, os discípulos que se tornam livres em si mesmos transformam essa liberdade em energia prática ou em vontade e se lançam na realidade que existe sem sua liberdade teórica. Porém, estamos vendo uns discípulos se lançando sobre o mundo por se libertarem do sistema acomodado e suspeito do mestre, enquanto outros se lançam sobre o mundo depois de alcançar a liberdade mais completa de desenvolvimento e compreensão do sistema do mestre.


Daí que ele argumente que é preciso especificar mais os lados desta relação porque dependendo da forma concreta que assume a conversão da teoria em prática é possível saber aquilo que originou esta conversão e também ver aí o seu curriculum vitae, à maneira do filme “Ovo da Serpente” de Ingmar Bergman. Um lado teórico se converte em lado prático porque não vai mais ser prisioneiro de um sistema falso, acomodado e suspeito, quer dizer, de um espírito filosófico que não desenvolve a liberdade porque não passa de um sistema de prisioneiro da falsidade, da acomodação e da suspeita. Outro lado teórico se converte em lado prático porque chegou ao máximo de liberdade dentro do sistema filosófico e para usufruir desta liberdade precisa desenvolver e realizar esta liberdade na prática mundana. Por isso, Marx observa que a prática da filosofia é ela mesma teórica e que é a crítica que mensura se a conversão prática da filosofia está mesmo realizando e desenvolvendo a teoria da filosofia, quer dizer, mensura se a conversão da filosofia em prática de existência singular e da realidade efetiva particular é mesmo a teoria da filosofia, quer dizer, é mesmo a essência ou a ideia da filosofia. Só que esta mensuração da “realização imediata da filosofia é na sua essência mais íntima atormentada por contradições e esta essência que é sua toma forma no fenômeno e lhe imprime seu selo”.  Um lado da conversão é o dos discípulos que rompem com o mestre, por isso, eles pretendem realizar algo que seja efetivamente uma ruptura com a filosofia do mestre, logo, algo que seja exclusivamente deles e não do mestre, precisamente porque estão insatisfeitos com as realizações que fizeram, às quais consideram consequência de suas prisões teóricas no sistema do mestre; desse modo, se continuar a aparecer, na realização imediata da conversão da teoria em prática, aquilo que pode ser chamado de sobrevivências do falso sistema do mestre, então eles argumentarão que precisam aprofundar o corte epistemológico com a teoria do mestre para vir a inovar teoricamente na prática, quer dizer, vir a inovar na prática com a teoria deles próprios discípulos e não mais com a teoria do mestre.


O outro lado da conversão é dos discípulos que dão continuidade à liberdade que aprenderam e desfrutaram com o mestre e é por isso que eles se propõem a levar a prática da liberdade mais adiante, para além da teoria do sistema filosófico, porque querem mais do que a liberdade teórica do sistema filosófico, querem a liberdade teórica do sistema filosófico na liberdade prática fora do sistema filosófico. Estes discípulos trazem efetivamente para a prática do mundo não-filosófico a realização e a continuidade da liberdade teórica do sistema filosófico.


Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a ruptura e o corte epistemológico com o sistema do mestre são aqueles discípulos ressentidos com o mestre e com o sistema filosófico do mestre.


Aqueles discípulos que pretendem levar para a prática a liberdade teórica conquistada e desenvolvida pelo mestre e pelo seu sistema são aqueles discípulos que se satisfizeram e se libertaram com o mestre e com o sistema filosófico do mestre.


Mas este movimento comum dos discípulos da vontade voltada contra o mundo se mostra movimento da totalidade abstrata do sistema de Hegel, que como tal, se opõe ao mundo como um lado do mundo ao qual se opõe outro lado. Marx caracteriza esta como uma “relação de reflexão”. Ele, antes, disse que os discípulos, que acusam Hegel de nutrir más intenções, esquecem que Hegel se encontrava numa relação imediata e substancial com seu sistema, enquanto que os discípulos se encontram numa relação de reflexão. Hegel se encontrava numa relação de imediata autossatisfação e perfeição circular com o seu sistema, enquanto que os discípulos, no seu conjunto, se encontram numa relação de mediação, seja porque a condição na qual se encontram é a de discípulos, portanto, uma relação com o sistema mediada pelo mestre e autor do sistema, seja porque o sistema, no momento ou época dos discípulos, já não é uma totalidade abstrata que abrange e contém a filosofia e o mundo, mas sim uma totalidade abstrata, mediada pelo mestre e o mundo do mestre, desenvolvida pelos discípulos como tal e contra o mundo dos discípulos que ainda não foi mediado por esta totalidade abstrata. Então, o que vem à tona é a atividade crítica voltada para o exterior, seja para um “exterior interno”, que é o sistema do mestre, seja para o exterior propriamente dito, que é o mundo dos discípulos. É a este último que Marx ainda está se referindo ao descrever o movimento de conversão do conjunto dos discípulos de um sistema, ressaltando aí que o defeito que combatem no mundo (que é o mundo dos discípulos) é o mesmo defeito que possuem na filosofia (estão numa relação mediada com o sistema) “no curso desta luta” a totalidade abstrata dos discípulos “cai nas fraquezas que ela combatia como fraqueza no seu contrário, não podendo suprimir estas fraquezas sem cair nelas. O que se opõe a ela e o que ela combate é sempre aquilo que ela é ela-própria, encontrando-se os fatores apenas invertidos”. Isso é um niilismo?! Sim e não. Olhando de um ponto de vista puramente objetivo parece que sim. Mas, mesmo aí, estamos diante de que fenômeno? Existe um sistema filosófico de um filósofo cuja prática teórica pura já não satisfaz mais os discípulos que tratam de convertê-lo em prática teórica prática/impura, quer dizer, que tratam de converter o sistema teórico em sistema prático. Porque? Porque a prática teórica dos discípulos não é mais imediata e substancial, quer dizer, pura prática teórica. Não, antes de tudo eles precisam ser disciplinados pela prática teórica do mestre, então a prática teórica deles não imediata e sim mediada pela do mestre nem é livre e sim disciplinada pela prática teórica do mestre. Eles querem ser mestres, eles querem uma prática teórica imediata e livre, quer dizer, deles próprios. Ora, o defeito de não ter seu próprio sistema é dos próprios discípulos e não do mestre e o mundo que não é nem tem seu próprio sistema filosófico é o mundo deles mesmos discípulos. O mundo sistêmico do mestre era uma perfeição circular, mas o mundo sistêmico dos discípulos é a quebra da perfeição circular e a efetivação da imperfeição circular, a qual, precisa ser percorrida para alcançar a perfeição e/ou a saída efetiva da circularidade, ainda que, mesmo assim, no fim se afirme a circularidade: só é possível suprimir as imperfeições ou fraquezas caindo nelas.


Isto tudo se torna mais compreensível se olhado do ponto de vista subjetivo, que é o da relação do sistema filosófico, que efetivamente se realiza, com as consciências de si singulares ou os suportes espirituais individuais, nos quais aparece seu progresso.  Os sujeitos então mostram o progresso do sistema filosófico, logo, se estão atrasados precisam se entregar ao sistema filosófico e combater o atraso mundano deles, mas se estão adiantados já se entregaram ao sistema filosófico e precisam combater o atraso mundano dos outros que não se entregaram ainda ou suficientemente ao sistema filosófico. Se estão atrasados precisam se entregar ao sistema filosófico e combater o atraso deles mesmos e também o atraso dos outros. Se estão adiantados precisam combater o atraso dos outros, mas também desenvolver o avanço deles mesmos para além do sistema filosófico. A situação dos atrasados é a de entrega ao sistema filosófico e combate ao próprio atraso mundano e ao atraso mundano dos outros, então é muito mais uma situação de conversão sujeito mundano em teoria filosófica do que do sujeito filosófico em prática mundana. Já a situação dos adiantados é precisamente a que está em foco aqui no texto de Marx. Porque os adiantados são os discípulos, quer dizer, os sujeitos filosóficos voltados para converter a teoria filosófica em prática mundana, quer dizer, os sujeitos filosóficos em sujeitos mundanos. É aí que entra a avaliação que fazem da sua condição de adiantados, de modo que se consideram responsáveis pelo avanço do sistema filosófico no mundo, seja porque acham que já ultrapassaram o sistema, seja porque acham que precisam realizar o sistema para ultrapassá-lo. Se acham que já ultrapassaram o sistema, então vão contra ele e a favor da ultrapassagem sistêmica que fizeram, quer dizer, a favor do sistema deles mesmos. Porém, como o momento deles é o da conversão, então ainda não ultrapassaram o sistema e se encontram no momento de realizar o sistema para poder ultrapassar o sistema. Os que acham que já ultrapassaram o sistema vão contra a filosofia, enquanto sistema hegeliano, e contra o mundo sem o novo sistema que desenvolvem ou desenvolveram. Os que avaliam que precisam realizar o sistema hegeliano para ultrapassar o sistema hegeliano vão a favor da filosofia para ir contra a filosofia enquanto sistema determinado, por outro lado, vão contra o mundo para poder realizar o sistema filosófico determinado e, assim, vão a favor do mundo além da realização do sistema filosófico determinado.


Os discípulos, que desde o início estão num mesmo movimento de maneira diferenciada, finalmente, nesse processo de conversão da filosofia em mundo, convertem as duas tendências, do movimento de conversão da filosofia em mundo, em dois lados do mundo. Desse modo, a filosofia se converte em mundo, via diferenciação em duas tendências filosóficas antagônicas convertidas em dois lados do mundo, logo, o mundo, propriamente dito, está suprimido porque foi convertido pelas duas tendências em dois lados do próprio mundo. E a filosofia, propriamente dita, que está se convertendo em dois lados do mundo, também está sendo suprimida no movimento que a converte em mundo, já que as duas tendências da filosofia se tornaram tendências do mundo.


Mas é aqui e agora que a contradição fica clara, porque as duas tendências filosóficas aparecem como dois partidos filosóficos. Um partido é aquele que parte do conceito do sistema filosófico, logo, da compreensão íntima do sistema filosófico, portanto, parte da compreensão da consciência íntima do filósofo autor do sistema. O outro partido é aquele que parte do momento de realidade em oposição ao sistema filosófico, logo, da compreensão do momento de realidade exterior ao sistema filosófico, portanto, parte da compreensão da consciência do momento de realidade exterior à consciência do filósofo autor do sistema filosófico. O partido do conceito se volta para a atividade de crítica do momento de realidade e o partido do momento de realidade se volta para a atividade de crítica do conceito. Fazendo a crítica do mundo o partido do conceito se realiza como prática mundana da filosofia (do conceito) e fazendo a crítica da filosofia o partido do momento de realidade se realiza como prática da filosofia positiva (do momento de realidade). Enquanto movimento geral de conversão da filosofia/teoria em mundo/prática a avaliação de Marx é que o partido do conceito realiza efetivamente a conversão, quer dizer, a emancipação/libertação do sistema filosófico na realização prática, enquanto que o partido do momento de realidade realiza efetivamente a interdição da conversão. É por isso que Marx diz que este último é o partido do capricho e da loucura de quem faz exigências e desenvolve tendências cuja forma contradiz o significado, porque o que faz é realizar a interdição, quer dizer, a escravização/sujeição do sistema filosófico no eterno retorno da realização teórica.


Marx descreve a si mesmo como membro do partido do conceito e faz uma descrição que antecipa e prevê a vinda de Nietzsche como membro do partido do momento de realidade.


Depois, de resumir o percurso do movimento de conversão desde o início até chegar às duas tendências antagônicas, Marx se refere a “uma multidão de formações subordinadas, gementes, sem individualidade que se abrigam por trás de uma gigantesca figura filosófica do passado”, então, ao que parece, se refere àqueles atrasados que mencionamos antes. Porém, aqui nesta passagem final existe muito mais coisa do que, em geral, imaginamos ao ler uma conclusão que sai do elevado para o mais baixo. Porque? Porque o próprio movimento de conversão da teoria filosófica em prática mundana é um movimento de uma escola filosófica, logo, de uma multidão que se abriga por trás de uma gigantesca figura do passado (Hegel) e porque lá na frase final desta passagem final ele anuncia aquilo que fez com os jovens hegelianos (Bauer & consortes, Proudhon) com seus livros “A Questão Judaica”, “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã” e “Miséria da Filosofia”. Ou seja, parte considerável desta multidão subordinada abrigada por trás de uma gigantesca figura do passado é vista por ele como parte constituinte do movimento dos jovens hegeliano, melhor, do movimento hegeliano que quer se converter em mundo. Entre este início e o final ele descreve o grau de pequenez e falta de individualidade desta multidão subordinada e lamuriante. E, com isso, ele prevê muito mais do apenas o movimento hegeliano de sua época, porque antecipa a descrição de “uma multidão de formações subordinadas, lamuriantes, sem individualidade que se abrigam por trás da gigantesca figura” de... Marx. E antecipa mais. Antecipa aquilo que Nietzsche chama de ressentimento e de revolta dos escravos na moral. Ainda que a saída de Marx seja fazer a crítica destas formações subordinadas para abrir espaço e tempo para o desenvolvimento da formação do partido do conceito ou da emancipação, enquanto que a de Nietzsche faz esta crítica com o fim antagônico de abrir espaço e tempo para o desenvolvimento da formação do partido do momento de realidade ou da interdição. Marx faz a crítica para tirar esta multidão da interdição na qual se encontra e Nietzsche a faz para aprofundar e, até mesmo, aniquilar esta multidão na interdição na qual se encontra, aliás, é nesse sentido que ele é niilista e também pretende que seu niilismo abra espaço e tempo para que possa ser criador/criativo. Nietzsche se assemelha ao Plutarco descrito na primeira nota deste capítulo da tese de Marx, talvez, até, um pouco mais, com a descrição que fiz da nota sobre Plutarco feita por Marx:


Pela primeira nota ficamos sabendo que, no capítulo perdido, o assunto é o interesse teórico e prático focado num determinado procedimento moral, do qual, na nota, ele dá uma prova histórica.  “E qual é a moral da história? ” A prova é a resposta a este tipo de pergunta: “Deus quis que um povo fosse extinto e seus cadáveres fossem transformados num monte de adubo para que outro povo tivesse uma rica coleta de uvas pudesse festejar com os excessos de vinho a extinção deste povo”. Então, a razão de nascimento de um povo é sofrer e morrer para dar alegria a outro povo. “Um povo nasce pra sofrer, pro outro povo nascer pra rir”. O procedimento no qual foca o interesse teórico e prático é este da tal “moral da história”, moral esta que justifica a exploração do humano pelo humano, que justifica que um povo morra para que outro povo viva e festeje a extinção do primeiro. E isto é efetivamente visto como um procedimento moral.


Porque é evidente que aí está o dionisíaco, tão cultuado e cultivado por Nietzsche, presente como moral de Plutarco. Além disso, é curioso que este mesmo dionisíaco seja o culto da Sociedade Dezembrista de Napoleão III e de todos que comemoravam o golpe de Estado dele (Ver “O Dezoito Brumário”, de Karl Marx, onde se informa que Dionísio era o deus tutelar da sociedade do lumpenproletariado francês da época).


Se lembrarmos agora que todo o movimento inicial da conversão da filosofia/teoria em mundo/prática é aquele considerado de um ponto de vista puramente objetivo, então poderemos entender que o partido do momento de realidade se fixa neste ponto de vista, logo, também poderemos compreender Nietzsche como aquele que leva este ponto de vista puramente objetivo até às suas últimas consequências porque tudo aquilo que nele aparece como niilismo, exaltação do aniquilamento do humano como ponte entre o animal e o super-homem, é, enfim, precisamente o que é feito por este ponto de vista puramente objetivo:


“O que era luz interior vem a ser chama devoradora voltada para o exterior. Daí resulta como consequência que o devir-filosófico do mundo é ao mesmo tempo um devir-mundano da filosofia, que a realização efetiva da filosofia é ao mesmo tempo sua perda, que o que ela combate no exterior é seu próprio defeito interior, e que é justamente no curso desta luta que ela cai nas fraquezas que ela combatia como fraqueza no seu contrário, só podendo suprimir estas fraquezas caindo nelas. Aquilo que se opõe a ela e aquilo que ela combate é sempre aquilo que ela é ela-mesma. Estando os fatores apenas invertidos”.


O Dionísio exaltado por Nietzsche é a figura do eterno retorno, a figura que é inteiramente destruída e que, em seguida, retorna. Podemos dizer que este é ser divinizado pelo ponto de vista puramente objetivo da conversão da filosofia/teoria em mundo/prática.


Ainda podemos ver mais nesse ponto de vista puramente objetivo. Podemos ver aí a tragédia de Édipo-Rei e ainda a posição de Demócrito. Porém, ainda mais importante, para a compreensão do pensamento de Marx, podemos ver aí no ponto de vista puramente objetivo aquilo que, aos olhos de Marx, surge na luta de classes entre a burguesia e o proletariado como a ditadura do proletariado que levará ao fim das classes.


O ponto de vista subjetivo é aquele assumido pelo partido do conceito, logo, é o de Marx. É o ponto de vista que realiza efetivamente a filosofia e, assim, a ultrapassa. É o ponto de vista que aparece explícito na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. É o ponto de vista, claro, da sua tese sobre Demócrito e Epicuro, o qual está expresso por este último que, ao invés de ficar no eterno retorno do atomismo tal qual Demócrito, realiza efetivamente o atomismo como dissolução que constitui o vir a ser da consciência humana de si. E este ponto de vista subjetivo, do partido do conceito, quando, aplicado no tal desenvolvimento da luta de classes, na tal ditadura do proletariado e no tal fim das classes, aparece como uma atividade do sujeito proletariado que na luta não mais se limita a tomar o poder, mas se desviando disso, cuida de desenvolver um poder social, um poder comunitário que é por si mesmo uma dissolução da máquina de poder do Estado. O grande problema é que o sujeito proletariado propriamente dito nunca passou desta realização efetiva. Ou seja, toda tomada do poder, que teve por ponto de apoio e de partida esta instituição do poder social e/ou comunitário do sujeito proletariado, que veio a ser foi uma tomada de poder da corrente, tendência ou partido do momento de realidade, logo, não do partido do conceito que é o do sujeito proletariado, ainda que possa ter sido do partido do momento de realidade que é o do objeto proletariado.


Desse modo que fica claro que os supostos avanços dos marxismos, quer dizer, dos movimentos que se abrigam por trás da figura de Marx, o qual, por sua vez, era contra o marxismo bem como declarou que nunca foi marxista, foram avanços do partido do momento de realidade e nunca avanços do partido do conceito, o qual, por sua vez, quando se efetivou realmente, nunca foi marxista, nem mesmo, quando se efetivou realmente, com Marx que carregava o nome que deu origem a esta denominação duma “multidão de formações subordinadas, gementes, sem individualidade”.


Se ficar claro que o partido do conceito, assumido e desenvolvido por Marx, é também o do sujeito proletariado, então há de ficar igualmente claro que o movimento de conversão deste partido em realização efetiva do conceito ainda não passou dos meros anúncios do movimento de vir a ser, porque foi sempre substituído no seu desenvolvimento pela  interdição feita pelo partido do momento de realidade que soube usar a insuficiência ou a compreensão insuficiente deste partido do seu conceito ou princípio para afirmar a suficiência ou a compreensão suficiente do princípio do partido do momento de realidade.



O partido do conceito e do sujeito proletariado permanece tendo de enfrentar o partido do momento de realidade e do objeto proletariado, isto é, se permanecer visando converter seu conceito e subjetividade em movimento real e objetivo da sua liberdade e continuar visando ultrapassar e suprimir a realidade e objetividade da sua interdição em dissolvido e ultrapassado movimento conceitual e subjetivo.



terça-feira, 29 de novembro de 2016

A novidade do materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx




“Um filósofo da razão aprisionado na positividade, mas que, por isso mesmo, aplica nela o cálculo, a medida, o mapeamento, enfim, o máximo possível de razão de modo que, vingativamente, também a aprisiona na razão, razão na qual ela o impede de livremente viver.” (Ver em https://singularidadeabstrata.wordpress.com/2016/11/29/a-novidade-do-materialismo-epicurista-revolucionario-de-karl-marx/ )


“Parece acontecer à filosofia grega aquilo que não deve acontecer numa boa tragédia: um desenlace sufocado. Com Aristóteles, o Alexandre da Macedônia da filosofia grega, parece terminar, na Grécia, a história objectiva da filosofia. Mesmo os estoicos, apesar de sua decisão (força, na versão francesa) viril, não conseguem, tal como o fizeram os Espartanos nos seus templos, prender Ateneia a Heracles para que aquela não pudesse fugir.” (Ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html ).


Pela primeira decisão, talvez, seja melhor dizer pela primeira força, a de Demócrito, o mundo positivo é inteiramente dominado e domesticado pela razão que tudo nele calcula, mede e mapeia para poder chegar o máximo possível onde anseia que é o mundo da razão insensível e invisível. A objetividade da positividade aqui, ao mesmo tempo, já é outra objetividade, é a objetividade da abstração. Esta novidade, a objetividade da razão, é a mesma do aviso da Academia de Platão de que nela “só entra quem conhece a Geometria”. Esta objetividade da razão equivale à objetividade do trabalho abstrato, equivale à objetividade do capital. Se considerarmos que é a história dessa objetividade que chegou ao fim, logo, também que, nesse momento, o capital escapou dos templos, então podemos trazer para dentro da crise ou do sufoco pelo término da história objetiva da filosofia grega igualmente o sufoco ou a crise pelo término da história do capital grego.


As filosofias pós-aristotélicas dos epicuristas, estoicos e céticos, apesar da força viril dos estoicos, são aquelas que não conseguem prender a razão objetiva ou o capital nos templos gregos. São as filosofias que escapam dos templos e dos cultos que a tudo calculam, medem e mapeiam buscando fruir esta liberdade na história subjetiva da filosofia grega, quer dizer, no livre desenvolvimento dos sujeitos gregos, logo, é aí na liberdade dos indivíduos que a liberdade de Ateneia (deusa da Sabedoria), logo, do livre desenvolvimento da força da sabedoria vem a ser igualmente o livre desenvolvimento da força do sujeito humano, o livre desenvolvimento da força da sabedoria humana. Estas filosofias pós-aristotélicas são as forças subjetivas da sabedoria da filosofia grega que vem à tona, vem à cena da história desta filosofia grega. Elas são as forças que sustentam toda a história da filosofia grega, mas que vinham sendo mantidas prisioneiras da tal história objetiva desta filosofia, logo, igualmente prisioneiras da história do capital grego, a qual, por sua vez, é igualmente a história do escravismo grego ou a história do trabalho escravo na Grécia. Estas filosofias são filosofias da libertação dos sujeitos, dos indivíduos e/ou das forças humanas gregas do trabalho escravo. São filosofias que surgem num momento bem específico de crise do império alexandrino, quer dizer, tanto do sistema aristotélico quanto do mercado mundial alexandrino, logo, num momento que não tem mais como expandir o escravismo e que, ao mesmo tempo, para manter o mercado precisa de mais consumidores, portanto, num momento de crise do domínio mundial do império que precisa reduzir o poder senhorial escravocrata junto com a redução do trabalho escravo e, ao mesmo tempo, aumentar o número de consumidores livres do excesso de poder senhorial e do excesso de trabalho escravo. São filosofias que surgem num momento de libertação do poder senhorial escravocrata e do trabalho escravo, por isso mesmo, na história da filosofia de Hegel (e na sua Fenomenologia), são filosofias da consciência de si, filosofias da dialética do senhor e do escravo. E, dentro desta dialética da senhor e do escravo, a filosofia epicurista é aquela que, segundo Marx, realiza efetivamente a libertação deste sistema escravocrata do senhor e do escravo, quer dizer, é aquela que, na língua de Hegel, realiza efetivamente a superação e/ou a suprassunção da dialética do senhor e do escravo.



O detalhe é que a filosofia de Hegel é equivalente em poder senhorial imperialista à filosofia de Aristóteles, já que a filosofia de Hegel é a do Saber Absoluto, porém, é o próprio Hegel quem situa as filosofias epicurista, estoica e cética da consciência de si gregas como sucessoras imediatas de Aristóteles, portanto, é o próprio sistema hegeliano que indica que seus sucessores serão filósofos das filosofias da consciência de si. Marx vai desenvolver esta filosofia da consciência de si como filosofia da libertação/emancipação da força humana de trabalho. No sentido de emancipação do trabalho livre assalariado, logo, de fim da história objetiva do capital que aprisiona a história subjetiva da força humana no trabalho livre assalariado. De modo que a força humana de trabalho deixará de ser objeto do sistema de trabalho livre assalariado e não mais simplesmente do sistema de trabalho escravista. Porque? Porque irá suprimir ou suprassumir a objetividade insensível ou o capital de modo a realizar o livre desenvolvimento da subjetividade sensível ou da força humana criadora.



domingo, 27 de novembro de 2016

Materialismo revolucionário epicurista de Karl Marx





Prática da forma subjetiva: cuidado e/ou descuido       



          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos até que teve a crise que ele relata na “Carta Ao Pai”. Ali ele descobriu que o seu materialismo estava aquém do idealismo de Hegel, aquele filósofo antipático que ele tinha pretendido destruir com seu materialismo expresso em “Cleanthes ou o Ponto de Partida e a Necessária Continuação da Filosofia” (ver em http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP4Port.htm#_ftnref10) Aceitou esta sua inferioridade e se tornou discípulo de Hegel para suprir sua inferioridade com a superioridade do sistema de Hegel. Ele se viu então numa situação similar à de um artesão que descobre não poder sobreviver com seu artesanato e que se vê obrigado a trabalhar como assalariado na manufatura ou na indústria. Percebeu que não poderia cuidar de seus próprios assuntos com um materialismo artesanal e que o único acesso, na Alemanha, a um materialismo manufatureiro ou industrial com o qual pudesse tratar de seus próprios assuntos era através do sistema do idealismo de Hegel. Dentro do sistema idealista de Hegel era possível encontrar toda a potência, a luz e o conhecimento da capacidade manufatureira e industrial do materialismo francês e inglês, quer dizer, era possível encontrar a consciência das capacidades manufatureira e industrial francesas e inglesas. Ele percebeu assim que essa consciência do materialismo francês e inglês era a única realidade alemã com acesso verdadeiro, quer dizer, com equivalência e à altura das capacidades manufatureira e industrial da França e da Inglaterra e isso apesar de essa ser uma consciência idealista dessas capacidades materialistas. Então, como consequência do seu acesso ao materialismo francês e inglês exclusivamente pela consciência sistêmica do idealismo hegeliano passou a lutar para que essa consciência idealista se realizasse efetivamente, quer dizer, se tornasse consciência do ser ou sujeito material e social dessa capacidade manufatureira e industrial. Noutras palavras, lutou para que o hegelianismo se realizando efetivamente como prática mundana trouxesse à tona e desenvolvesse o materialismo manufatureiro e industrial na realidade alemã.


          Marx que, até então, sempre soube cuidar de seus próprios assuntos, permaneceu desenvolvendo essa capacidade de cuidar de seus próprios assuntos ao se tornar discípulo de Hegel para, realizando o sistema de Hegel, ter acesso aos materialismos francês e inglês e ultrapassar seu superado materialismo alemão.


          Certamente que a Alemanha permaneceu tendo esse tipo de contradição entre a consciência idealista alemã, que está em sintonia com a consciência e o ser materialista da França e da Inglaterra, e a consciência materialista alemã, que está superada e em relação anacrônica com a consciência e o ser materialista da França e da Inglaterra, simplificando: na realidade alemã apenas a consciência idealista tinha uma relação de contemporaneidade e sintonia com o materialismo francês e inglês, já a consciência e o ser materialistas da realidade alemã tinham uma relação anacrônica e superada com o materialismo francês e inglês. Então, curiosamente, o materialista hegeliano Marx combatia o materialismo não-hegeliano alemão, quer dizer, o materialismo artesanal, autônomo e nativo por ser anacrônico. Na principal obra dessa época, “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, onde defende a realização efetiva da filosofia de Hegel, ele expressa esse materialismo alemão como sendo o da Economia Nacional que se desenvolve por meio dos Monopólios, enquanto que o materialismo inglês e francês é o da Economia Política que se desenvolve combatendo os Monopólios. Noutra obra publicada junto com esta, “Questão Judaica”, ele defende o direito do judeu à emancipação política e critica a posição materialista teológica de Bauer que defende um Estado Nacional Alemão com o seu Monopólio Cristão ou, no caso, de se emancipar do cristianismo, com seu Monopólio Ateu. Ele considera um absurdo que a emancipação política do judeu só seja possível, segundo Bauer, num Estado Judaico, o qual, segundo o mesmo Bauer, é uma quimera, portanto, para Bauer, o judeu não tem nenhum direito à emancipação política, exceto se tornando cristão, já que o Estado Nacional Alemão é cristão ou então apenas quando o Estado Nacional Alemão se tornar ateu e os judeus e os cristãos se tornarem igualmente ateus, ou seja, segundo Bauer, o Estado é teológico, seja de um teísmo, seja de um ateísmo, portanto, a emancipação política para todos só será possível quando todos forem ateus, quer dizer, apenas humanos, ainda que sejam primeiro alemães e depois humanos. Ora, este materialismo teológico monopolista de Bauer é para Marx um materialismo que não concebe a emancipação política e que a confunde com a emancipação humana, aliás, é precisamente esta confusão, aquela que foi posta em prática no século XX, como sendo a emancipação proposta por Marx, quando, na verdade, ela é própria do materialismo não-hegeliano alemão e deste materialismo alemão dos discípulos anti-hegelianos ou que acusam Hegel de traição. Portanto, na Alemanha, já existe uma luta entre os judeus, Kant (em especial, com sua “Resposta à Questão: O Que É Esclarecimento? ”) e Hegel, com sua adoção e defesa de Spinoza, por um lado; e, os pangermanistas, pelo outro lado, antecedendo aquilo que vai se configurar na Alemanha nazista.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos até que teve a crise que ele relata na “Carta Ao Pai” que o levou a tematizar o cuidado dos próprios assuntos na tese de doutorado “Diferenças entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro”, a qual, ao mesmo tempo, já era o cuidado todo especial com o assunto Jenny von Westphalen e com o pai dela, Ludwig von Westphalen, a quem dedica a tese. O leitor vê o cuidado todo especial com o assunto Jenny nessa passagem do prefácio: “(...) Gassendi, que libertou Epicuro do ostracismo a que tinha sido votado pelos padres da Igreja e por toda a Idade Média, a época do irracionalismo, só apresenta em toda sua exposição este aspecto interessante. Procura conciliar sua fé católica com a ciência pagã, Epicuro com a Igreja, o que é certamente tempo perdido. É como se se quisesse vestir o corpo esplêndido e florescente de uma Lais grega com o hábito de uma freira cristã. Em vez de nos ensinar algo sobre a filosofia de Epicuro, é dele que Gassendi toma lições de filosofia.” (ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html). Jenny é certamente mais do que uma Lais grega para Marx, quanto ao pai toda a dedicatória é explícita declaração de “amor filial” que se torna perfeita quando vem de um verdadeiro genro para seu querido sogro. Porém, é noutra passagem do prefácio que Marx traz à tona o tema do saber cuidar dos seus próprios assuntos (hoje, um leitor de Foucault não hesitaria em dizer que a temática trazida à tona aí por Marx é a do “cuidado de si”):


          “Se acrescentei em apêndice uma crítica da polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro, foi porque esta polêmica não constitui um fenômeno isolado; é, pelo contrário, um bom exemplo do que a mentalidade teologizante pode fazer à filosofia.

          “Entre outras coisas, não nos preocupamos com a falsidade genérica do ponto de vista de Plutarco, quando arrasta a filosofia para o tribunal da religião a fim de a julgar. Tudo que dissermos sobre isto pode ser substituído pela seguinte passagem de David Hume: ‘É certamente uma injúria obrigar a filosofia, cuja autoridade soberana deveria ser reconhecida em todo lado, a defender a sua causa sempre que se não aceitam as consequências que origina ou a justificar-se perante toda a arte ou ciência que possa chocar. É como se acusássemos um rei de ter atraiçoado os seus próprios interesses. ’” (Ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html).


          Marx já tinha encontrado na mentalidade teologizante de Plutarco o modelo da mentalidade teologizante de Bauer. E, para ele, a realidade alemã era o materialismo da anacrônica Idade Média. Porém, aqui o principal é “o rei que seria acusado de alta traição a respeito de seus próprios assuntos” (tradução da versão francesa). E esta situação na Grécia Antiga é expressa em dois mitos representados em duas tragédias, “Édipo Rei” e “Prometeu Acorrentado”.


          Em “Édipo Rei” vemos o rei submetido a julgamento pelo tribunal da religião e o que mais surpreende é que a forma subjetiva do Rei Édipo seja inteiramente isenta de responsabilidade consciente dos crimes de parricídio e de incesto que comete, quer dizer, o que mais surpreende é que o Rei Édipo não tem consciência de si e quando a adquire descobre que sua forma subjetiva é basicamente inconsciente de si.


          Já em “Prometeu Acorrentado” vemos Prometeu, que significa “aquele que sabe com antecipação”, logo, que é a autoridade filosófica soberana, quer dizer, aquele cuja forma subjetiva é a consciência que possui, sendo acorrentado, torturado e lançado no abismo até às profundezas da terra, nos surpreender por assumir que agiu deliberadamente contra os desejos de Zeus, a quem acusa de ser um tirano que vai causar sua própria ruína por agir de forma irresponsável e sem cuidado nos seus próprios assuntos. O que nos surpreende é que o sujeito que está sendo martirizado ao extremo não só nos diga que é vítima de uma injustiça, porém, mais ainda, nos fale como quem julga, condena e derruba seu algoz, quer dizer, como quem profetiza e determina o futuro de seu algoz. Que sujeito é esse com tamanha consciência do futuro? Que forma subjetiva é essa que mostra ter plena consciência de si e que tão categoricamente afirma que seu algoz, Zeus e/ou o tribunal da religião, é a forma subjetiva do que é inconsciente de si?!


          Ora, na tese veremos os dois filósofos atomistas gregos encarnarem duas formas subjetivas antagônicas. Uma forma subjetiva é o inconsciente de si e a outra forma subjetiva é a consciência de si. Além dessas formas subjetivas encarnarem as diferenças     entre os sistemas filosóficos de Kant, com seu saber limitado devido à coisa em si incognoscível, e de Hegel, com seu saber absoluto devido ao desenvolvimento da consciência de si, elas encarnam o momento da passagem da consciência para a consciência de si. Hegel, na “Fenomenologia do Espírito”, configura o último momento da figura da consciência, antes de começar a figura da consciência de si, como “Força e entendimento; Fenômeno e mundo suprassensível” (ver em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2289), onde o objeto desaparece, como que dissolvido, enquanto força e fenômeno da percepção sensível e começa a ser entendimento e mundo suprassensível da ideia [na verdade, nesse capítulo da “Fenomenologia”, a descrição do objeto é ora força e entendimento da percepção sensível e ora entendimento e mundo suprassensível da ideia, ora aparência/fantasma e ora subjetividade/imaginação, é o objeto que pisca, quer dizer, cintila ou é e não é nesse momento, determinado como o último da consciência antes de iniciar o momento da consciência de si] nesse sentido, ele se torna perfeitamente concebível como átomos e vazio, que são os princípios comuns dos dois filósofos gregos Demócrito e Epicuro. Porém, dependendo de como é feita a passagem deste último momento da figura da consciência, do que é ora força e fenômeno e ora entendimento e mundo suprassensível, quer dizer, da figura dos átomos e do vazio, para a figura da consciência de si se terá por resultado a forma subjetiva do sistema de Demócrito que é o inconsciente de si ou o eterno retorno dos átomos e do vazio ou se terá por resultado a forma subjetiva do sistema de Epicuro que é a ciência da consciência de si ou a dissolução dos átomos e do vazio.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos e na sua tese sobre Demócrito e Epicuro fica claro que ele soube cuidar de si mesmo de forma prometeica e/ou epicurista, isto é, soube cuidar de si mesmo como terapeuta psicanalítico prometeico e não como paciente psicanalítico edipiano, ou seja, foi “psicanalista avant la lettre”.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos e, por isso, também foi um filósofo que, tal qual Foucault, destacou a filosofia como a prática do “cuidado de si”?!



          Para Marx a prática da filosofia é a prática da emancipação/libertação humana, quer dizer, do cuidado de si e da autoajuda?! 




Revolução teórica de Karl Marx: A forma subjetiva da ciência de si


          A revolução teórica de Karl Marx se inicia muito cedo, mas é na dissertação “Diferenças entre as filosofias da natureza de Demócrito e de Epicuro” (ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html e ver também a “Carta Ao Pai” que se relaciona com a elaboração teórica e histórica de Marx: http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP4Port.htm#_ftnref10) que ela pode ser vista como o anúncio e a concepção completa da revolução teórica e histórica de um novo sistema prático. Essa é mais uma das tentativas de apreensão dessa novidade teórica e histórica desta nova prática. Muito importante, a meu ver, porque sem a apreensão teórica e histórica dessa novidade não há nenhuma nova prática. Ainda que pareça pobre, este é um texto que, a meu ver, consegue chegar na novidade da revolução teórica e histórica de Marx, que é indicar o caminho para efetivar a riqueza duma nova prática, então, pode ser que consiga vir a percorrer o caminho indicado e deixar de parecer pobre.



          No primeiro capítulo, da “Primeira Parte: Diferença de um ponto de vista genérico entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro” de sua tese de doutorado sobre as “Diferenças entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro”, Marx delimita o seu “Objeto da dissertação” como sendo “a forma subjetiva, o suporte espiritual dos sistemas filosóficos”, porque, “até agora”, “justamente” este “objeto” “foi quase que totalmente esquecido em proveito das determinações metafísicas destes sistemas”.


          No segundo capítulo, “Opiniões sobre a relação existente entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, após levantar uma massa de opiniões desfavoráveis a Epicuro desde a Antiguidade até à Modernidade ele conclui observando que “todos concordam num ponto: Epicuro foi buscar sua física em Demócrito”, quase como se todos dissessem que Epicuro roubou/tomou sua física de Demócrito.


          No terceiro capítulo, “Dificuldade de identificação da filosofia da natureza de Demócrito com a de Epicuro”, ele faz um levantamento das posições diferentes de cada um deles no que se refere ao puro saber da razão, à prática do saber da razão e à faculdade de julgar do saber da razão ou de “relacionar o pensamento com a realidade em geral”.


          Para Demócrito, o puro saber da razão é incerto porque o fenômeno é um fantasma, que parece objetivo, mas é subjetivo, e porque a essência é uma realidade objetiva da qual só temos uma ideia porque ela é incognoscível por se encontrar no fundo do poço inacessível. Para Epicuro, o puro saber da razão é certo porque o fenômeno é objetivo, logo, é uma realidade objetiva que percebemos sensivelmente e a essência é subjetiva, logo, é uma realidade subjetiva da qual temos um conhecimento que é imediatamente acessível e completamente concebido dentro de nós.


          Para Demócrito, a prática do saber da razão não pode ser sobre a essência da realidade objetiva porque ela é inacessível e incognoscível, logo, a prática se lança sobre o fenômeno que parece objetivo e é, na verdade, subjetivo, só porque ele é acessível e, por isso, cognoscível. Para Epicuro, a prática do saber da razão pode ser sobre a essência da realidade subjetiva porque ela é acessível e cognoscível, logo, a prática se fixa na elaboração da essência que é subjetiva, já que o fenômeno é objetivo, logo, já elaborado e também é objetivável, quer dizer, elaborável pela essência subjetiva.


          Para Demócrito, a faculdade de julgar do saber da razão ou de relacionar o pensamento do incognoscível com a realidade em geral do fenômeno cognoscível é o determinismo, quer dizer, é a necessidade, é a prisão. Para Epicuro, a faculdade de julgar do saber da razão ou de relacionar o pensamento cognoscível/concebível com a realidade em geral do fenômeno objetivável é a possibilidade abstrata, quer dizer, é o acaso, é a liberdade.


          Do quarto capítulo, “Diferença genérica entre os princípios da natureza de Demócrito e de Epicuro”, só restam Notas e, dessas, só duas são compostas por textos de Marx, as demais doze se referem apenas a indicações de passagens extraídas e/ou citadas de obras de outros autores. Quanto ao quinto capítulo só restou o título: “Resultado”. Esses são prejuízos significativos para compreendermos a dissertação de Marx. As duas Notas escritas pelo próprio Marx são importantíssimas para compreender o pensamento do próprio Marx e a mais importante, sem dúvida, é a bem extensa segunda Nota. Nela, há uma passagem onde aparece isso “(...). Nós vemos aqui por assim dizer seu curriculum vitae reduzido ao essencial, levado à sua extremidade subjetiva. (...)” e é surpreendente que toda a Nota chegue ao ponto de antecipar as polêmicas que Marx terá com vários dos jovens hegelianos a tal ponto que ele fecha a Nota assim: “(...). Quanto a estas direções elas mesmas, eu explicarei em outro lugar de maneira mais completa a relação entre elas e a filosofia hegeliana, assim como os diversos momentos históricos nos quais se apresenta este desenvolvimento. ” Essas obras referentes àqueles adversários que se relacionam com a filosofia hegeliana nasceram mais tarde sob os títulos de “A Questão Judaica”, “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã” (ainda que esta não tenha sido publicada em vida), “Teses Sobre Feuerbach” (ainda que esta só tenha sido publicada por Engels muito tempo depois), “Miséria da Filosofia” (ainda que esta seja da autoria de um francês que conheceu Hegel através de um alemão que não compreendia quase nada do filósofo). Já as passagens mais importantes dessa Nota antecipam a leitura que o próprio Marx faz de Hegel e que, basicamente, aparece sob o título “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” e também na “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (ainda que não tenha sido publicada em vida), nos “Manuscritos Econômicos-Filosóficos” (também inédito em vida) e outros textos inéditos. No entanto, sem qualquer dúvida, o essencial da “Introdução” está presente e, até mesmo, melhor exposto nesta Nota. É a Nota mais grávida de futuro que já li, pelo menos, até agora, e de um futuro que é um curriculum vitae.


          Deixemos de lado, por enquanto, esta Primeira Parte, arruinada pela perda dos seus dois últimos capítulos, e passemos para a Segunda Parte, “Diferença considerada nos seus pormenores entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro”, na qual o primeiro capítulo é “A declinação do átomo da linha reta”, então, o próprio título já é a afirmação de um conceito considerado como estritamente epicurista, porque, parece piada, mas esse conceito não é encontrado nos poucos textos do próprio Epicuro que sobreviveram e fazem parte da história. Ele é um conceito que é encontrado apenas a partir de Lucrécio, o discípulo romano de Epicuro, contemporâneo de Cícero. O principal aqui é comparar este destaque de um conceito estritamente epicurista com o primeiro capítulo da primeira parte onde fica estabelecido que o objeto da dissertação é a forma subjetiva. Porque? Porque não existe nenhum outro conceito que tão explicitamente expresse a forma subjetiva. A queda do átomo em linha reta no vazio se deve à ação passiva do vazio que não resiste ao átomo e a repulsão dos átomos entre si se deve à ação passiva do átomo que resiste a outro(s) átomo(s). A declinação ou o desvio do átomo da queda em linha reta no vazio, porém, se deve a um passo ativo do átomo que resiste ao vazio e não resiste a si mesmo, ou seja, se deve a uma ação oriunda inteiramente do próprio átomo, logo, se deve à forma subjetiva do próprio átomo e não às formas objetivas do vazio e de um outro átomo.


          Se nos esforçamos para estabelecer um paralelo entre o primeiro capítulo da primeira parte e o da segunda parte, então precisamos dar continuidade a nosso esforço nos demais capítulos. Porque esse esforço? Porque os capítulos quatro e cinco, da primeira parte, desapareceram e não sabemos como eram. Assim, se conseguirmos estabelecer relações paralelísticas entre os capítulos da primeira e da segunda parte, então, talvez, consigamos ter uma imaginação mais próxima do que possa ter sido o conteúdo dos capítulos desaparecidos da primeira parte.


          “Opiniões sobre a relação existente entre a física de Demócrito e a de Epicuro” é o título do segundo capítulo da primeira parte e “As qualidades do átomo” é o título do segundo capítulo da segunda parte.


          No “Opiniões” a conclusão é:

          “Se portanto, segundo Cícero, Epicuro corrompe a doutrina de Demócrito conservando embora a vontade de a melhorar e de lhe ver os defeitos, se Plutarco o acusa de inconsequência e de uma propensão para o erro, indo ao ponto de suspeitar de suas intenções, Leibniz chega mesmo a negar-lhe capacidade para fazer extratos de Demócrito.

          “Mas todos concordam num ponto: Epicuro foi buscar sua física em Demócrito. ”

          Então, a opinião geral sobre a relação de Epicuro com a doutrina de Demócrito varia da deformação bem-intencionada para a deformação mal-intencionada até chegar à incapacidade de avaliar o que é importante nesta doutrina, mas, mesmo assim, a opinião geral é que Epicuro, em todos os casos, está sempre às voltas com a doutrina de Demócrito.


          No capítulo “As qualidades do átomo” então, segundo a opinião geral, Epicuro vai fazer três coisas com estas qualidades vai deformar o átomo de forma bem-intencionada, vai deformar o átomo de forma mal-intencionada e não vai ter capacidade de informar sobre o átomo, logo, vai desinformar sobre o átomo, ainda que todo o tempo se refira ao átomo.


          Epicuro atribui grandeza aos átomos, mas apenas a da pequenez infinita; atribui forma aos átomos, mas como eles são infinitamente pequenos as diferenças das formas dos átomos são indetermináveis mas não infinitas de modo que existe um número determinado e finito de formas através das quais os átomos se diferenciam, logo, existe um número infinito de átomos com a mesma forma indeterminável; e, por último, Epicuro atribui peso aos átomos, porque é o peso que determina a queda dos átomos em linha reta no vazio, mas aí, todos eles caem na mesma velocidade no vazio de modo que aí não aparecem as diferenças de peso dos átomos, as quais só aparecem quando eles caem uns nos outros, quer dizer, participam do movimento de repulsão dos átomos entre si responsável pela formação das composições dos átomos, quer dizer, de sistema de diferenças de peso dos átomos, mas para passar da queda no vazio de todos na mesma velocidade para a queda em outro átomo em velocidade diferenciada é preciso um desvio da queda no vazio que resulta na queda em outro átomo, quer dizer, é preciso um desvio do peso da queda no vazio, então é preciso que o peso do átomo afirme esse desvio do átomo da queda em linha reta no vazio, logo, é preciso que o peso do átomo afirme sua gravidade substancial, quer dizer, afirme que flutua ou que, por meio de seu peso se desvia, sai, se liberta da queda em linha reta mas, em consequência disso, cai de encontro a outros átomos e com eles desenvolve um sistema de repulsão mútua que constitui as composições dos átomos do mundo. É muito estranha essa qualidade do peso próprio do átomo de Epicuro que está em si mesmo e não mais caindo no vazio, mas que, por isso mesmo, por estar em si mesmo e se desviar do vazio termina indo ao encontro de outros átomos e, assim, aparecem as diferenças de peso entre os átomos.


          No capítulo “Dificuldade de identificação da filosofia da natureza de Demócrito com a de Epicuro” vimos, de um lado, um atomista, impedido de desenvolver a realidade objetiva do atomismo, porque ela se situa no inacessível e incognoscível, se voltar para desenvolver a realidade subjetiva do fenômeno, porque ela é acessível e cognoscível; de outro lado, vimos outro atomista, liberado para desenvolver a realidade subjetiva do atomismo, porque ela se situa no acessível e cognoscível/concebível, deixar em paz o desenvolvimento da realidade objetiva porque ela é fenômeno objetivo à disposição da essência subjetiva. Pois agora, no capítulo “Átomos-princípios e átomos –elementos”, veremos que o atomista liberado para desenvolver a realidade subjetiva do atomismo é precisamente aquele que concebe a diferença entre átomos-princípios e átomos-elementos, a qual, o atomista impedido de desenvolver a realidade objetiva do atomismo não pode conceber e, por isso, fica fixado apenas na concepção dos átomos-elementos. Os átomos-princípios são aqueles perfeitamente concebíveis na realidade subjetiva do atomismo como existentes exclusivamente no mundo dos átomos e do vazio, enquanto que os átomos-elementos são aqueles perfeitamente concebíveis na realidade subjetiva do atomismo como existentes exclusivamente no mundo das composições de átomos no vazio. Porém, os átomos-princípios são perfeitamente inconcebíveis na realidade objetiva do atomismo porque aí na realidade objetiva do atomismo apenas são perfeitamente concebíveis os átomos-elementos da universal, inacessível e incognoscível realidade objetiva dos átomos e do vazio.


          O quarto capítulo da primeira parte intitulado “Diferença genérica entre os princípios da natureza em Demócrito e Epicuro” foi perdido e dele só restaram duas Notas escritas pelo próprio Marx. Delas destacamos a segunda Nota por surpreender como antecipação do curriculum vitae de Marx, como antecipação da obra e da biografia de Marx, logo, como antecipação da história do próprio Marx. Curiosamente, o capítulo quarto da segunda parte é intitulado “O Tempo” e nele ficamos a par de que o tempo não existe no mundo dos átomos, logo, só existe no mundo das composições, quer dizer, no mundo da percepção sensível, então o tempo aparece e se desenvolve no mundo das composições sensíveis dos átomos, mas igualmente desaparece e se dissolve no mundo da dissolução das composições sensíveis dos átomos, isto é, para o atomista Epicuro que concebe a realidade subjetiva do atomismo, quer dizer, acessível e cognoscível filosoficamente, mas não para o atomista Demócrito que só concebe a realidade objetiva do atomismo, quer dizer, inacessível e incognoscível positivamente, porque para ele os átomos e o vazio são a única realidade objetiva, logo, todo o resto é realidade subjetiva, aparência subjetiva, quer dizer, todo o resto apenas parece ser composição sensível e apenas parece temporalidade sensível, mas, na realidade objetiva a única “composição” são os átomos e o vazio inacessíveis e a única “temporalidade” é a da eternidade dos átomos e vazio incognoscíveis.


          “Resultado” era o último capítulo da primeira parte e “Os Meteoros” é o último capítulo da segunda parte. Volta a aparecer aqui algo que apareceu, no capítulo três da primeira parte, como um aspecto da faculdade de julgar, do saber da razão segura de si, a relação do pensamento cognoscível/concebível com realidade em geral do fenômeno objetivável de modo que o desenvolvimento filosófico da cognoscibilidade/concepção da essência subjetiva conduz à supressão da realidade em geral do fenômeno objetivo porque essa essência subjetiva se imprime na realidade em geral como fenômeno objetivável. Ao mesmo tempo que também volta a aparecer aquilo que lá apareceu como um aspecto da faculdade de julgar, do saber da razão insegura de si, a relação do pensamento incognoscível com a realidade em geral do fenômeno cognoscível de modo que o desenvolvimento positivo da cognoscibilidade/concepção do fenômeno da aparência subjetiva conduz à concreção da realidade em geral do fenômeno da aparência subjetiva e à manutenção inalterada/inalterável e eterna da realidade objetiva dos átomos e do vazio. No entanto, surge algo mais na relação do pensamento cognoscível/concebível da essência subjetiva com a realidade em geral do fenômeno objetivo que é a dissolução dos átomos e do vazio no momento de realização dos meteoros, quer dizer, dos corpos de todo o cosmo, porque aí fica claro que, no mundo da composição espacial e temporal da percepção sensível, também se constituiu a consciência de si humana, quer dizer, a essência subjetiva que se constituía de átomos e vazio passou a se constituir de essência subjetiva da consciência humana de si, logo, os átomos e o vazio se dissolveram nessa essência subjetiva que está no ser humano e não nos átomos e no vazio/porque ela está no ser humano e não nos átomos e no vazio.


         Desse modo, Epicuro faz aquilo que as opiniões desfavoráveis o acusam de fazer, que é deformar de boa-fé, deformar de modo traiçoeiro e incapacitar de modo ignorante a doutrina de Demócrito. E, ao mesmo tempo, quer dizer, simultaneamente, ele também faz aquilo que fez Prometeu ao roubar a centelha do fogo de Zeus e a entregar à humanidade tornando-a centelha do fogo/iluminismo/esclarecimento do ser humano. Por aí também aprendemos que se Epicuro foi discípulo da doutrina de Demócrito, então Prometeu foi discípulo da doutrina de Édipo. Que há em comum na doutrina de Demócrito e Édipo? A realidade objetiva é incognoscível e inacessível, quer dizer, ela é a forma subjetiva do inconsciente de si. Portanto, Epicuro e Prometeu partem da mesma doutrina do inconsciente de si de Demócrito e Édipo, mas a elaboram como realidade subjetiva acessível e cognoscível, por isso, o resultado é que passam do inconsciente de si para a consciência de si, logo, para o desenvolvimento de outra forma subjetiva, a que faz ciência da consciência si.



A forma subjetiva essencial do materialismo de Marx


          É importante destacar que Demócrito percebe os átomos e o vazio por toda parte a tal ponto que considera que as coisas não resultam da combinação da pluralidade dos átomos e sim que a combinação da pluralidade dos átomos parece resultar em coisas, logo, tudo que vemos sensivelmente é fantasmático, é mera aparência subjetiva, mas na realidade objetiva só existem mesmo os átomos e o vazio, os quais, por sua vez, são insensíveis, invisíveis e inacessíveis, exceto pela razão. Donde se conclui que a razão de Demócrito é constituída de átomos e vazio, mas como, para ele, os átomos e o vazio são a realidade objetiva, então não é mais a razão de Demócrito que é constituída de átomos e de vazio, mas tudo, até o próprio Demócrito, é constituído dos insensíveis, invisíveis e inacessíveis átomos e vazio, os quais só são concebíveis na razão, logo, tudo é razão, tudo é a concepção da razão, portanto, toda a realidade objetiva é insensível, invisível e inacessível porque toda ela é pura razão, pura ideia.


          Demócrito com esta percepção da realidade objetiva como a ideia pura, a razão pura se sente frustrado por estar aprisionado na realidade subjetiva da percepção sensível, visível e acessível da aparência impura, da matéria impura. E, ainda mais frustrado, porque está impedido de ser pura ideia, pura razão, pura objetividade do insensível, invisível e inacessível, além de estar obrigado a ser impura matéria, impura aparência, impura subjetividade sensível, visível e acessível. Portanto, ainda que os átomos e o vazio sejam a realidade objetiva presente na razão de Demócrito ele fica frustrado por não conseguir avançar até à realidade objetiva dos átomos e do vazio se tornando um com eles, porque está preso e limitado à realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível, a qual, no entanto, é um campo de concentração na impura matéria, na impura fantasmalidade. No entanto, como está vivo, quer dizer, como não pode evitar a sua situação de prisioneiro no campo de concentração da impura matéria, da impura aparência, da impura realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível ele vai se dedicar a conhecer, mapear e investigar da maneira mais completa possível toda a positividade sensível, visível e acessível e vai concluir que ela é efetivamente um campo de concentração no sentido de ser inteiramente determinada pela “necessidade relativa que só pode ser deduzida da possibilidade real, quer dizer, só pode ser um encadeamento de condições, de causas, de razões etc. que mediatizam esta necessidade. A possibilidade real é a explicação da necessidade relativa”, do determinismo do campo de concentração, afinal, se fosse possível se libertar dessa impura matéria, dessa impura aparência, então seria possível desfrutar da pura liberdade dos átomos e do vazio, do puro campo da liberdade e do acaso dos átomos e do vazio. Infelizmente, para Demócrito, não é possível viver na pura realidade objetiva dos átomos e do vazio, até porque a impura realidade subjetiva do mundo da percepção sensível está continuamente desviando a atenção e impedindo que se permaneça continuamente na pura razão dos átomos e do vazio.


          Demócrito é um filósofo que muito a contragosto é conduzido a abandonar o campo da filosofia, porque está impedido de o desenvolver na medida que não consegue efetivar a realidade objetiva dos átomos e do vazio, e a se lançar no campo da positividade, porque se encontra aprisionado na realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível, logo, é só nessa, infelizmente para ele, que pode desenvolver algo, porque só nela pode efetivar a realidade subjetiva do mundo da percepção sensível da positividade. Um filósofo da razão aprisionado na positividade, mas que, por isso mesmo, aplica nela o cálculo, a medida, o mapeamento, enfim, o máximo possível de razão de modo que, vingativamente, também a aprisiona na razão, razão na qual ela o impede de livremente viver.


          É importante destacar que a percepção sensível para Epicuro é realidade objetiva que está por toda parte imediatamente acessível, visível, sensível, mas que os átomos e o vazio são realidade subjetiva invisível, insensível e inacessível objetivamente, mas como são realidade subjetiva são logicamente acessíveis, sensíveis e visíveis subjetivamente, portanto, é perfeitamente possível se dedicar a eles e conhecê-los abstratamente na realidade subjetiva da razão. Epicuro se percebe inteiramente livre pela realidade objetiva do mundo da percepção sensível para pesquisar e elaborar, na realidade subjetiva do mundo racional, os átomos e o vazio que se encontram na realidade subjetiva do mundo racional. Aí na realidade subjetiva dos átomos e do vazio Epicuro pode se dedicar ao desenvolvimento filosófico dos átomos e do vazio, porque aí eles são a realidade subjetiva das possibilidades abstratas, quer dizer, livres de “um encadeamento de condições, de causas, de razões etc. que mediatizem” o acaso do pensamento abstrato dos átomos e do vazio, ao contrário, aí na realidade subjetiva das possibilidades abstratas dos átomos e do vazio se constitui um campo da liberdade que como tal é determinado pela liberdade e não pelo determinismo, é determinado pela possibilidade abstrata absoluta do acaso/da livre determinação e não pela possibilidade real da necessidade relativa/da determinação aprisionada/prisioneira. Dispondo dessa liberdade de desenvolver filosoficamente os princípios filosóficos dos átomos e do vazio Epicuro vai desenvolver seus princípios filosóficos atomistas até à elaboração plena da realidade subjetiva dos átomos e do vazio que é a dissolução dos átomos e do vazio e a constituição da ciência da consciência de si. Noutras palavras, por meio da realidade subjetiva dos princípios filosóficos dos átomos e do vazio Epicuro elaborou o percurso desde os átomos e o vazio até à realidade objetiva da percepção sensível do cosmo e foi aí que elaborou a dissolução da realidade subjetiva dos átomos e do vazio na realidade subjetiva ciente da consciência humana de si. Ou seja, elaborou os seus princípios filosóficos até alcançar a liberdade da realidade subjetiva da consciência humana de si de viver na e desfrutar livremente da realidade objetiva do mundo da percepção sensível. Porque isso? Porque os átomos e o vazio estão impedidos de se tornar sensíveis, mas a consciência humana de si, apesar de ser, como os átomos e o vazio, uma realidade subjetiva, não está impedida se tornar sensível, pelo contrário, efetivamente ela é a exclusiva realidade subjetiva que se torna sensivelmente ciente de ser consciência humana de si, ela é a exclusiva realidade subjetiva que se realiza na realidade objetiva do mundo da percepção sensível como princípio da singularidade abstrata, logo, ela é o único e exclusivo “átomo” que se realiza no mundo real e objetivo da percepção sensível ou é a única e exclusiva realidade subjetiva do “átomo” que se torna realidade objetiva no mundo da percepção sensível.


          Isso resume a tese de Marx sobre os atomistas gregos. E se, mais tarde, ele critica a consciência de si em defesa do ser da percepção sensível, então é porque permanece criticando aquela “consciência de si” que só concebe a razão ou a ideia como o ser real objetivo; noutras palavras, é porque está ciente de si como ser real objetivo da percepção sensível, portanto, que não pode se satisfazer em permanecer apenas na consciência de si, apenas no sistema filosófico idealista, mas precisa realizar o sistema filosófico para efetivar o ser real e objetivo da percepção sensível de sua consciência de si.


          Ele também faz um outro uso dessas diferenças dos dois atomistas quando trata das diferenças entre os dois momentos do desenvolvimento do método da economia política. A escola dos primeiros economistas parte da positividade do Estado-Nação, da Sociedade Civil estruturada etc. até chegar a simples determinações abstratas como a divisão do trabalho, o valor de troca etc., enquanto que a escola dos economistas sucessores ou dos segundos economistas parte destas simples determinações abstratas até chegar ao todo estruturado da Sociedade Civil, do Estado-Nação etc. Noutras palavras, a atividade positiva tem por resultado chegar às simples determinações abstratas tais quais os átomos e o vazio, enquanto que a atividade filosófica (especulativa) tem por resultado chegar a um todo concreto pensado. Portanto, no essencial, não existe a menor diferença entre a concepção filosófica do Marx da tese de doutorado e do Marx “dito do corte epistemológico” nem do Marx “ainda mais maduro” o qual afirma que a sua concepção apenas reproduz no pensamento a realidade objetiva, apenas reproduz na realidade subjetiva do pensamento a realidade objetiva do ser sensível.


          Mas é essa reprodução no pensamento do concreto que faz toda a diferença com a produção no pensamento do abstrato, porque enquanto o pensamento estiver apenas abstraindo do concreto ou produzindo abstração/razão/ideia permanecerá limitado ao concreto e à sua abstração. Porém, quando pensamento estiver lidando plenamente com suas abstrações do concreto, então ele já estará relativamente livre do concreto para poder desenvolver livremente suas abstrações até à concepção abstrata do concreto no pensamento, até à sua apreensão plena e livre do concreto no pensamento.





   Boa tarde, Marli!


          Pois é, acreditamos demasiadamente nas palavras tanto que queremos o silêncio, melhor, a ausência das palavras, porque se, antes, elas eram falas e emitiam sons, depois, elas se tornaram imagens/desenhos com a escrita, então queremos a ausência de suas imagens/desenhos. Mas... como acreditamos demasiadamente nas palavras a ponto de, em geral, acharmos que somos a expressão delas e não como seria mais lógico e, talvez, natural considerarmos que elas são expressão do que somos...


          Meu pai morreu. Não paro de sentir isso, mais ainda do que quando ele estava vivo. Viver é morrer a todo instante e morrer de uma vez por todas é ficar imortal, pelo menos para quem morre a todo instante, quer dizer, para quem vive. Vida mortal e morte imortal. Na verdade, quem morre de uma vez por todas não para de morrer, ainda que pare de viver. Cabelos e unhas demoram muito a morrer por completo. Os ossos então demoram demasiadamente. Meu pai deixou um bilhete escondido na casa de Boa Vista, escrito em 2008 ou 2009, ele morreu em 2013 e meu irmão achou o escrito em 2014. No bilhete ele pedia para ser cremado. E ele foi cremado agora, no fim de semana passado. Retirei os restos mortais dele do cemitério e levei para o crematório e na segunda-feira meu irmão foi pegar a urna que agora está aqui em casa. Eu e meu pai nunca nos resolvemos. Aliás, eu e eu mesmo também nunca nos resolvemos e nunca nos resolveremos. O nunca nos resolveremos, portanto, não é só contigo, porque é com a vida, com a morte, com os vivos e com os mortos, comigo mesmo e com os outros. É minha sina. Será que isso é uma mera herança da formação portuguesa... a do fado!?... "... ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal... ainda vai tornar-se um imenso Portugal... um império colonial..."


          "Tudo que é sólido desmancha no ar!" E meu pai quis realizar isso, mas restam as cinzas... aliás, Demócrito foi mais longe e disse que restam apenas os átomos e o vazio. Mais do que isso ele considerou que de verdade existem sempre apenas os átomos e o vazio, todo o resto é mera aparência subjetiva de existência de coisas já que da combinação da pluralidade dos átomos só surge mesmo a aparência de existir uma coisa, mas não se mostra, não surge nem aparece a existência real de uma coisa. Então, vivemos prisioneiros no mundo dos sentidos, que é o da mera aparência subjetiva da realidade objetiva. Realidade objetiva que é, na verdade, a pluralidade dos átomos, tanto se combinando quanto se dissociando. É um pensamento bastante duro esse de Demócrito, mas quando olhamos para essas dissoluções das coisas sempre vemos restos que continuam em dissolução quase que infinita e, por isso, podemos imaginar e pensar como Demócrito que, no fundo, permanecem os átomos infinitamente pequenos no vazio. Esse Demócrito foi um grande filósofo grego, mas, é possível considerar no mundo moderno, mais precisamente na Alemanha moderna, que um outro filósofo, Kant, pensava de modo muito semelhante ao de Demócrito, quando considerava que só temos acesso às coisas tais quais elas são para nós, logo, só temos acesso à aparência subjetiva das coisas, mas não temos acesso à realidade objetiva das coisas tais quais elas são em si mesmas. Só é possível o conhecimento das coisas para si, que são as coisas para nós, mas não das coisas em si, que são as coisas tais quais elas são nelas próprias ou na sua realidade objetiva. Este tipo de conhecimento limitado às coisas para si era o mesmo praticado por Demócrito na Grécia antiga muito antes de ser praticado por Kant na Alemanha moderna. Ambos se relacionaram com a coisa em si inacessível e incognoscível, mas que, para eles, era a realidade efetivamente objetiva, muito mais do que essa que acessamos e conhecemos sensivelmente. Essa relação era uma relação muito mais importante e fundamental do que a relação de conhecimento possível das coisas para nós, porque era uma relação íntima com aquilo que verdadeiramente era a realidade objetiva para eles, ainda que fosse apenas a realidade objetiva que eles acreditavam existir. Demócrito dizia que esta realidade objetiva eram os átomos e o vazio, já Kant dizia que era Deus, a alma imortal e a liberdade. Na verdade, se pode dizer que Demócrito estava inteiramente de acordo com Kant, porque, para ele, os átomos e o vazio eram os deuses, os imortais e os seres absolutamente livres. A ética de Demócrito tal qual a de Kant veio a ser uma ética do dever, quer dizer, uma ética que se baseia na liberdade do ser imortal e criador e que, pretendendo agir de acordo com essa crença ao se aplicar no mundo das coisas para nós, quer dizer, dos seres prisioneiros, mortais e criados, precisa mostrar a grandeza e altivez de sua crença e agir como se fosse livre, como se estivesse efetivamente no mundo da coisa tal qual ela é em si, ou seja, sem quaisquer limites sensíveis. E isso só pode ser efetivado nesse mundo sensível como prática do dever, como um agir de acordo com o que deve ser e não de acordo com o que é, porque o mundo que deve ser real e verdadeiro é o da coisa em si e não esse mundo da coisa tal qual ela é para nós. Ora, agir tal qual deve ser é agir de acordo com o dever imposto pela crença no ser livre, imortal e criativo. De acordo com o dever porque se age num mundo onde o ser livre, imortal e criativo não é acessível nem cognoscível, mas apenas o ser prisioneiro, mortal e criatura é acessível e cognoscível neste mundo, então, agir de forma independente da condição de prisioneiro, da condição de mortal e da condição de criatura porque é agir de forma que independa das condições deste mundo, mas, como se permanecesse neste mundo, esta independência das condições dentro das condições aparece como ação de acordo com o dever da liberdade e não de acordo com (as condições próprias) do ser da liberdade.



          Na Grécia antiga Demócrito era visto como um campeão nas cinco áreas do conhecimento filosófico, mas, apesar disso, ele permaneceu insatisfeito com seu conhecimento filosófico, porque aquilo que podia conhecer era aparência subjetiva e aquilo que era a realidade objetiva ele não podia conhecer e só podia se limitar a crer. Precisamente aquilo que era mais importante ele só podia se limitar a acreditar e a agir de acordo com sua crença, enquanto que aquilo que ele podia conhecer era limitado a uma aparência subjetiva, logo, também era reduzido a uma crença no que é sem outra importância exceto ser acessível e cognoscível.


          “Le savoir qu’il tient pour vrai n’a pas de contenu; le savoir qui lui donne son contenu manque de vérité. Elle a beau être une fable, l’anecdote des anciens est une fable authentique parce qu’elle décrit le caractere contradictoire de son être: Démocrite se serait lui-même crevé les yeux, de peur que la lumière sensible n’obscurcît chez lui l’acuité de l’esprit. C’est le même homme qui, comme dit Cicéron, avait parcouru la moité du monde. Mais il n’avait pas trouvé ce qu’il cherchait.”


          Esta é igualmente a descrição do mito ou fábula de Édipo. Então, a anedota era atribuir a Demócrito a mesma condição atribuída a Édipo. Édipo conseguiu chegar a descobrir que ele era um parricida e um incestuoso e que realizou tudo isto de forma inconsciente de si. Descobriu que sua consciência de si era mera aparência subjetiva e que a sua realidade objetiva era sua inconsciência de si, mais ainda eram as determinações da vontade inconsciente de si, as quais, por sua vez, eram as vontades determinadas pelos deuses. Ao se cegar Édipo abandonava o conhecimento do mundo sensível da aparência subjetiva e se entregava ao mundo da crença da realidade objetiva. Ele assumia que o importante não era conhecer com uma consciência aparente e sim crer com um inconsciente objetivo. Essa entrega de Édipo é a mesma que fez Demócrito, segundo a anedota dos antigos, mas, além disso, é a mesma que fez Kant ao estabelecer a diferença entre o conhecimento da razão pura e a crença ou moral, quer dizer, a prática da razão, de modo que Kant estabeleceu que a razão prática ou a moral deve dirigir a razão pura ou o conhecimento. Como se sabe Kant aplicou na filosofia a física de Newton, quer dizer, a mecânica. Ora, como também se sabe, a física de Demócrito se pretende pura e exclusivamente mecânica. Como também se sabe, Édipo sempre foi guiado de modo mecânico, logo, por um sujeito transcendental tal qual concebeu Kant. No entanto, Édipo descobriu e conheceu seu ser inconsciente investigando de forma empírica através de testemunhos que confirmaram tudo aquilo que as falas dos Oráculos anunciaram. Então, este conhecimento adquirido por Édipo através da investigação não foi um conhecimento direto do próprio Édipo e sim um conhecimento indireto, logo, que implicava crer nos testemunhos. Porém, ele tinha conhecimento direto de ter matado um velho e vários membros da sua comitiva que o atacaram de forma tirânica e arrogante. Também tinha conhecimento direto de ter casado com a rainha de Tebas, que era mais velha do que ele e viúva do rei de Tebas, por ter decifrado o enigma da esfinge. Ou seja, por meio do conhecimento/testemunho das coisas para si ele confirmou as crenças nos testemunhos dos outros e/ou nos testemunhos indiretos das coisas em si. Então, ele teve acesso às coisas em si por meio da crença nos outros, logo, por meio dos outros. Desse modo, as coisas ou a coisa em si é acessível por meio dos outros, logo, por meio do Outro, o qual, aliás, torna perceptível a inconsciência de si como inconsciência de ser outro. Essa relação com os outros e com o Outro revela que é na relação do sujeito com outro sujeito e não com um objeto que o sujeito desenvolve sua relação subjetiva e intersubjetiva. Noutras palavras, o conhecimento de si só é possível no desenvolvimento da relação do sujeito com o sujeito ou com outro sujeito. Logo, é o momento da passagem da filosofia da Natureza ou da Física para a filosofia da Sociedade ou da Consciência de Si, que ocorreu, já na época de Demócrito, com o advento dos sofistas, que agiam como advogados pagos para ensinar seus alunos técnicas de defesa de suas causas ou opiniões nas assembleias democráticas gregas, e de Sócrates, que agia como um crítico das causas e opiniões porque se restringia a buscar a verdade que permanecia ignorada para todos, inclusive para ele próprio que só sabia que nada sabia. A partir do advento dos sofistas e de Sócrates a filosofia abandona a temática da Natureza e se entrega ao conhecimento da Sociedade e/ou da Consciência de Si, logo, também se entrega ao conhecimento das relações de senhor, mestre, tutor, pai e escravo, discípulo, tutelado, filho, aliás, é por aí que Hegel descreve a famosa dialética do senhor e do escravo presente na constituição da Consciência de Si na sua obra Fenomenologia do Espírito. A Fenomenologia de Hegel vai desta constituição da Consciência de Si no quarto capítulo até esta Consciência de Si chegar no oitavo e último capítulo ao Saber Absoluto. É curioso isso em Hegel porque na história da filosofia grega ele situa a filosofia de Aristóteles como uma filosofia que chegou ao saber absoluto da filosofia da Grécia antiga. Por outro lado, ele caracteriza as filosofias pós-aristotélicas como filosofias da Consciência de Si e estas filosofias da Consciência de Si pós-aristotélicas são as filosofias epicurista, estoica e cética. É curioso porque a filosofia da Consciência de Si tinha tido começo na Grécia com os sofistas e, especialmente, com Sócrates e tinha chegado ao auge ou cume com Aristóteles que conseguiu efetivar o mais consistente sistema metafísico realizando aquilo que tinha sido apenas projeto em Platão, a constituição do poder do rei-filósofo, e que, por meio de seu discípulo Alexandre, se tornou o primeiro Império desenvolvido desde o ocidente até o oriente. Ora, as novas filosofias gregas da Consciência de Si ocorrem depois de alcançado o saber absoluto, depois de a filosofia grega ficar completa e ter chegado ao “término”, como diz Marx no prefácio de sua tese sobre o atomismo grego, “do que parece ser a sua história objetiva”. Então, os sistemas epicurista, estoico e cético não são mais sistemas da história objetiva e sim sistemas da história subjetiva da filosofia grega? Mas, o próprio Marx não se situa num momento pós-hegeliano, quer dizer, pós-saber absoluto? A sua época também é a do desenvolvimento de sistemas da consciência de si que sucedem a história objetiva da filosofia alemã e europeia?



          Marx vai se ater a Epicuro que, como filósofo da Consciência de Si, já caracterizada por Hegel, parte do atomismo do filósofo da Natureza Demócrito. Epicuro, já situado no momento da filosofia da Consciência de Si, aceita ser inteiramente razoável e concebível que tudo se dissolva em átomos e vazio, mas não considera que o mundo sensível se reduza a uma aparência subjetiva, pelo contrário, considera que o mundo sensível é uma realidade objetiva e que os átomos e o vazio são uma realidade subjetiva da realidade objetiva do mundo sensível. Logo, para ele, o acesso aos átomos e ao vazio é um acesso que se faz pela subjetividade racional, porque por mais que o mundo sensível se dissolva na pluralidade dos átomos no vazio ele permanece sendo um mundo diferenciado do mundo dos átomos e do vazio, de modo que ele não é um mundo que parece, mas não é. Não, o mundo sensível é acessível e cognoscível tal qual ele é objetivamente, mas, por outro lado, é o mundo dos átomos e do vazio que só é acessível e cognoscível subjetivamente, porque por maiores que sejam as dissoluções do mundo sensível nós não vemos os átomos e o vazio e permanecemos vendo sim o mundo sensível com todas as suas mudanças dissolventes do sensível, permanecemos vendo restos os mais diversos, ainda que, na mente, consigamos acessar e conceber a existência dos átomos e do vazio. Ora, se isso é naturalmente assim, então podemos desenvolver um conhecimento dos átomos e do vazio na nossa mente, por meio da elaboração conceitual e/ou da realidade subjetiva dos átomos e do vazio. A atividade de Epicuro será dedicada a esta elaboração conceitual dos átomos e do vazio, logo, dedicada a uma elaboração filosófica dos átomos e do vazio. Mais ainda, uma elaboração que tem acesso e conhecimento plenos dos conceitos que elabora, portanto, uma elaboração que desfruta direta e imediatamente dos seus princípios atomistas, os átomos e o vazio. A partir dos conceitos dos átomos e do vazio Epicuro vem a conceber o mundo dos átomos e do vazio, a passagem do mundo dos átomos e do vazio por meio das composições dos átomos no vazio que originam de forma inteiramente inconsciente e acidental o  surgimento da composição do espaço no mundo sensível, em seguida, origina a composição do tempo no mundo sensível, a qual, por sua vez, é concebida como existindo exclusivamente durante a existência da composição do espaço sensível, logo, apenas no mundo sensível existe o tempo, então, o tempo é exclusivamente sensível, em seguida, com o espaço e o tempo sensíveis vem a concepção do que Epicuro chama de meteoros e que vai desde aquilo que chamamos de meteorologia até o que conhecemos como cosmologia, então, inclui tanto o clima quanto o cosmo, mas inclui ainda a consciência humana de si. E é neste último momento, de realização da elaboração conceitual dos átomos e do vazio desde seu mundo insensível até o mundo sensível, que ocorre uma revolução no atomismo de Epicuro, porque em toda a filosofia grega o cosmo aparece como momento de realização eterna da razão, de modo que os astros são imortais e são os deuses gregos, ou seja, os planetas tinham não só os nomes dos deuses gregos (e também romanos), mas eram eles mesmos os deuses gregos (e romanos). Aristóteles atribui a essa eternidade divina dos astros o retorno da filosofia, das artes, enfim, de todas as criações culturais, porque estes seres imortais conservam todas essas criações como relíquias que são suscetíveis de eterno retorno. Demócrito, de maneira similar a Aristóteles e aos demais gregos que eternizam o cosmo, como o motor imóvel do eterno retorno das relíquias que são as criações culturais, apenas reduz esse cosmo eterno ao eterno mundo dos átomos e do vazio. Epicuro neste momento percebe que se atribuir aos corpos celestes esta eternidade, então o atomismo passará a ser um, digamos, “cosmismo”, porque serão os corpos celestes a realização efetiva dos átomos como pluralidade infinita de corpos celestes no espaço cósmico infinito. Ora, para que os átomos e o vazio continuem sendo os princípios e os corpos e o vazio cósmicos não os suprimam e se apropriem de seus princípios atomistas é preciso que os corpos celestes e o cosmo sejam mortais e se dissolvam por completo em átomos e vazio. No entanto, Epicuro nota que, se é verdade que todo o mundo sensível é mortal e redutível aos átomos e ao vazio, então também é verdade que apenas a consciência humana de si se diferencia, no mundo sensível e redutível aos átomos e ao vazio, de todos os demais seres sensíveis por se constituir na capacidade de conceber tudo isto, logo, por se constituir efetivamente na tão admirada razão da filosofia grega e numa razão que existe num ser humano mortal, logo, numa razão que é exclusiva do mundo sensível, portanto, ela é a verdadeira realização efetiva do atomismo no mundo sensível e, consequentemente, como ela própria, a razão, que é a consciência humana de si, é tão mortal quanto os demais seres sensíveis, mas também é a realização efetiva do atomismo no mundo sensível, portanto, ela sintetiza a realização do atomismo no mundo sensível como mortalidade do atomismo e, desse modo, a realização efetiva do atomismo é a dissolução do atomismo e a constituição da consciência humana de si. Epicuro neste momento realiza uma revolução com o seu atomismo de modo que este atomismo se dissolve quando ele se realiza como a singularidade abstrata da consciência humana de si e não mais a singularidade abstrata do átomo, logo, neste momento, é a consciência humana de si que é o conceito do átomo de Epicuro, que é a realização do conceito de átomo de Epicuro, portanto, é a consciência humana de si que é o átomo de Epicuro. Portanto, quando realiza o atomismo, quer dizer, passa do mundo insensível dos átomos para o mundo sensível dos seres, imediatamente dissolve a ciência do atomismo na ciência da consciência humana de si, se emancipa do princípio atomista e afirma a libertação do princípio da consciência humana de si. A partir daí tudo que fizer será por meio do uso da consciência de si, logo, poderá usar da sabedoria de agir consciente de si e não mais da forma inconsciente de si de Demócrito, seu predecessor no atomismo.



          É isso. Agradeço a você por ser esta a primeira vez que consigo fazer um apanhado de conjunto do meu estudo da tese de Marx.

          Até, se tiver até...



                  Carlos Eduardo.




Revolução de Epicuro: Prática da sabedoria e dissolução do atomismo

          

          O fenômeno é aparência subjetiva versus o fenômeno é realidade objetiva e a essência é realidade objetiva versus a essência é aparência subjetiva.


      O fenômeno é aparência subjetiva e a essência é realidade objetiva versus o fenômeno é realidade objetiva e a essência é aparência subjetiva. Por um lado, o fenômeno sensível e concreto não é real e sim aparência e, por outro lado, a essência insensível e abstrata é real e não aparência versus o fenômeno sensível e concreto que é real e a essência insensível e abstrata que é aparência.


         Se o real é a base de apoio e o suporte da aparência, quer dizer, se o real é o ser objetivo, então a aparência é o ser subjetivo ou o seu reflexo, quer dizer, é o que se edifica e se desenvolve como aparência sobre esta base do real.


        Ora, num caso, o real, que é a base de apoio ou o suporte, são os átomos e o vazio e a aparência, que se edifica e desenvolve, são os fenômenos sensíveis. Já no outro caso, o real, que é a base de apoio ou o suporte, são os fenômenos sensíveis e a aparência, que se edifica e desenvolve, são os átomos e o vazio.


        No primeiro caso, real é o mundo dos átomos e do vazio enquanto que aparência é o mundo sensível.


         No segundo caso, real é o mundo sensível enquanto que aparência é o mundo dos átomos e do vazio.


          Para o primeiro, o mundo real, objetivo e permanente é o dos átomos e do vazio e o mundo da aparência, subjetivo e dissolvível é o dos sensíveis. 


         Já para o segundo o mundo real, objetivo e permanente é o dos sensíveis e o mundo da aparência, subjetivo e dissolvível é o dos átomos e do vazio.


         O primeiro tem os pés e o corpo inteiramente entregues e mantidos no repouso do mundo insensível e abstrato, já a cabeça e a mente do primeiro estão inteiramente entregues e mantidas na atividade do mundo sensível e abstrato. Isto ocorre porque o mundo real e objetivo, que é aquele no qual se encontra e repousa a coisa, o objeto ou a exterioridade, para ele, é o mundo insensível e abstrato, enquanto que o mundo aparente e subjetivo, que é aquele no qual se encontra e pulsa (vive) o si mesmo, o sujeito ou a intimidade, para ele, é o mundo sensível e concreto.


        A chave para compreender o materialismo de Marx se encontra na sua tese de doutorado sobre Demócrito e Epicuro. É aí que vemos, de forma clara, os antecedentes daquela afirmação de que seu materialismo apenas inverteu o idealismo de Hegel, porque este se encontrava de cabeça para baixo.


         Aí nós vemos ele mostrar o materialismo de Demócrito de cabeça para baixo e mostrar o materialismo de Epicuro invertendo o de Demócrito por estar de cabeça para cima.


        Quando o pensamento está de cabeça para baixo ele não está meramente praticando uma posição de Yoga, chamada em português de plantar bananeira, mas está sim considerando que todo o mundo insensível e abstrato que, em geral, está presente na cabeça, melhor, sob a cabeça, quer dizer, dentro da cabeça é o mundo real e objetivo que sustenta a tudo e a todos. E, por outro lado, está igualmente considerando que todo o mundo sensível e concreto que, em geral, está presente nos pés, melhor, sob os pés, quer dizer, fora dos pés é o mundo aparente e subjetivo.


      Quando o pensamento fica de cabeça para cima e apoiado sobre os pés, então todo o mundo real e objetivo que sustenta a tudo e a todos é sensível e concreto, enquanto que todo o mundo aparente e subjetivo que é sustentado por tudo e por todos é insensível e abstrato.


          [O mundo real e objetivo que é fonte e sustento de tudo é pura atividade de doação, a qual, por sua vez, pode ser compreendida como graça (vontade de criar) ou como acaso (criação involuntária). Já o mundo aparente e subjetivo que ganha e elabora ou desenvolve o seu sustento é pura atividade de apropriação, a qual, por sua vez, também pode ser compreendida como graça (criação da vontade) ou como acaso (vontade criadora).]



          Ora, considerando que o mundo real e objetivo se limita à atividade de sustentar e/ou de ser a fonte de tudo, então cabe ao mundo aparente e subjetivo a atividade de ser sustentado e/ou de ser elaborado, ou seja, cabe ao mundo aparente e subjetivo a atividade dupla de receber/ganhar e de elaborar seu sustento.


          O mundo real e objetivo que é a fonte de tudo, para Demócrito, é o mundo insensível e abstrato e é nele que se encontra tudo, logo, também o mundo aparente e subjetivo de toda sensibilidade e concretude. Esta posição de Demócrito está presente em toda a filosofia grega até Aristóteles e é similar à posição de Kant que também está presente em toda a filosofia alemã até Hegel.


          O mundo real e objetivo que é a fonte de tudo, para Epicuro, é o mundo sensível e concreto e é nele que se encontra tudo, logo, também o mundo aparente e subjetivo de todo o insensível e abstrato. Esta posição de Epicuro está presente na sua filosofia grega pós-aristotélica e corresponde à posição de Marx que está presente na sua filosofia alemã pós-hegeliana.


          A atividade subjetiva, em quaisquer dos casos, é a atividade de elaboração, ou seja, cabe sempre ao sujeito a atividade de elaboração. A elaboração em Demócrito está voltada para o mundo concreto e sensível que, para ele, é atividade aparente e subjetiva. Mas, Demócrito “teria se cegado para que a luz sensível não lhe obscurecesse a acuidade do espírito”, quer dizer, teria se livrado do mundo aparente e subjetivo para passar ao mundo real e objetivo que é o mundo insensível e abstrato. Esta passagem da ocupação da atividade subjetiva do mundo sensível e concreto de forma decisiva para o mundo insensível e abstrato aparece na filosofia grega como uma mudança de temática da filosofia da Natureza ou da Física para a filosofia da Sociedade ou da Metafísica e, claro, ela corresponde também a uma mudança da filosofia da Consciência para a filosofia da Consciência de Si. Podemos considerar que, depois deste ato edipiano da filosofia grega da Natureza, a filosofia grega se tornou filosofia da Metafísica e/ou de preparação para a morte (como se vê em Platão e a partir do suicídio de Sócrates) tal qual em “Édipo em Colona”. Ela, a filosofia grega, pôde se desocupar do mundo sensível e concreto para se dedicar ao mundo insensível e abstrato, mas este permanecia sendo o mundo real e objetivo, enquanto que o mundo aparente e subjetivo permanecia sendo o mundo sensível e concreto com o qual ela cortou os laços de atenção e foco ao se cegar (ao se castrar, dizia Freud). Noutras palavras, a filosofia Metafísica grega conseguiu se dedicar ao cultivo do mundo real e objetivo da insensibilidade e abstração de modo que o desenvolveu como a fonte e sustento de tudo.


          Depois de a Metafísica ter chegado ao seu auge com Aristóteles é que aparece Epicuro fazendo um retorno à Física ou retomando a Física da filosofia da Natureza de Demócrito. O mundo da Metafísica aristotélica é igualmente o mundo do Império de Alexandre, o Grande, que era seu discípulo e a realização do projeto surgido com Platão, o mestre de Aristóteles, de fazer da filosofia o poder supremo incorporando-a ou encarnando-a no rei-filósofo. Este Império de Alexandre está em decomposição quando surge a filosofia de Epicuro. Seria esta a razão de Epicuro abandonar a Metafísica, para que ela prossiga no processo de dissolução junto com a dissolução do Império Alexandrino? Tudo isso é possível, mas o que importa mesmo é que Epicuro retomou a Física de Demócrito de um modo inteiramente diverso àquele que vinha sendo desenvolvido pela filosofia grega até Aristóteles. Epicuro considerou que o mundo real e objetivo é o mundo sensível e concreto e que o mundo aparente e subjetivo é o mundo insensível e abstrato, então o sensível e concreto era o mundo dado a ele, enquanto que o mundo insensível e abstrato era o mundo elaborado por ele. Decidiu então elaborar a Física de Demócrito como mundo insensível e abstrato na aparência da sua subjetividade.


          O mundo real e objetivo é sensível e concreto para Epicuro que sensivelmente o percebe e esta percepção sensível passa de forma insensível e abstrata para o mundo subjetivo onde aparece para Epicuro como forma insensível e abstrata do que é sensível e concreto. A forma insensível e abstrata do atomismo é a apropriação que aparece no sujeito do que é sensível e concreto. Ele não precisa se cegar para ter acesso à forma insensível e abstrata, ao contrário, ele precisa perceber sensível e concretamente a realidade objetiva porque é o sustento dela que ele recebe na forma abstrata e insensível que se dedica a elaborar. Ele não só nasce sensível e concretamente da realidade objetiva, mas também a sua atividade insensível e abstrata aparente na sua subjetividade resulta de ficar engravidado pela percepção sensível, logo, resulta de afirmar, fruir e proteger a percepção sensível e não de negar, escravizar e destruir a percepção sensível. Epicuro afirma a sexualidade de modo similar à afirmação da mesma feita por Prometeu que deu forma ao fértil húmus nascido da Terra, a fértil forma humana, e engravidou esta forma com a sensível fertilização ou percepção da criativa centelha/luz do Céu, o criativo conteúdo da forma humana.


          Epicuro só aparece depois de a filosofia grega desenvolver a Metafísica ao máximo a partir do ceticismo, quer dizer, da negação e castração da percepção sensível, logo, com os olhos sensíveis e concretos muito bem fechados. Epicuro afirma e frui a percepção sensível e é com os olhos sensíveis e concretos muito bem abertos que ele, a partir da certeza do saber sensível/dogmatismo, se dedica a desenvolver ao máximo a Física abstrata e insensível.


          Porém, a novidade é o resultado ao qual chega Epicuro. Ele elabora o atomismo como processo de gestação do qual nasce a consciência humana de si, a qual, por sua vez, afirma a si mesma como o princípio subjetivo essencial e/ou aparente do fenômeno objetivo e/ou da realidade objetiva. A partir deste resultado a consciência humana de si pode construir e desenvolver sensível e livremente na concretude do mundo real e objetivo a sua própria subjetividade essencial/aparente, quer dizer, a aparência ou a essência de sua própria subjetividade humana. Portanto, a novidade do resultado de Epicuro é que ele chega a transformar a atividade subjetiva humana no princípio da atividade essencial/aparente do próprio movimento real, consegue transformar o sujeito no movimento real do objeto, logo, consegue não só inocular a atividade do sujeito dentro do objeto mas tornar a livre atividade do sujeito o movimento real do objeto/o movimento real objetivo. Portanto, Epicuro consegue tornar a liberdade essencial/aparente do sujeito a liberdade do próprio movimento real. É aqui que a concepção de prática revolucionária do movimento real de Marx teve seu encontro e nascimento com a concepção revolucionária de prática da sabedoria da consciência humana de si de Epicuro


          Por aqui é possível compreender e explicar não só a prática revolucionária, mas a sua passagem de um sujeito determinado pelo movimento da necessidade real do objeto para um sujeito determinante do movimento da liberdade real do objeto. Quer dizer, a tal famosa passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade é inteiramente dependente deste materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx.