terça-feira, 29 de novembro de 2016

A novidade do materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx




“Um filósofo da razão aprisionado na positividade, mas que, por isso mesmo, aplica nela o cálculo, a medida, o mapeamento, enfim, o máximo possível de razão de modo que, vingativamente, também a aprisiona na razão, razão na qual ela o impede de livremente viver.” (Ver em https://singularidadeabstrata.wordpress.com/2016/11/29/a-novidade-do-materialismo-epicurista-revolucionario-de-karl-marx/ )


“Parece acontecer à filosofia grega aquilo que não deve acontecer numa boa tragédia: um desenlace sufocado. Com Aristóteles, o Alexandre da Macedônia da filosofia grega, parece terminar, na Grécia, a história objectiva da filosofia. Mesmo os estoicos, apesar de sua decisão (força, na versão francesa) viril, não conseguem, tal como o fizeram os Espartanos nos seus templos, prender Ateneia a Heracles para que aquela não pudesse fugir.” (Ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html ).


Pela primeira decisão, talvez, seja melhor dizer pela primeira força, a de Demócrito, o mundo positivo é inteiramente dominado e domesticado pela razão que tudo nele calcula, mede e mapeia para poder chegar o máximo possível onde anseia que é o mundo da razão insensível e invisível. A objetividade da positividade aqui, ao mesmo tempo, já é outra objetividade, é a objetividade da abstração. Esta novidade, a objetividade da razão, é a mesma do aviso da Academia de Platão de que nela “só entra quem conhece a Geometria”. Esta objetividade da razão equivale à objetividade do trabalho abstrato, equivale à objetividade do capital. Se considerarmos que é a história dessa objetividade que chegou ao fim, logo, também que, nesse momento, o capital escapou dos templos, então podemos trazer para dentro da crise ou do sufoco pelo término da história objetiva da filosofia grega igualmente o sufoco ou a crise pelo término da história do capital grego.


As filosofias pós-aristotélicas dos epicuristas, estoicos e céticos, apesar da força viril dos estoicos, são aquelas que não conseguem prender a razão objetiva ou o capital nos templos gregos. São as filosofias que escapam dos templos e dos cultos que a tudo calculam, medem e mapeiam buscando fruir esta liberdade na história subjetiva da filosofia grega, quer dizer, no livre desenvolvimento dos sujeitos gregos, logo, é aí na liberdade dos indivíduos que a liberdade de Ateneia (deusa da Sabedoria), logo, do livre desenvolvimento da força da sabedoria vem a ser igualmente o livre desenvolvimento da força do sujeito humano, o livre desenvolvimento da força da sabedoria humana. Estas filosofias pós-aristotélicas são as forças subjetivas da sabedoria da filosofia grega que vem à tona, vem à cena da história desta filosofia grega. Elas são as forças que sustentam toda a história da filosofia grega, mas que vinham sendo mantidas prisioneiras da tal história objetiva desta filosofia, logo, igualmente prisioneiras da história do capital grego, a qual, por sua vez, é igualmente a história do escravismo grego ou a história do trabalho escravo na Grécia. Estas filosofias são filosofias da libertação dos sujeitos, dos indivíduos e/ou das forças humanas gregas do trabalho escravo. São filosofias que surgem num momento bem específico de crise do império alexandrino, quer dizer, tanto do sistema aristotélico quanto do mercado mundial alexandrino, logo, num momento que não tem mais como expandir o escravismo e que, ao mesmo tempo, para manter o mercado precisa de mais consumidores, portanto, num momento de crise do domínio mundial do império que precisa reduzir o poder senhorial escravocrata junto com a redução do trabalho escravo e, ao mesmo tempo, aumentar o número de consumidores livres do excesso de poder senhorial e do excesso de trabalho escravo. São filosofias que surgem num momento de libertação do poder senhorial escravocrata e do trabalho escravo, por isso mesmo, na história da filosofia de Hegel (e na sua Fenomenologia), são filosofias da consciência de si, filosofias da dialética do senhor e do escravo. E, dentro desta dialética da senhor e do escravo, a filosofia epicurista é aquela que, segundo Marx, realiza efetivamente a libertação deste sistema escravocrata do senhor e do escravo, quer dizer, é aquela que, na língua de Hegel, realiza efetivamente a superação e/ou a suprassunção da dialética do senhor e do escravo.



O detalhe é que a filosofia de Hegel é equivalente em poder senhorial imperialista à filosofia de Aristóteles, já que a filosofia de Hegel é a do Saber Absoluto, porém, é o próprio Hegel quem situa as filosofias epicurista, estoica e cética da consciência de si gregas como sucessoras imediatas de Aristóteles, portanto, é o próprio sistema hegeliano que indica que seus sucessores serão filósofos das filosofias da consciência de si. Marx vai desenvolver esta filosofia da consciência de si como filosofia da libertação/emancipação da força humana de trabalho. No sentido de emancipação do trabalho livre assalariado, logo, de fim da história objetiva do capital que aprisiona a história subjetiva da força humana no trabalho livre assalariado. De modo que a força humana de trabalho deixará de ser objeto do sistema de trabalho livre assalariado e não mais simplesmente do sistema de trabalho escravista. Porque? Porque irá suprimir ou suprassumir a objetividade insensível ou o capital de modo a realizar o livre desenvolvimento da subjetividade sensível ou da força humana criadora.



domingo, 27 de novembro de 2016

Materialismo revolucionário epicurista de Karl Marx





Prática da forma subjetiva: cuidado e/ou descuido       



          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos até que teve a crise que ele relata na “Carta Ao Pai”. Ali ele descobriu que o seu materialismo estava aquém do idealismo de Hegel, aquele filósofo antipático que ele tinha pretendido destruir com seu materialismo expresso em “Cleanthes ou o Ponto de Partida e a Necessária Continuação da Filosofia” (ver em http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP4Port.htm#_ftnref10) Aceitou esta sua inferioridade e se tornou discípulo de Hegel para suprir sua inferioridade com a superioridade do sistema de Hegel. Ele se viu então numa situação similar à de um artesão que descobre não poder sobreviver com seu artesanato e que se vê obrigado a trabalhar como assalariado na manufatura ou na indústria. Percebeu que não poderia cuidar de seus próprios assuntos com um materialismo artesanal e que o único acesso, na Alemanha, a um materialismo manufatureiro ou industrial com o qual pudesse tratar de seus próprios assuntos era através do sistema do idealismo de Hegel. Dentro do sistema idealista de Hegel era possível encontrar toda a potência, a luz e o conhecimento da capacidade manufatureira e industrial do materialismo francês e inglês, quer dizer, era possível encontrar a consciência das capacidades manufatureira e industrial francesas e inglesas. Ele percebeu assim que essa consciência do materialismo francês e inglês era a única realidade alemã com acesso verdadeiro, quer dizer, com equivalência e à altura das capacidades manufatureira e industrial da França e da Inglaterra e isso apesar de essa ser uma consciência idealista dessas capacidades materialistas. Então, como consequência do seu acesso ao materialismo francês e inglês exclusivamente pela consciência sistêmica do idealismo hegeliano passou a lutar para que essa consciência idealista se realizasse efetivamente, quer dizer, se tornasse consciência do ser ou sujeito material e social dessa capacidade manufatureira e industrial. Noutras palavras, lutou para que o hegelianismo se realizando efetivamente como prática mundana trouxesse à tona e desenvolvesse o materialismo manufatureiro e industrial na realidade alemã.


          Marx que, até então, sempre soube cuidar de seus próprios assuntos, permaneceu desenvolvendo essa capacidade de cuidar de seus próprios assuntos ao se tornar discípulo de Hegel para, realizando o sistema de Hegel, ter acesso aos materialismos francês e inglês e ultrapassar seu superado materialismo alemão.


          Certamente que a Alemanha permaneceu tendo esse tipo de contradição entre a consciência idealista alemã, que está em sintonia com a consciência e o ser materialista da França e da Inglaterra, e a consciência materialista alemã, que está superada e em relação anacrônica com a consciência e o ser materialista da França e da Inglaterra, simplificando: na realidade alemã apenas a consciência idealista tinha uma relação de contemporaneidade e sintonia com o materialismo francês e inglês, já a consciência e o ser materialistas da realidade alemã tinham uma relação anacrônica e superada com o materialismo francês e inglês. Então, curiosamente, o materialista hegeliano Marx combatia o materialismo não-hegeliano alemão, quer dizer, o materialismo artesanal, autônomo e nativo por ser anacrônico. Na principal obra dessa época, “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, onde defende a realização efetiva da filosofia de Hegel, ele expressa esse materialismo alemão como sendo o da Economia Nacional que se desenvolve por meio dos Monopólios, enquanto que o materialismo inglês e francês é o da Economia Política que se desenvolve combatendo os Monopólios. Noutra obra publicada junto com esta, “Questão Judaica”, ele defende o direito do judeu à emancipação política e critica a posição materialista teológica de Bauer que defende um Estado Nacional Alemão com o seu Monopólio Cristão ou, no caso, de se emancipar do cristianismo, com seu Monopólio Ateu. Ele considera um absurdo que a emancipação política do judeu só seja possível, segundo Bauer, num Estado Judaico, o qual, segundo o mesmo Bauer, é uma quimera, portanto, para Bauer, o judeu não tem nenhum direito à emancipação política, exceto se tornando cristão, já que o Estado Nacional Alemão é cristão ou então apenas quando o Estado Nacional Alemão se tornar ateu e os judeus e os cristãos se tornarem igualmente ateus, ou seja, segundo Bauer, o Estado é teológico, seja de um teísmo, seja de um ateísmo, portanto, a emancipação política para todos só será possível quando todos forem ateus, quer dizer, apenas humanos, ainda que sejam primeiro alemães e depois humanos. Ora, este materialismo teológico monopolista de Bauer é para Marx um materialismo que não concebe a emancipação política e que a confunde com a emancipação humana, aliás, é precisamente esta confusão, aquela que foi posta em prática no século XX, como sendo a emancipação proposta por Marx, quando, na verdade, ela é própria do materialismo não-hegeliano alemão e deste materialismo alemão dos discípulos anti-hegelianos ou que acusam Hegel de traição. Portanto, na Alemanha, já existe uma luta entre os judeus, Kant (em especial, com sua “Resposta à Questão: O Que É Esclarecimento? ”) e Hegel, com sua adoção e defesa de Spinoza, por um lado; e, os pangermanistas, pelo outro lado, antecedendo aquilo que vai se configurar na Alemanha nazista.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos até que teve a crise que ele relata na “Carta Ao Pai” que o levou a tematizar o cuidado dos próprios assuntos na tese de doutorado “Diferenças entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro”, a qual, ao mesmo tempo, já era o cuidado todo especial com o assunto Jenny von Westphalen e com o pai dela, Ludwig von Westphalen, a quem dedica a tese. O leitor vê o cuidado todo especial com o assunto Jenny nessa passagem do prefácio: “(...) Gassendi, que libertou Epicuro do ostracismo a que tinha sido votado pelos padres da Igreja e por toda a Idade Média, a época do irracionalismo, só apresenta em toda sua exposição este aspecto interessante. Procura conciliar sua fé católica com a ciência pagã, Epicuro com a Igreja, o que é certamente tempo perdido. É como se se quisesse vestir o corpo esplêndido e florescente de uma Lais grega com o hábito de uma freira cristã. Em vez de nos ensinar algo sobre a filosofia de Epicuro, é dele que Gassendi toma lições de filosofia.” (ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html). Jenny é certamente mais do que uma Lais grega para Marx, quanto ao pai toda a dedicatória é explícita declaração de “amor filial” que se torna perfeita quando vem de um verdadeiro genro para seu querido sogro. Porém, é noutra passagem do prefácio que Marx traz à tona o tema do saber cuidar dos seus próprios assuntos (hoje, um leitor de Foucault não hesitaria em dizer que a temática trazida à tona aí por Marx é a do “cuidado de si”):


          “Se acrescentei em apêndice uma crítica da polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro, foi porque esta polêmica não constitui um fenômeno isolado; é, pelo contrário, um bom exemplo do que a mentalidade teologizante pode fazer à filosofia.

          “Entre outras coisas, não nos preocupamos com a falsidade genérica do ponto de vista de Plutarco, quando arrasta a filosofia para o tribunal da religião a fim de a julgar. Tudo que dissermos sobre isto pode ser substituído pela seguinte passagem de David Hume: ‘É certamente uma injúria obrigar a filosofia, cuja autoridade soberana deveria ser reconhecida em todo lado, a defender a sua causa sempre que se não aceitam as consequências que origina ou a justificar-se perante toda a arte ou ciência que possa chocar. É como se acusássemos um rei de ter atraiçoado os seus próprios interesses. ’” (Ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html).


          Marx já tinha encontrado na mentalidade teologizante de Plutarco o modelo da mentalidade teologizante de Bauer. E, para ele, a realidade alemã era o materialismo da anacrônica Idade Média. Porém, aqui o principal é “o rei que seria acusado de alta traição a respeito de seus próprios assuntos” (tradução da versão francesa). E esta situação na Grécia Antiga é expressa em dois mitos representados em duas tragédias, “Édipo Rei” e “Prometeu Acorrentado”.


          Em “Édipo Rei” vemos o rei submetido a julgamento pelo tribunal da religião e o que mais surpreende é que a forma subjetiva do Rei Édipo seja inteiramente isenta de responsabilidade consciente dos crimes de parricídio e de incesto que comete, quer dizer, o que mais surpreende é que o Rei Édipo não tem consciência de si e quando a adquire descobre que sua forma subjetiva é basicamente inconsciente de si.


          Já em “Prometeu Acorrentado” vemos Prometeu, que significa “aquele que sabe com antecipação”, logo, que é a autoridade filosófica soberana, quer dizer, aquele cuja forma subjetiva é a consciência que possui, sendo acorrentado, torturado e lançado no abismo até às profundezas da terra, nos surpreender por assumir que agiu deliberadamente contra os desejos de Zeus, a quem acusa de ser um tirano que vai causar sua própria ruína por agir de forma irresponsável e sem cuidado nos seus próprios assuntos. O que nos surpreende é que o sujeito que está sendo martirizado ao extremo não só nos diga que é vítima de uma injustiça, porém, mais ainda, nos fale como quem julga, condena e derruba seu algoz, quer dizer, como quem profetiza e determina o futuro de seu algoz. Que sujeito é esse com tamanha consciência do futuro? Que forma subjetiva é essa que mostra ter plena consciência de si e que tão categoricamente afirma que seu algoz, Zeus e/ou o tribunal da religião, é a forma subjetiva do que é inconsciente de si?!


          Ora, na tese veremos os dois filósofos atomistas gregos encarnarem duas formas subjetivas antagônicas. Uma forma subjetiva é o inconsciente de si e a outra forma subjetiva é a consciência de si. Além dessas formas subjetivas encarnarem as diferenças     entre os sistemas filosóficos de Kant, com seu saber limitado devido à coisa em si incognoscível, e de Hegel, com seu saber absoluto devido ao desenvolvimento da consciência de si, elas encarnam o momento da passagem da consciência para a consciência de si. Hegel, na “Fenomenologia do Espírito”, configura o último momento da figura da consciência, antes de começar a figura da consciência de si, como “Força e entendimento; Fenômeno e mundo suprassensível” (ver em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2289), onde o objeto desaparece, como que dissolvido, enquanto força e fenômeno da percepção sensível e começa a ser entendimento e mundo suprassensível da ideia [na verdade, nesse capítulo da “Fenomenologia”, a descrição do objeto é ora força e entendimento da percepção sensível e ora entendimento e mundo suprassensível da ideia, ora aparência/fantasma e ora subjetividade/imaginação, é o objeto que pisca, quer dizer, cintila ou é e não é nesse momento, determinado como o último da consciência antes de iniciar o momento da consciência de si] nesse sentido, ele se torna perfeitamente concebível como átomos e vazio, que são os princípios comuns dos dois filósofos gregos Demócrito e Epicuro. Porém, dependendo de como é feita a passagem deste último momento da figura da consciência, do que é ora força e fenômeno e ora entendimento e mundo suprassensível, quer dizer, da figura dos átomos e do vazio, para a figura da consciência de si se terá por resultado a forma subjetiva do sistema de Demócrito que é o inconsciente de si ou o eterno retorno dos átomos e do vazio ou se terá por resultado a forma subjetiva do sistema de Epicuro que é a ciência da consciência de si ou a dissolução dos átomos e do vazio.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos e na sua tese sobre Demócrito e Epicuro fica claro que ele soube cuidar de si mesmo de forma prometeica e/ou epicurista, isto é, soube cuidar de si mesmo como terapeuta psicanalítico prometeico e não como paciente psicanalítico edipiano, ou seja, foi “psicanalista avant la lettre”.


          Marx sempre soube cuidar de seus próprios assuntos e, por isso, também foi um filósofo que, tal qual Foucault, destacou a filosofia como a prática do “cuidado de si”?!



          Para Marx a prática da filosofia é a prática da emancipação/libertação humana, quer dizer, do cuidado de si e da autoajuda?! 




Revolução teórica de Karl Marx: A forma subjetiva da ciência de si


          A revolução teórica de Karl Marx se inicia muito cedo, mas é na dissertação “Diferenças entre as filosofias da natureza de Demócrito e de Epicuro” (ver em http://docslide.com.br/documents/3-as-filosofias-da-natureza-em-democrito-e-epicuro.html e ver também a “Carta Ao Pai” que se relaciona com a elaboração teórica e histórica de Marx: http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP4Port.htm#_ftnref10) que ela pode ser vista como o anúncio e a concepção completa da revolução teórica e histórica de um novo sistema prático. Essa é mais uma das tentativas de apreensão dessa novidade teórica e histórica desta nova prática. Muito importante, a meu ver, porque sem a apreensão teórica e histórica dessa novidade não há nenhuma nova prática. Ainda que pareça pobre, este é um texto que, a meu ver, consegue chegar na novidade da revolução teórica e histórica de Marx, que é indicar o caminho para efetivar a riqueza duma nova prática, então, pode ser que consiga vir a percorrer o caminho indicado e deixar de parecer pobre.



          No primeiro capítulo, da “Primeira Parte: Diferença de um ponto de vista genérico entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro” de sua tese de doutorado sobre as “Diferenças entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro”, Marx delimita o seu “Objeto da dissertação” como sendo “a forma subjetiva, o suporte espiritual dos sistemas filosóficos”, porque, “até agora”, “justamente” este “objeto” “foi quase que totalmente esquecido em proveito das determinações metafísicas destes sistemas”.


          No segundo capítulo, “Opiniões sobre a relação existente entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, após levantar uma massa de opiniões desfavoráveis a Epicuro desde a Antiguidade até à Modernidade ele conclui observando que “todos concordam num ponto: Epicuro foi buscar sua física em Demócrito”, quase como se todos dissessem que Epicuro roubou/tomou sua física de Demócrito.


          No terceiro capítulo, “Dificuldade de identificação da filosofia da natureza de Demócrito com a de Epicuro”, ele faz um levantamento das posições diferentes de cada um deles no que se refere ao puro saber da razão, à prática do saber da razão e à faculdade de julgar do saber da razão ou de “relacionar o pensamento com a realidade em geral”.


          Para Demócrito, o puro saber da razão é incerto porque o fenômeno é um fantasma, que parece objetivo, mas é subjetivo, e porque a essência é uma realidade objetiva da qual só temos uma ideia porque ela é incognoscível por se encontrar no fundo do poço inacessível. Para Epicuro, o puro saber da razão é certo porque o fenômeno é objetivo, logo, é uma realidade objetiva que percebemos sensivelmente e a essência é subjetiva, logo, é uma realidade subjetiva da qual temos um conhecimento que é imediatamente acessível e completamente concebido dentro de nós.


          Para Demócrito, a prática do saber da razão não pode ser sobre a essência da realidade objetiva porque ela é inacessível e incognoscível, logo, a prática se lança sobre o fenômeno que parece objetivo e é, na verdade, subjetivo, só porque ele é acessível e, por isso, cognoscível. Para Epicuro, a prática do saber da razão pode ser sobre a essência da realidade subjetiva porque ela é acessível e cognoscível, logo, a prática se fixa na elaboração da essência que é subjetiva, já que o fenômeno é objetivo, logo, já elaborado e também é objetivável, quer dizer, elaborável pela essência subjetiva.


          Para Demócrito, a faculdade de julgar do saber da razão ou de relacionar o pensamento do incognoscível com a realidade em geral do fenômeno cognoscível é o determinismo, quer dizer, é a necessidade, é a prisão. Para Epicuro, a faculdade de julgar do saber da razão ou de relacionar o pensamento cognoscível/concebível com a realidade em geral do fenômeno objetivável é a possibilidade abstrata, quer dizer, é o acaso, é a liberdade.


          Do quarto capítulo, “Diferença genérica entre os princípios da natureza de Demócrito e de Epicuro”, só restam Notas e, dessas, só duas são compostas por textos de Marx, as demais doze se referem apenas a indicações de passagens extraídas e/ou citadas de obras de outros autores. Quanto ao quinto capítulo só restou o título: “Resultado”. Esses são prejuízos significativos para compreendermos a dissertação de Marx. As duas Notas escritas pelo próprio Marx são importantíssimas para compreender o pensamento do próprio Marx e a mais importante, sem dúvida, é a bem extensa segunda Nota. Nela, há uma passagem onde aparece isso “(...). Nós vemos aqui por assim dizer seu curriculum vitae reduzido ao essencial, levado à sua extremidade subjetiva. (...)” e é surpreendente que toda a Nota chegue ao ponto de antecipar as polêmicas que Marx terá com vários dos jovens hegelianos a tal ponto que ele fecha a Nota assim: “(...). Quanto a estas direções elas mesmas, eu explicarei em outro lugar de maneira mais completa a relação entre elas e a filosofia hegeliana, assim como os diversos momentos históricos nos quais se apresenta este desenvolvimento. ” Essas obras referentes àqueles adversários que se relacionam com a filosofia hegeliana nasceram mais tarde sob os títulos de “A Questão Judaica”, “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã” (ainda que esta não tenha sido publicada em vida), “Teses Sobre Feuerbach” (ainda que esta só tenha sido publicada por Engels muito tempo depois), “Miséria da Filosofia” (ainda que esta seja da autoria de um francês que conheceu Hegel através de um alemão que não compreendia quase nada do filósofo). Já as passagens mais importantes dessa Nota antecipam a leitura que o próprio Marx faz de Hegel e que, basicamente, aparece sob o título “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” e também na “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (ainda que não tenha sido publicada em vida), nos “Manuscritos Econômicos-Filosóficos” (também inédito em vida) e outros textos inéditos. No entanto, sem qualquer dúvida, o essencial da “Introdução” está presente e, até mesmo, melhor exposto nesta Nota. É a Nota mais grávida de futuro que já li, pelo menos, até agora, e de um futuro que é um curriculum vitae.


          Deixemos de lado, por enquanto, esta Primeira Parte, arruinada pela perda dos seus dois últimos capítulos, e passemos para a Segunda Parte, “Diferença considerada nos seus pormenores entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro”, na qual o primeiro capítulo é “A declinação do átomo da linha reta”, então, o próprio título já é a afirmação de um conceito considerado como estritamente epicurista, porque, parece piada, mas esse conceito não é encontrado nos poucos textos do próprio Epicuro que sobreviveram e fazem parte da história. Ele é um conceito que é encontrado apenas a partir de Lucrécio, o discípulo romano de Epicuro, contemporâneo de Cícero. O principal aqui é comparar este destaque de um conceito estritamente epicurista com o primeiro capítulo da primeira parte onde fica estabelecido que o objeto da dissertação é a forma subjetiva. Porque? Porque não existe nenhum outro conceito que tão explicitamente expresse a forma subjetiva. A queda do átomo em linha reta no vazio se deve à ação passiva do vazio que não resiste ao átomo e a repulsão dos átomos entre si se deve à ação passiva do átomo que resiste a outro(s) átomo(s). A declinação ou o desvio do átomo da queda em linha reta no vazio, porém, se deve a um passo ativo do átomo que resiste ao vazio e não resiste a si mesmo, ou seja, se deve a uma ação oriunda inteiramente do próprio átomo, logo, se deve à forma subjetiva do próprio átomo e não às formas objetivas do vazio e de um outro átomo.


          Se nos esforçamos para estabelecer um paralelo entre o primeiro capítulo da primeira parte e o da segunda parte, então precisamos dar continuidade a nosso esforço nos demais capítulos. Porque esse esforço? Porque os capítulos quatro e cinco, da primeira parte, desapareceram e não sabemos como eram. Assim, se conseguirmos estabelecer relações paralelísticas entre os capítulos da primeira e da segunda parte, então, talvez, consigamos ter uma imaginação mais próxima do que possa ter sido o conteúdo dos capítulos desaparecidos da primeira parte.


          “Opiniões sobre a relação existente entre a física de Demócrito e a de Epicuro” é o título do segundo capítulo da primeira parte e “As qualidades do átomo” é o título do segundo capítulo da segunda parte.


          No “Opiniões” a conclusão é:

          “Se portanto, segundo Cícero, Epicuro corrompe a doutrina de Demócrito conservando embora a vontade de a melhorar e de lhe ver os defeitos, se Plutarco o acusa de inconsequência e de uma propensão para o erro, indo ao ponto de suspeitar de suas intenções, Leibniz chega mesmo a negar-lhe capacidade para fazer extratos de Demócrito.

          “Mas todos concordam num ponto: Epicuro foi buscar sua física em Demócrito. ”

          Então, a opinião geral sobre a relação de Epicuro com a doutrina de Demócrito varia da deformação bem-intencionada para a deformação mal-intencionada até chegar à incapacidade de avaliar o que é importante nesta doutrina, mas, mesmo assim, a opinião geral é que Epicuro, em todos os casos, está sempre às voltas com a doutrina de Demócrito.


          No capítulo “As qualidades do átomo” então, segundo a opinião geral, Epicuro vai fazer três coisas com estas qualidades vai deformar o átomo de forma bem-intencionada, vai deformar o átomo de forma mal-intencionada e não vai ter capacidade de informar sobre o átomo, logo, vai desinformar sobre o átomo, ainda que todo o tempo se refira ao átomo.


          Epicuro atribui grandeza aos átomos, mas apenas a da pequenez infinita; atribui forma aos átomos, mas como eles são infinitamente pequenos as diferenças das formas dos átomos são indetermináveis mas não infinitas de modo que existe um número determinado e finito de formas através das quais os átomos se diferenciam, logo, existe um número infinito de átomos com a mesma forma indeterminável; e, por último, Epicuro atribui peso aos átomos, porque é o peso que determina a queda dos átomos em linha reta no vazio, mas aí, todos eles caem na mesma velocidade no vazio de modo que aí não aparecem as diferenças de peso dos átomos, as quais só aparecem quando eles caem uns nos outros, quer dizer, participam do movimento de repulsão dos átomos entre si responsável pela formação das composições dos átomos, quer dizer, de sistema de diferenças de peso dos átomos, mas para passar da queda no vazio de todos na mesma velocidade para a queda em outro átomo em velocidade diferenciada é preciso um desvio da queda no vazio que resulta na queda em outro átomo, quer dizer, é preciso um desvio do peso da queda no vazio, então é preciso que o peso do átomo afirme esse desvio do átomo da queda em linha reta no vazio, logo, é preciso que o peso do átomo afirme sua gravidade substancial, quer dizer, afirme que flutua ou que, por meio de seu peso se desvia, sai, se liberta da queda em linha reta mas, em consequência disso, cai de encontro a outros átomos e com eles desenvolve um sistema de repulsão mútua que constitui as composições dos átomos do mundo. É muito estranha essa qualidade do peso próprio do átomo de Epicuro que está em si mesmo e não mais caindo no vazio, mas que, por isso mesmo, por estar em si mesmo e se desviar do vazio termina indo ao encontro de outros átomos e, assim, aparecem as diferenças de peso entre os átomos.


          No capítulo “Dificuldade de identificação da filosofia da natureza de Demócrito com a de Epicuro” vimos, de um lado, um atomista, impedido de desenvolver a realidade objetiva do atomismo, porque ela se situa no inacessível e incognoscível, se voltar para desenvolver a realidade subjetiva do fenômeno, porque ela é acessível e cognoscível; de outro lado, vimos outro atomista, liberado para desenvolver a realidade subjetiva do atomismo, porque ela se situa no acessível e cognoscível/concebível, deixar em paz o desenvolvimento da realidade objetiva porque ela é fenômeno objetivo à disposição da essência subjetiva. Pois agora, no capítulo “Átomos-princípios e átomos –elementos”, veremos que o atomista liberado para desenvolver a realidade subjetiva do atomismo é precisamente aquele que concebe a diferença entre átomos-princípios e átomos-elementos, a qual, o atomista impedido de desenvolver a realidade objetiva do atomismo não pode conceber e, por isso, fica fixado apenas na concepção dos átomos-elementos. Os átomos-princípios são aqueles perfeitamente concebíveis na realidade subjetiva do atomismo como existentes exclusivamente no mundo dos átomos e do vazio, enquanto que os átomos-elementos são aqueles perfeitamente concebíveis na realidade subjetiva do atomismo como existentes exclusivamente no mundo das composições de átomos no vazio. Porém, os átomos-princípios são perfeitamente inconcebíveis na realidade objetiva do atomismo porque aí na realidade objetiva do atomismo apenas são perfeitamente concebíveis os átomos-elementos da universal, inacessível e incognoscível realidade objetiva dos átomos e do vazio.


          O quarto capítulo da primeira parte intitulado “Diferença genérica entre os princípios da natureza em Demócrito e Epicuro” foi perdido e dele só restaram duas Notas escritas pelo próprio Marx. Delas destacamos a segunda Nota por surpreender como antecipação do curriculum vitae de Marx, como antecipação da obra e da biografia de Marx, logo, como antecipação da história do próprio Marx. Curiosamente, o capítulo quarto da segunda parte é intitulado “O Tempo” e nele ficamos a par de que o tempo não existe no mundo dos átomos, logo, só existe no mundo das composições, quer dizer, no mundo da percepção sensível, então o tempo aparece e se desenvolve no mundo das composições sensíveis dos átomos, mas igualmente desaparece e se dissolve no mundo da dissolução das composições sensíveis dos átomos, isto é, para o atomista Epicuro que concebe a realidade subjetiva do atomismo, quer dizer, acessível e cognoscível filosoficamente, mas não para o atomista Demócrito que só concebe a realidade objetiva do atomismo, quer dizer, inacessível e incognoscível positivamente, porque para ele os átomos e o vazio são a única realidade objetiva, logo, todo o resto é realidade subjetiva, aparência subjetiva, quer dizer, todo o resto apenas parece ser composição sensível e apenas parece temporalidade sensível, mas, na realidade objetiva a única “composição” são os átomos e o vazio inacessíveis e a única “temporalidade” é a da eternidade dos átomos e vazio incognoscíveis.


          “Resultado” era o último capítulo da primeira parte e “Os Meteoros” é o último capítulo da segunda parte. Volta a aparecer aqui algo que apareceu, no capítulo três da primeira parte, como um aspecto da faculdade de julgar, do saber da razão segura de si, a relação do pensamento cognoscível/concebível com realidade em geral do fenômeno objetivável de modo que o desenvolvimento filosófico da cognoscibilidade/concepção da essência subjetiva conduz à supressão da realidade em geral do fenômeno objetivo porque essa essência subjetiva se imprime na realidade em geral como fenômeno objetivável. Ao mesmo tempo que também volta a aparecer aquilo que lá apareceu como um aspecto da faculdade de julgar, do saber da razão insegura de si, a relação do pensamento incognoscível com a realidade em geral do fenômeno cognoscível de modo que o desenvolvimento positivo da cognoscibilidade/concepção do fenômeno da aparência subjetiva conduz à concreção da realidade em geral do fenômeno da aparência subjetiva e à manutenção inalterada/inalterável e eterna da realidade objetiva dos átomos e do vazio. No entanto, surge algo mais na relação do pensamento cognoscível/concebível da essência subjetiva com a realidade em geral do fenômeno objetivo que é a dissolução dos átomos e do vazio no momento de realização dos meteoros, quer dizer, dos corpos de todo o cosmo, porque aí fica claro que, no mundo da composição espacial e temporal da percepção sensível, também se constituiu a consciência de si humana, quer dizer, a essência subjetiva que se constituía de átomos e vazio passou a se constituir de essência subjetiva da consciência humana de si, logo, os átomos e o vazio se dissolveram nessa essência subjetiva que está no ser humano e não nos átomos e no vazio/porque ela está no ser humano e não nos átomos e no vazio.


         Desse modo, Epicuro faz aquilo que as opiniões desfavoráveis o acusam de fazer, que é deformar de boa-fé, deformar de modo traiçoeiro e incapacitar de modo ignorante a doutrina de Demócrito. E, ao mesmo tempo, quer dizer, simultaneamente, ele também faz aquilo que fez Prometeu ao roubar a centelha do fogo de Zeus e a entregar à humanidade tornando-a centelha do fogo/iluminismo/esclarecimento do ser humano. Por aí também aprendemos que se Epicuro foi discípulo da doutrina de Demócrito, então Prometeu foi discípulo da doutrina de Édipo. Que há em comum na doutrina de Demócrito e Édipo? A realidade objetiva é incognoscível e inacessível, quer dizer, ela é a forma subjetiva do inconsciente de si. Portanto, Epicuro e Prometeu partem da mesma doutrina do inconsciente de si de Demócrito e Édipo, mas a elaboram como realidade subjetiva acessível e cognoscível, por isso, o resultado é que passam do inconsciente de si para a consciência de si, logo, para o desenvolvimento de outra forma subjetiva, a que faz ciência da consciência si.



A forma subjetiva essencial do materialismo de Marx


          É importante destacar que Demócrito percebe os átomos e o vazio por toda parte a tal ponto que considera que as coisas não resultam da combinação da pluralidade dos átomos e sim que a combinação da pluralidade dos átomos parece resultar em coisas, logo, tudo que vemos sensivelmente é fantasmático, é mera aparência subjetiva, mas na realidade objetiva só existem mesmo os átomos e o vazio, os quais, por sua vez, são insensíveis, invisíveis e inacessíveis, exceto pela razão. Donde se conclui que a razão de Demócrito é constituída de átomos e vazio, mas como, para ele, os átomos e o vazio são a realidade objetiva, então não é mais a razão de Demócrito que é constituída de átomos e de vazio, mas tudo, até o próprio Demócrito, é constituído dos insensíveis, invisíveis e inacessíveis átomos e vazio, os quais só são concebíveis na razão, logo, tudo é razão, tudo é a concepção da razão, portanto, toda a realidade objetiva é insensível, invisível e inacessível porque toda ela é pura razão, pura ideia.


          Demócrito com esta percepção da realidade objetiva como a ideia pura, a razão pura se sente frustrado por estar aprisionado na realidade subjetiva da percepção sensível, visível e acessível da aparência impura, da matéria impura. E, ainda mais frustrado, porque está impedido de ser pura ideia, pura razão, pura objetividade do insensível, invisível e inacessível, além de estar obrigado a ser impura matéria, impura aparência, impura subjetividade sensível, visível e acessível. Portanto, ainda que os átomos e o vazio sejam a realidade objetiva presente na razão de Demócrito ele fica frustrado por não conseguir avançar até à realidade objetiva dos átomos e do vazio se tornando um com eles, porque está preso e limitado à realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível, a qual, no entanto, é um campo de concentração na impura matéria, na impura fantasmalidade. No entanto, como está vivo, quer dizer, como não pode evitar a sua situação de prisioneiro no campo de concentração da impura matéria, da impura aparência, da impura realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível ele vai se dedicar a conhecer, mapear e investigar da maneira mais completa possível toda a positividade sensível, visível e acessível e vai concluir que ela é efetivamente um campo de concentração no sentido de ser inteiramente determinada pela “necessidade relativa que só pode ser deduzida da possibilidade real, quer dizer, só pode ser um encadeamento de condições, de causas, de razões etc. que mediatizam esta necessidade. A possibilidade real é a explicação da necessidade relativa”, do determinismo do campo de concentração, afinal, se fosse possível se libertar dessa impura matéria, dessa impura aparência, então seria possível desfrutar da pura liberdade dos átomos e do vazio, do puro campo da liberdade e do acaso dos átomos e do vazio. Infelizmente, para Demócrito, não é possível viver na pura realidade objetiva dos átomos e do vazio, até porque a impura realidade subjetiva do mundo da percepção sensível está continuamente desviando a atenção e impedindo que se permaneça continuamente na pura razão dos átomos e do vazio.


          Demócrito é um filósofo que muito a contragosto é conduzido a abandonar o campo da filosofia, porque está impedido de o desenvolver na medida que não consegue efetivar a realidade objetiva dos átomos e do vazio, e a se lançar no campo da positividade, porque se encontra aprisionado na realidade subjetiva do mundo da percepção sensível, visível e acessível, logo, é só nessa, infelizmente para ele, que pode desenvolver algo, porque só nela pode efetivar a realidade subjetiva do mundo da percepção sensível da positividade. Um filósofo da razão aprisionado na positividade, mas que, por isso mesmo, aplica nela o cálculo, a medida, o mapeamento, enfim, o máximo possível de razão de modo que, vingativamente, também a aprisiona na razão, razão na qual ela o impede de livremente viver.


          É importante destacar que a percepção sensível para Epicuro é realidade objetiva que está por toda parte imediatamente acessível, visível, sensível, mas que os átomos e o vazio são realidade subjetiva invisível, insensível e inacessível objetivamente, mas como são realidade subjetiva são logicamente acessíveis, sensíveis e visíveis subjetivamente, portanto, é perfeitamente possível se dedicar a eles e conhecê-los abstratamente na realidade subjetiva da razão. Epicuro se percebe inteiramente livre pela realidade objetiva do mundo da percepção sensível para pesquisar e elaborar, na realidade subjetiva do mundo racional, os átomos e o vazio que se encontram na realidade subjetiva do mundo racional. Aí na realidade subjetiva dos átomos e do vazio Epicuro pode se dedicar ao desenvolvimento filosófico dos átomos e do vazio, porque aí eles são a realidade subjetiva das possibilidades abstratas, quer dizer, livres de “um encadeamento de condições, de causas, de razões etc. que mediatizem” o acaso do pensamento abstrato dos átomos e do vazio, ao contrário, aí na realidade subjetiva das possibilidades abstratas dos átomos e do vazio se constitui um campo da liberdade que como tal é determinado pela liberdade e não pelo determinismo, é determinado pela possibilidade abstrata absoluta do acaso/da livre determinação e não pela possibilidade real da necessidade relativa/da determinação aprisionada/prisioneira. Dispondo dessa liberdade de desenvolver filosoficamente os princípios filosóficos dos átomos e do vazio Epicuro vai desenvolver seus princípios filosóficos atomistas até à elaboração plena da realidade subjetiva dos átomos e do vazio que é a dissolução dos átomos e do vazio e a constituição da ciência da consciência de si. Noutras palavras, por meio da realidade subjetiva dos princípios filosóficos dos átomos e do vazio Epicuro elaborou o percurso desde os átomos e o vazio até à realidade objetiva da percepção sensível do cosmo e foi aí que elaborou a dissolução da realidade subjetiva dos átomos e do vazio na realidade subjetiva ciente da consciência humana de si. Ou seja, elaborou os seus princípios filosóficos até alcançar a liberdade da realidade subjetiva da consciência humana de si de viver na e desfrutar livremente da realidade objetiva do mundo da percepção sensível. Porque isso? Porque os átomos e o vazio estão impedidos de se tornar sensíveis, mas a consciência humana de si, apesar de ser, como os átomos e o vazio, uma realidade subjetiva, não está impedida se tornar sensível, pelo contrário, efetivamente ela é a exclusiva realidade subjetiva que se torna sensivelmente ciente de ser consciência humana de si, ela é a exclusiva realidade subjetiva que se realiza na realidade objetiva do mundo da percepção sensível como princípio da singularidade abstrata, logo, ela é o único e exclusivo “átomo” que se realiza no mundo real e objetivo da percepção sensível ou é a única e exclusiva realidade subjetiva do “átomo” que se torna realidade objetiva no mundo da percepção sensível.


          Isso resume a tese de Marx sobre os atomistas gregos. E se, mais tarde, ele critica a consciência de si em defesa do ser da percepção sensível, então é porque permanece criticando aquela “consciência de si” que só concebe a razão ou a ideia como o ser real objetivo; noutras palavras, é porque está ciente de si como ser real objetivo da percepção sensível, portanto, que não pode se satisfazer em permanecer apenas na consciência de si, apenas no sistema filosófico idealista, mas precisa realizar o sistema filosófico para efetivar o ser real e objetivo da percepção sensível de sua consciência de si.


          Ele também faz um outro uso dessas diferenças dos dois atomistas quando trata das diferenças entre os dois momentos do desenvolvimento do método da economia política. A escola dos primeiros economistas parte da positividade do Estado-Nação, da Sociedade Civil estruturada etc. até chegar a simples determinações abstratas como a divisão do trabalho, o valor de troca etc., enquanto que a escola dos economistas sucessores ou dos segundos economistas parte destas simples determinações abstratas até chegar ao todo estruturado da Sociedade Civil, do Estado-Nação etc. Noutras palavras, a atividade positiva tem por resultado chegar às simples determinações abstratas tais quais os átomos e o vazio, enquanto que a atividade filosófica (especulativa) tem por resultado chegar a um todo concreto pensado. Portanto, no essencial, não existe a menor diferença entre a concepção filosófica do Marx da tese de doutorado e do Marx “dito do corte epistemológico” nem do Marx “ainda mais maduro” o qual afirma que a sua concepção apenas reproduz no pensamento a realidade objetiva, apenas reproduz na realidade subjetiva do pensamento a realidade objetiva do ser sensível.


          Mas é essa reprodução no pensamento do concreto que faz toda a diferença com a produção no pensamento do abstrato, porque enquanto o pensamento estiver apenas abstraindo do concreto ou produzindo abstração/razão/ideia permanecerá limitado ao concreto e à sua abstração. Porém, quando pensamento estiver lidando plenamente com suas abstrações do concreto, então ele já estará relativamente livre do concreto para poder desenvolver livremente suas abstrações até à concepção abstrata do concreto no pensamento, até à sua apreensão plena e livre do concreto no pensamento.





   Boa tarde, Marli!


          Pois é, acreditamos demasiadamente nas palavras tanto que queremos o silêncio, melhor, a ausência das palavras, porque se, antes, elas eram falas e emitiam sons, depois, elas se tornaram imagens/desenhos com a escrita, então queremos a ausência de suas imagens/desenhos. Mas... como acreditamos demasiadamente nas palavras a ponto de, em geral, acharmos que somos a expressão delas e não como seria mais lógico e, talvez, natural considerarmos que elas são expressão do que somos...


          Meu pai morreu. Não paro de sentir isso, mais ainda do que quando ele estava vivo. Viver é morrer a todo instante e morrer de uma vez por todas é ficar imortal, pelo menos para quem morre a todo instante, quer dizer, para quem vive. Vida mortal e morte imortal. Na verdade, quem morre de uma vez por todas não para de morrer, ainda que pare de viver. Cabelos e unhas demoram muito a morrer por completo. Os ossos então demoram demasiadamente. Meu pai deixou um bilhete escondido na casa de Boa Vista, escrito em 2008 ou 2009, ele morreu em 2013 e meu irmão achou o escrito em 2014. No bilhete ele pedia para ser cremado. E ele foi cremado agora, no fim de semana passado. Retirei os restos mortais dele do cemitério e levei para o crematório e na segunda-feira meu irmão foi pegar a urna que agora está aqui em casa. Eu e meu pai nunca nos resolvemos. Aliás, eu e eu mesmo também nunca nos resolvemos e nunca nos resolveremos. O nunca nos resolveremos, portanto, não é só contigo, porque é com a vida, com a morte, com os vivos e com os mortos, comigo mesmo e com os outros. É minha sina. Será que isso é uma mera herança da formação portuguesa... a do fado!?... "... ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal... ainda vai tornar-se um imenso Portugal... um império colonial..."


          "Tudo que é sólido desmancha no ar!" E meu pai quis realizar isso, mas restam as cinzas... aliás, Demócrito foi mais longe e disse que restam apenas os átomos e o vazio. Mais do que isso ele considerou que de verdade existem sempre apenas os átomos e o vazio, todo o resto é mera aparência subjetiva de existência de coisas já que da combinação da pluralidade dos átomos só surge mesmo a aparência de existir uma coisa, mas não se mostra, não surge nem aparece a existência real de uma coisa. Então, vivemos prisioneiros no mundo dos sentidos, que é o da mera aparência subjetiva da realidade objetiva. Realidade objetiva que é, na verdade, a pluralidade dos átomos, tanto se combinando quanto se dissociando. É um pensamento bastante duro esse de Demócrito, mas quando olhamos para essas dissoluções das coisas sempre vemos restos que continuam em dissolução quase que infinita e, por isso, podemos imaginar e pensar como Demócrito que, no fundo, permanecem os átomos infinitamente pequenos no vazio. Esse Demócrito foi um grande filósofo grego, mas, é possível considerar no mundo moderno, mais precisamente na Alemanha moderna, que um outro filósofo, Kant, pensava de modo muito semelhante ao de Demócrito, quando considerava que só temos acesso às coisas tais quais elas são para nós, logo, só temos acesso à aparência subjetiva das coisas, mas não temos acesso à realidade objetiva das coisas tais quais elas são em si mesmas. Só é possível o conhecimento das coisas para si, que são as coisas para nós, mas não das coisas em si, que são as coisas tais quais elas são nelas próprias ou na sua realidade objetiva. Este tipo de conhecimento limitado às coisas para si era o mesmo praticado por Demócrito na Grécia antiga muito antes de ser praticado por Kant na Alemanha moderna. Ambos se relacionaram com a coisa em si inacessível e incognoscível, mas que, para eles, era a realidade efetivamente objetiva, muito mais do que essa que acessamos e conhecemos sensivelmente. Essa relação era uma relação muito mais importante e fundamental do que a relação de conhecimento possível das coisas para nós, porque era uma relação íntima com aquilo que verdadeiramente era a realidade objetiva para eles, ainda que fosse apenas a realidade objetiva que eles acreditavam existir. Demócrito dizia que esta realidade objetiva eram os átomos e o vazio, já Kant dizia que era Deus, a alma imortal e a liberdade. Na verdade, se pode dizer que Demócrito estava inteiramente de acordo com Kant, porque, para ele, os átomos e o vazio eram os deuses, os imortais e os seres absolutamente livres. A ética de Demócrito tal qual a de Kant veio a ser uma ética do dever, quer dizer, uma ética que se baseia na liberdade do ser imortal e criador e que, pretendendo agir de acordo com essa crença ao se aplicar no mundo das coisas para nós, quer dizer, dos seres prisioneiros, mortais e criados, precisa mostrar a grandeza e altivez de sua crença e agir como se fosse livre, como se estivesse efetivamente no mundo da coisa tal qual ela é em si, ou seja, sem quaisquer limites sensíveis. E isso só pode ser efetivado nesse mundo sensível como prática do dever, como um agir de acordo com o que deve ser e não de acordo com o que é, porque o mundo que deve ser real e verdadeiro é o da coisa em si e não esse mundo da coisa tal qual ela é para nós. Ora, agir tal qual deve ser é agir de acordo com o dever imposto pela crença no ser livre, imortal e criativo. De acordo com o dever porque se age num mundo onde o ser livre, imortal e criativo não é acessível nem cognoscível, mas apenas o ser prisioneiro, mortal e criatura é acessível e cognoscível neste mundo, então, agir de forma independente da condição de prisioneiro, da condição de mortal e da condição de criatura porque é agir de forma que independa das condições deste mundo, mas, como se permanecesse neste mundo, esta independência das condições dentro das condições aparece como ação de acordo com o dever da liberdade e não de acordo com (as condições próprias) do ser da liberdade.



          Na Grécia antiga Demócrito era visto como um campeão nas cinco áreas do conhecimento filosófico, mas, apesar disso, ele permaneceu insatisfeito com seu conhecimento filosófico, porque aquilo que podia conhecer era aparência subjetiva e aquilo que era a realidade objetiva ele não podia conhecer e só podia se limitar a crer. Precisamente aquilo que era mais importante ele só podia se limitar a acreditar e a agir de acordo com sua crença, enquanto que aquilo que ele podia conhecer era limitado a uma aparência subjetiva, logo, também era reduzido a uma crença no que é sem outra importância exceto ser acessível e cognoscível.


          “Le savoir qu’il tient pour vrai n’a pas de contenu; le savoir qui lui donne son contenu manque de vérité. Elle a beau être une fable, l’anecdote des anciens est une fable authentique parce qu’elle décrit le caractere contradictoire de son être: Démocrite se serait lui-même crevé les yeux, de peur que la lumière sensible n’obscurcît chez lui l’acuité de l’esprit. C’est le même homme qui, comme dit Cicéron, avait parcouru la moité du monde. Mais il n’avait pas trouvé ce qu’il cherchait.”


          Esta é igualmente a descrição do mito ou fábula de Édipo. Então, a anedota era atribuir a Demócrito a mesma condição atribuída a Édipo. Édipo conseguiu chegar a descobrir que ele era um parricida e um incestuoso e que realizou tudo isto de forma inconsciente de si. Descobriu que sua consciência de si era mera aparência subjetiva e que a sua realidade objetiva era sua inconsciência de si, mais ainda eram as determinações da vontade inconsciente de si, as quais, por sua vez, eram as vontades determinadas pelos deuses. Ao se cegar Édipo abandonava o conhecimento do mundo sensível da aparência subjetiva e se entregava ao mundo da crença da realidade objetiva. Ele assumia que o importante não era conhecer com uma consciência aparente e sim crer com um inconsciente objetivo. Essa entrega de Édipo é a mesma que fez Demócrito, segundo a anedota dos antigos, mas, além disso, é a mesma que fez Kant ao estabelecer a diferença entre o conhecimento da razão pura e a crença ou moral, quer dizer, a prática da razão, de modo que Kant estabeleceu que a razão prática ou a moral deve dirigir a razão pura ou o conhecimento. Como se sabe Kant aplicou na filosofia a física de Newton, quer dizer, a mecânica. Ora, como também se sabe, a física de Demócrito se pretende pura e exclusivamente mecânica. Como também se sabe, Édipo sempre foi guiado de modo mecânico, logo, por um sujeito transcendental tal qual concebeu Kant. No entanto, Édipo descobriu e conheceu seu ser inconsciente investigando de forma empírica através de testemunhos que confirmaram tudo aquilo que as falas dos Oráculos anunciaram. Então, este conhecimento adquirido por Édipo através da investigação não foi um conhecimento direto do próprio Édipo e sim um conhecimento indireto, logo, que implicava crer nos testemunhos. Porém, ele tinha conhecimento direto de ter matado um velho e vários membros da sua comitiva que o atacaram de forma tirânica e arrogante. Também tinha conhecimento direto de ter casado com a rainha de Tebas, que era mais velha do que ele e viúva do rei de Tebas, por ter decifrado o enigma da esfinge. Ou seja, por meio do conhecimento/testemunho das coisas para si ele confirmou as crenças nos testemunhos dos outros e/ou nos testemunhos indiretos das coisas em si. Então, ele teve acesso às coisas em si por meio da crença nos outros, logo, por meio dos outros. Desse modo, as coisas ou a coisa em si é acessível por meio dos outros, logo, por meio do Outro, o qual, aliás, torna perceptível a inconsciência de si como inconsciência de ser outro. Essa relação com os outros e com o Outro revela que é na relação do sujeito com outro sujeito e não com um objeto que o sujeito desenvolve sua relação subjetiva e intersubjetiva. Noutras palavras, o conhecimento de si só é possível no desenvolvimento da relação do sujeito com o sujeito ou com outro sujeito. Logo, é o momento da passagem da filosofia da Natureza ou da Física para a filosofia da Sociedade ou da Consciência de Si, que ocorreu, já na época de Demócrito, com o advento dos sofistas, que agiam como advogados pagos para ensinar seus alunos técnicas de defesa de suas causas ou opiniões nas assembleias democráticas gregas, e de Sócrates, que agia como um crítico das causas e opiniões porque se restringia a buscar a verdade que permanecia ignorada para todos, inclusive para ele próprio que só sabia que nada sabia. A partir do advento dos sofistas e de Sócrates a filosofia abandona a temática da Natureza e se entrega ao conhecimento da Sociedade e/ou da Consciência de Si, logo, também se entrega ao conhecimento das relações de senhor, mestre, tutor, pai e escravo, discípulo, tutelado, filho, aliás, é por aí que Hegel descreve a famosa dialética do senhor e do escravo presente na constituição da Consciência de Si na sua obra Fenomenologia do Espírito. A Fenomenologia de Hegel vai desta constituição da Consciência de Si no quarto capítulo até esta Consciência de Si chegar no oitavo e último capítulo ao Saber Absoluto. É curioso isso em Hegel porque na história da filosofia grega ele situa a filosofia de Aristóteles como uma filosofia que chegou ao saber absoluto da filosofia da Grécia antiga. Por outro lado, ele caracteriza as filosofias pós-aristotélicas como filosofias da Consciência de Si e estas filosofias da Consciência de Si pós-aristotélicas são as filosofias epicurista, estoica e cética. É curioso porque a filosofia da Consciência de Si tinha tido começo na Grécia com os sofistas e, especialmente, com Sócrates e tinha chegado ao auge ou cume com Aristóteles que conseguiu efetivar o mais consistente sistema metafísico realizando aquilo que tinha sido apenas projeto em Platão, a constituição do poder do rei-filósofo, e que, por meio de seu discípulo Alexandre, se tornou o primeiro Império desenvolvido desde o ocidente até o oriente. Ora, as novas filosofias gregas da Consciência de Si ocorrem depois de alcançado o saber absoluto, depois de a filosofia grega ficar completa e ter chegado ao “término”, como diz Marx no prefácio de sua tese sobre o atomismo grego, “do que parece ser a sua história objetiva”. Então, os sistemas epicurista, estoico e cético não são mais sistemas da história objetiva e sim sistemas da história subjetiva da filosofia grega? Mas, o próprio Marx não se situa num momento pós-hegeliano, quer dizer, pós-saber absoluto? A sua época também é a do desenvolvimento de sistemas da consciência de si que sucedem a história objetiva da filosofia alemã e europeia?



          Marx vai se ater a Epicuro que, como filósofo da Consciência de Si, já caracterizada por Hegel, parte do atomismo do filósofo da Natureza Demócrito. Epicuro, já situado no momento da filosofia da Consciência de Si, aceita ser inteiramente razoável e concebível que tudo se dissolva em átomos e vazio, mas não considera que o mundo sensível se reduza a uma aparência subjetiva, pelo contrário, considera que o mundo sensível é uma realidade objetiva e que os átomos e o vazio são uma realidade subjetiva da realidade objetiva do mundo sensível. Logo, para ele, o acesso aos átomos e ao vazio é um acesso que se faz pela subjetividade racional, porque por mais que o mundo sensível se dissolva na pluralidade dos átomos no vazio ele permanece sendo um mundo diferenciado do mundo dos átomos e do vazio, de modo que ele não é um mundo que parece, mas não é. Não, o mundo sensível é acessível e cognoscível tal qual ele é objetivamente, mas, por outro lado, é o mundo dos átomos e do vazio que só é acessível e cognoscível subjetivamente, porque por maiores que sejam as dissoluções do mundo sensível nós não vemos os átomos e o vazio e permanecemos vendo sim o mundo sensível com todas as suas mudanças dissolventes do sensível, permanecemos vendo restos os mais diversos, ainda que, na mente, consigamos acessar e conceber a existência dos átomos e do vazio. Ora, se isso é naturalmente assim, então podemos desenvolver um conhecimento dos átomos e do vazio na nossa mente, por meio da elaboração conceitual e/ou da realidade subjetiva dos átomos e do vazio. A atividade de Epicuro será dedicada a esta elaboração conceitual dos átomos e do vazio, logo, dedicada a uma elaboração filosófica dos átomos e do vazio. Mais ainda, uma elaboração que tem acesso e conhecimento plenos dos conceitos que elabora, portanto, uma elaboração que desfruta direta e imediatamente dos seus princípios atomistas, os átomos e o vazio. A partir dos conceitos dos átomos e do vazio Epicuro vem a conceber o mundo dos átomos e do vazio, a passagem do mundo dos átomos e do vazio por meio das composições dos átomos no vazio que originam de forma inteiramente inconsciente e acidental o  surgimento da composição do espaço no mundo sensível, em seguida, origina a composição do tempo no mundo sensível, a qual, por sua vez, é concebida como existindo exclusivamente durante a existência da composição do espaço sensível, logo, apenas no mundo sensível existe o tempo, então, o tempo é exclusivamente sensível, em seguida, com o espaço e o tempo sensíveis vem a concepção do que Epicuro chama de meteoros e que vai desde aquilo que chamamos de meteorologia até o que conhecemos como cosmologia, então, inclui tanto o clima quanto o cosmo, mas inclui ainda a consciência humana de si. E é neste último momento, de realização da elaboração conceitual dos átomos e do vazio desde seu mundo insensível até o mundo sensível, que ocorre uma revolução no atomismo de Epicuro, porque em toda a filosofia grega o cosmo aparece como momento de realização eterna da razão, de modo que os astros são imortais e são os deuses gregos, ou seja, os planetas tinham não só os nomes dos deuses gregos (e também romanos), mas eram eles mesmos os deuses gregos (e romanos). Aristóteles atribui a essa eternidade divina dos astros o retorno da filosofia, das artes, enfim, de todas as criações culturais, porque estes seres imortais conservam todas essas criações como relíquias que são suscetíveis de eterno retorno. Demócrito, de maneira similar a Aristóteles e aos demais gregos que eternizam o cosmo, como o motor imóvel do eterno retorno das relíquias que são as criações culturais, apenas reduz esse cosmo eterno ao eterno mundo dos átomos e do vazio. Epicuro neste momento percebe que se atribuir aos corpos celestes esta eternidade, então o atomismo passará a ser um, digamos, “cosmismo”, porque serão os corpos celestes a realização efetiva dos átomos como pluralidade infinita de corpos celestes no espaço cósmico infinito. Ora, para que os átomos e o vazio continuem sendo os princípios e os corpos e o vazio cósmicos não os suprimam e se apropriem de seus princípios atomistas é preciso que os corpos celestes e o cosmo sejam mortais e se dissolvam por completo em átomos e vazio. No entanto, Epicuro nota que, se é verdade que todo o mundo sensível é mortal e redutível aos átomos e ao vazio, então também é verdade que apenas a consciência humana de si se diferencia, no mundo sensível e redutível aos átomos e ao vazio, de todos os demais seres sensíveis por se constituir na capacidade de conceber tudo isto, logo, por se constituir efetivamente na tão admirada razão da filosofia grega e numa razão que existe num ser humano mortal, logo, numa razão que é exclusiva do mundo sensível, portanto, ela é a verdadeira realização efetiva do atomismo no mundo sensível e, consequentemente, como ela própria, a razão, que é a consciência humana de si, é tão mortal quanto os demais seres sensíveis, mas também é a realização efetiva do atomismo no mundo sensível, portanto, ela sintetiza a realização do atomismo no mundo sensível como mortalidade do atomismo e, desse modo, a realização efetiva do atomismo é a dissolução do atomismo e a constituição da consciência humana de si. Epicuro neste momento realiza uma revolução com o seu atomismo de modo que este atomismo se dissolve quando ele se realiza como a singularidade abstrata da consciência humana de si e não mais a singularidade abstrata do átomo, logo, neste momento, é a consciência humana de si que é o conceito do átomo de Epicuro, que é a realização do conceito de átomo de Epicuro, portanto, é a consciência humana de si que é o átomo de Epicuro. Portanto, quando realiza o atomismo, quer dizer, passa do mundo insensível dos átomos para o mundo sensível dos seres, imediatamente dissolve a ciência do atomismo na ciência da consciência humana de si, se emancipa do princípio atomista e afirma a libertação do princípio da consciência humana de si. A partir daí tudo que fizer será por meio do uso da consciência de si, logo, poderá usar da sabedoria de agir consciente de si e não mais da forma inconsciente de si de Demócrito, seu predecessor no atomismo.



          É isso. Agradeço a você por ser esta a primeira vez que consigo fazer um apanhado de conjunto do meu estudo da tese de Marx.

          Até, se tiver até...



                  Carlos Eduardo.




Revolução de Epicuro: Prática da sabedoria e dissolução do atomismo

          

          O fenômeno é aparência subjetiva versus o fenômeno é realidade objetiva e a essência é realidade objetiva versus a essência é aparência subjetiva.


      O fenômeno é aparência subjetiva e a essência é realidade objetiva versus o fenômeno é realidade objetiva e a essência é aparência subjetiva. Por um lado, o fenômeno sensível e concreto não é real e sim aparência e, por outro lado, a essência insensível e abstrata é real e não aparência versus o fenômeno sensível e concreto que é real e a essência insensível e abstrata que é aparência.


         Se o real é a base de apoio e o suporte da aparência, quer dizer, se o real é o ser objetivo, então a aparência é o ser subjetivo ou o seu reflexo, quer dizer, é o que se edifica e se desenvolve como aparência sobre esta base do real.


        Ora, num caso, o real, que é a base de apoio ou o suporte, são os átomos e o vazio e a aparência, que se edifica e desenvolve, são os fenômenos sensíveis. Já no outro caso, o real, que é a base de apoio ou o suporte, são os fenômenos sensíveis e a aparência, que se edifica e desenvolve, são os átomos e o vazio.


        No primeiro caso, real é o mundo dos átomos e do vazio enquanto que aparência é o mundo sensível.


         No segundo caso, real é o mundo sensível enquanto que aparência é o mundo dos átomos e do vazio.


          Para o primeiro, o mundo real, objetivo e permanente é o dos átomos e do vazio e o mundo da aparência, subjetivo e dissolvível é o dos sensíveis. 


         Já para o segundo o mundo real, objetivo e permanente é o dos sensíveis e o mundo da aparência, subjetivo e dissolvível é o dos átomos e do vazio.


         O primeiro tem os pés e o corpo inteiramente entregues e mantidos no repouso do mundo insensível e abstrato, já a cabeça e a mente do primeiro estão inteiramente entregues e mantidas na atividade do mundo sensível e abstrato. Isto ocorre porque o mundo real e objetivo, que é aquele no qual se encontra e repousa a coisa, o objeto ou a exterioridade, para ele, é o mundo insensível e abstrato, enquanto que o mundo aparente e subjetivo, que é aquele no qual se encontra e pulsa (vive) o si mesmo, o sujeito ou a intimidade, para ele, é o mundo sensível e concreto.


        A chave para compreender o materialismo de Marx se encontra na sua tese de doutorado sobre Demócrito e Epicuro. É aí que vemos, de forma clara, os antecedentes daquela afirmação de que seu materialismo apenas inverteu o idealismo de Hegel, porque este se encontrava de cabeça para baixo.


         Aí nós vemos ele mostrar o materialismo de Demócrito de cabeça para baixo e mostrar o materialismo de Epicuro invertendo o de Demócrito por estar de cabeça para cima.


        Quando o pensamento está de cabeça para baixo ele não está meramente praticando uma posição de Yoga, chamada em português de plantar bananeira, mas está sim considerando que todo o mundo insensível e abstrato que, em geral, está presente na cabeça, melhor, sob a cabeça, quer dizer, dentro da cabeça é o mundo real e objetivo que sustenta a tudo e a todos. E, por outro lado, está igualmente considerando que todo o mundo sensível e concreto que, em geral, está presente nos pés, melhor, sob os pés, quer dizer, fora dos pés é o mundo aparente e subjetivo.


      Quando o pensamento fica de cabeça para cima e apoiado sobre os pés, então todo o mundo real e objetivo que sustenta a tudo e a todos é sensível e concreto, enquanto que todo o mundo aparente e subjetivo que é sustentado por tudo e por todos é insensível e abstrato.


          [O mundo real e objetivo que é fonte e sustento de tudo é pura atividade de doação, a qual, por sua vez, pode ser compreendida como graça (vontade de criar) ou como acaso (criação involuntária). Já o mundo aparente e subjetivo que ganha e elabora ou desenvolve o seu sustento é pura atividade de apropriação, a qual, por sua vez, também pode ser compreendida como graça (criação da vontade) ou como acaso (vontade criadora).]



          Ora, considerando que o mundo real e objetivo se limita à atividade de sustentar e/ou de ser a fonte de tudo, então cabe ao mundo aparente e subjetivo a atividade de ser sustentado e/ou de ser elaborado, ou seja, cabe ao mundo aparente e subjetivo a atividade dupla de receber/ganhar e de elaborar seu sustento.


          O mundo real e objetivo que é a fonte de tudo, para Demócrito, é o mundo insensível e abstrato e é nele que se encontra tudo, logo, também o mundo aparente e subjetivo de toda sensibilidade e concretude. Esta posição de Demócrito está presente em toda a filosofia grega até Aristóteles e é similar à posição de Kant que também está presente em toda a filosofia alemã até Hegel.


          O mundo real e objetivo que é a fonte de tudo, para Epicuro, é o mundo sensível e concreto e é nele que se encontra tudo, logo, também o mundo aparente e subjetivo de todo o insensível e abstrato. Esta posição de Epicuro está presente na sua filosofia grega pós-aristotélica e corresponde à posição de Marx que está presente na sua filosofia alemã pós-hegeliana.


          A atividade subjetiva, em quaisquer dos casos, é a atividade de elaboração, ou seja, cabe sempre ao sujeito a atividade de elaboração. A elaboração em Demócrito está voltada para o mundo concreto e sensível que, para ele, é atividade aparente e subjetiva. Mas, Demócrito “teria se cegado para que a luz sensível não lhe obscurecesse a acuidade do espírito”, quer dizer, teria se livrado do mundo aparente e subjetivo para passar ao mundo real e objetivo que é o mundo insensível e abstrato. Esta passagem da ocupação da atividade subjetiva do mundo sensível e concreto de forma decisiva para o mundo insensível e abstrato aparece na filosofia grega como uma mudança de temática da filosofia da Natureza ou da Física para a filosofia da Sociedade ou da Metafísica e, claro, ela corresponde também a uma mudança da filosofia da Consciência para a filosofia da Consciência de Si. Podemos considerar que, depois deste ato edipiano da filosofia grega da Natureza, a filosofia grega se tornou filosofia da Metafísica e/ou de preparação para a morte (como se vê em Platão e a partir do suicídio de Sócrates) tal qual em “Édipo em Colona”. Ela, a filosofia grega, pôde se desocupar do mundo sensível e concreto para se dedicar ao mundo insensível e abstrato, mas este permanecia sendo o mundo real e objetivo, enquanto que o mundo aparente e subjetivo permanecia sendo o mundo sensível e concreto com o qual ela cortou os laços de atenção e foco ao se cegar (ao se castrar, dizia Freud). Noutras palavras, a filosofia Metafísica grega conseguiu se dedicar ao cultivo do mundo real e objetivo da insensibilidade e abstração de modo que o desenvolveu como a fonte e sustento de tudo.


          Depois de a Metafísica ter chegado ao seu auge com Aristóteles é que aparece Epicuro fazendo um retorno à Física ou retomando a Física da filosofia da Natureza de Demócrito. O mundo da Metafísica aristotélica é igualmente o mundo do Império de Alexandre, o Grande, que era seu discípulo e a realização do projeto surgido com Platão, o mestre de Aristóteles, de fazer da filosofia o poder supremo incorporando-a ou encarnando-a no rei-filósofo. Este Império de Alexandre está em decomposição quando surge a filosofia de Epicuro. Seria esta a razão de Epicuro abandonar a Metafísica, para que ela prossiga no processo de dissolução junto com a dissolução do Império Alexandrino? Tudo isso é possível, mas o que importa mesmo é que Epicuro retomou a Física de Demócrito de um modo inteiramente diverso àquele que vinha sendo desenvolvido pela filosofia grega até Aristóteles. Epicuro considerou que o mundo real e objetivo é o mundo sensível e concreto e que o mundo aparente e subjetivo é o mundo insensível e abstrato, então o sensível e concreto era o mundo dado a ele, enquanto que o mundo insensível e abstrato era o mundo elaborado por ele. Decidiu então elaborar a Física de Demócrito como mundo insensível e abstrato na aparência da sua subjetividade.


          O mundo real e objetivo é sensível e concreto para Epicuro que sensivelmente o percebe e esta percepção sensível passa de forma insensível e abstrata para o mundo subjetivo onde aparece para Epicuro como forma insensível e abstrata do que é sensível e concreto. A forma insensível e abstrata do atomismo é a apropriação que aparece no sujeito do que é sensível e concreto. Ele não precisa se cegar para ter acesso à forma insensível e abstrata, ao contrário, ele precisa perceber sensível e concretamente a realidade objetiva porque é o sustento dela que ele recebe na forma abstrata e insensível que se dedica a elaborar. Ele não só nasce sensível e concretamente da realidade objetiva, mas também a sua atividade insensível e abstrata aparente na sua subjetividade resulta de ficar engravidado pela percepção sensível, logo, resulta de afirmar, fruir e proteger a percepção sensível e não de negar, escravizar e destruir a percepção sensível. Epicuro afirma a sexualidade de modo similar à afirmação da mesma feita por Prometeu que deu forma ao fértil húmus nascido da Terra, a fértil forma humana, e engravidou esta forma com a sensível fertilização ou percepção da criativa centelha/luz do Céu, o criativo conteúdo da forma humana.


          Epicuro só aparece depois de a filosofia grega desenvolver a Metafísica ao máximo a partir do ceticismo, quer dizer, da negação e castração da percepção sensível, logo, com os olhos sensíveis e concretos muito bem fechados. Epicuro afirma e frui a percepção sensível e é com os olhos sensíveis e concretos muito bem abertos que ele, a partir da certeza do saber sensível/dogmatismo, se dedica a desenvolver ao máximo a Física abstrata e insensível.


          Porém, a novidade é o resultado ao qual chega Epicuro. Ele elabora o atomismo como processo de gestação do qual nasce a consciência humana de si, a qual, por sua vez, afirma a si mesma como o princípio subjetivo essencial e/ou aparente do fenômeno objetivo e/ou da realidade objetiva. A partir deste resultado a consciência humana de si pode construir e desenvolver sensível e livremente na concretude do mundo real e objetivo a sua própria subjetividade essencial/aparente, quer dizer, a aparência ou a essência de sua própria subjetividade humana. Portanto, a novidade do resultado de Epicuro é que ele chega a transformar a atividade subjetiva humana no princípio da atividade essencial/aparente do próprio movimento real, consegue transformar o sujeito no movimento real do objeto, logo, consegue não só inocular a atividade do sujeito dentro do objeto mas tornar a livre atividade do sujeito o movimento real do objeto/o movimento real objetivo. Portanto, Epicuro consegue tornar a liberdade essencial/aparente do sujeito a liberdade do próprio movimento real. É aqui que a concepção de prática revolucionária do movimento real de Marx teve seu encontro e nascimento com a concepção revolucionária de prática da sabedoria da consciência humana de si de Epicuro


          Por aqui é possível compreender e explicar não só a prática revolucionária, mas a sua passagem de um sujeito determinado pelo movimento da necessidade real do objeto para um sujeito determinante do movimento da liberdade real do objeto. Quer dizer, a tal famosa passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade é inteiramente dependente deste materialismo epicurista revolucionário de Karl Marx.