ATOMISMO GREGO E ECONOMIA DE MERCADO ESCRAVISTA:
DETERMINISMO E ACASO
Parece que conseguimos relacionar o estudo de Marx do
atomismo grego com o estudo de Marx da economia política. No atomismo grego,
ele se ocupou da contradição entre o atomismo de Demócrito e o de Epicuro. Na
economia política moderna, ele se ocupou da contradição entre o capitalismo da
burguesia e o comunismo do proletariado, argumentando que a contradição da
burguesia versus o proletariado conduzia a economia política do capitalismo
para o comunismo.
O atomismo de Demócrito se desenvolve junto com a Grécia que
está se tornando conhecida por todo o mediterrâneo e oriente com sua economia
de mercado, de modo que todos os povos conhecem as mercadorias dos mercadores
gregos.
O atomismo de Epicuro se desenvolve junto com o processo de
decomposição do império alexandrino, o primeiro império mundial na região do
mediterrâneo, ou seja, a economia de mercado dos gregos tinha chegado ao auge
do seu domínio e estava em crise e em processo de decomposição do império de
sua economia de mercado. Processo longo que será sucedido pela ascensão de Roma
e do império romano na mesma região.
O atomismo de Demócrito não só se desenvolve junto com a
expansão da economia de mercado da Grécia, mas também defende o determinismo do
sistema atomista como forma eterna ou de eterno retorno do atomismo e do
determinismo da economia de mercado.
O atomismo de Epicuro não só se desenvolve junto com o
processo de decomposição do império da economia de mercado grega, mas também
defende o acaso do sistema atomista como forma de morte ou de dissolução do
atomismo e do determinismo da economia de mercado. O epicurismo, essa nova
modalidade do atomismo dissolvido, migra para Roma e nela adquire cidadania
romana, melhor, se mostra uma das formas de filosofar/pensar características da
cultura romana. Este sistema do acaso que dissolve o atomismo também está
disposto a dissolver todo e qualquer determinismo, logo, está disposto a
dissolver o determinismo da economia de mercado.
Demócrito era uma espécie de MacGyver, personagem de série da
tevê dos EUA, porque com os conhecimentos positivos, técnicos, eruditos que
possuía conseguia ser e viver “como um peixe dentro d’água” no determinismo da
economia de mercado. Epicuro era um espécime mais complexo, que vem sendo
comparado a muitos outros personagens da história do pensamento, e o mais
provável para que isso ocorra é precisamente porque com seus conhecimentos
filosóficos, conceituais, autodidatas conseguia ser e viver “como um peixe
dentro d’água” no acaso dissolvente da economia de mercado. Epicuro, ao
contrário de Demócrito que participava e vivia no movimento incansável do
mercado para toda parte, vivia no movimento de repouso participando da inércia
vegetativa do seu jardim como quem, no máximo, pratica “pique no lugar”, tal
qual um personagem esportista de Chico Anysio. O epicurismo ficou conhecido por
todo lado como o pensamento de quem está interessado no prazer, na amizade,
enfim, no aproveitar a vida e/ou na fruição da felicidade de viver. Mais do que
isso, o epicurismo ficou conhecido como sendo inseparável duma prática humana
comum, comunitária, quer dizer, quase que uma prática impossível sem a
associação humana.
O determinismo da primeira fase do
desenvolvimento histórico do atomismo grego é inseparável da atividade de
Demócrito. Mas, é curioso que a época da atividade de Demócrito também seja a
da primeira fase da expansão histórica do determinismo da economia de mercado
grega.
A época de Epicuro é imediatamente posterior à segunda fase
da expansão da economia de mercado e é marcada pela passagem histórica do determinismo
para o acaso. Em que sentido? Como se explica isso? Parece que na
primeira fase o sistema econômico é dominado pelo determinismo de mercado
por estar em expansão e penetrar nas diferentes partes do mundo com as
mercadorias oferecidas como produtos que satisfazem as diferentes necessidades
das diferentes partes do mundo. As relações com as diversas partes do mundo são
predominantemente comerciais, diplomáticas, no sentido de que a conquista grega
das regiões do mundo é a conquista dos mercados dessas regiões do mundo. Já na
segunda fase as relações predominantes com as diversas regiões do mundo são
guerreiras e militarmente impostas por Alexandre, ou seja, agora são as
próprias regiões que são conquistadas pelo poder político de Alexandre vindo a
constituir um império do macedônio, enfim, nessa segunda fase surge para além e
acima da economia de mercado o poder imperial do estado. A época de Epicuro é
imediatamente posterior a esta segunda fase, ela acompanha o período posterior
à morte de Alexandre e da divisão/decomposição do império alexandrino, de modo
que o mercado único imperial, quer dizer, o mercado mundial, agrupando as
regiões do império alexandrino numa mesma unidade da diversidade, permanece
existindo durante a decomposição do estado do império alexandrino em diferentes
satrapias, mas, agora, a relativa abundância do mercado mundial não só
ocasionou uma dissolução do império como também mudou a relação predominante na
economia de mercado, ou seja, o determinismo da economia de mercado de penetrar
por todo lado e constituir um mercado mundial, este determinismo que serviu de
base para a conquista política e constituição do império de Alexandre entrou em
crise porque o mercado mundial se tornou demasiadamente abundante,
demasiadamente rico de mercadorias, de população, de cultura internacional,
demasiadamente rico de consumidores, enfim, com excesso de mercadorias para
satisfazer as necessidades da população mundial da economia de mercado e, desse
modo, com esta abundância de produtos a satisfação das necessidades deixou de
ser determinista, porque com menor quantidades de produtos mercantis a
população mundial conseguia satisfazer suas necessidades. Isso permitia
desenvolver uma relação de acaso com a economia de mercado, desenvolver uma
relativa independência e indiferença para com o conjunto abundante das
mercadorias do mercado mundial de modo a se restringir por meio de livre
escolha àqueles produtos que são naturais e necessários dentre a enorme
variedade de produtos naturais e necessários equivalentes. Desse modo, não foi
apenas o poder local das satrapias mas também o poder local das populações do
mercado mundial que restringiram o determinismo do mercado mundial e expandiram
o acaso do mercado por toda parte.
Como? A economia de mercado da época tinha na sua base o
escravismo. E o escravo era uma mercadoria que participava da produção de
mercadorias da economia de mercado, mas os produtos que consumia, para
continuar produzindo mercadorias, não eram mercadorias porque o escravo estava
impedido de adquirir mercadorias, então, ou eram produtos que produzia para o
seu consumo fora da circulação das mercadorias, ou eram produtos para o seu
consumo fora da circulação das mercadorias adquiridos pelo seu senhor/seu dono
na esfera da circulação das mercadorias mas apenas como despesa crescente e sem
nenhum retorno imediato, melhor, esta despesa crescente só era compensada
quando outros senhores adquiriam igualmente mercadorias uns dos outros para
gastar com a manutenção de seus escravos. Com a consolidação do mercado mundial
existia a abundância de mercadorias e esta abundância requeria maior número de
consumidores, mas com a consolidação do mercado mundial o aumento do número de
consumidores não se fazia mais pela expansão geográfica extensiva do mercado e
sim pela possível expansão geográfica intensiva do mercado. Ora, de imediato,
isto requeria um aumento da população livre e proprietária de fontes da vida,
já que a economia de mercado se baseava no escravismo e o aumento do consumo de
mercadorias que, imediatamente, não significasse despesa e sim ganho era
representado pelo aumento dos compradores de mercadorias, ou seja, pelo aumento
da população dos chamados “homens livres” e proprietários de bens imóveis (terras,
casas etc.) e móveis (rebanhos, escravos etc.).
A intensificação do mercado levava a um aumento do número
dos homens livres e dos proprietários e, desse modo, modificava as paisagens
locais das diferentes regiões do mercado mundial, quer dizer, aumentava a
relação de exploração mais intensa e localizada do mercado mundial, o que se
refletia nas satrapias, mas também no surgimento do atomismo de Epicuro que,
além de se dedicar a uma intensidade da produção local do seu jardim, ainda era
capaz de ir bem adiante, libertando seus escravos e convivendo com eles na
produção comunitária do seu jardim.
TRANSGRESSÕES
Pois bem, eu acho que cometi transgressões. A explicação da necessidade
em Demócrito e do acaso em Epicuro feita por Marx, a meu ver, deixa a desejar.
Porque? Porque ele explica de forma clara o uso da necessidade como explicação
por Demócrito, mas de passagem, ele adianta que uma tradição, que ele Marx
coloca sob suspeita, diz que Demócrito parece atribuir o acaso como explicação
da criação do mundo de modo que "Demócrito teria feito do acaso o mestre absoluto
do universal e do divino e afirmado que nesse plano ele regeria tudo, enquanto
que ele o teria afastado da vida humana e da natureza empírica, tratando
como inteiramente loucos aqueles que o proclamam". Então, por mais
que Marx insista em dizer que Demócrito apenas parece atribuir
o acaso como explicação "do universal e do divino" ele deixa o uso do
acaso de Epicuro como explicação de tudo muito enfraquecido, porque os exemplos
que cita de Epicuro como uso do acaso como explicação são todos referentes ao
cosmo, quer dizer, ao universal e todos referentes ao que não está em nosso
poder conhecer direta e particularmente, ou seja, o uso do acaso como
explicação parece ser o mesmo uso feito por Demócrito
por ficar limitado ao universal, ao cósmico.
A questão é outra, quer dizer, o uso do acaso como explicação por
Epicuro não está limitado ao cósmico e universal, como a gente sente e percebe
quando ele diz que algumas coisas são fortuitas e outras dependem de nosso
arbítrio e completa este pensamento dizendo que estão abertas por toda parte as
vias que levam à liberdade, numerosas, curtas, fáceis. Porque ninguém pode ser
detido em vida, posto que domar a necessidade ela própria é coisa permitida.
Ora, a gente sente que ele não está se referindo ao cósmico nem ao universal e
sim ao particular e singular que explicados pela necessidade nos aprisionam no
infeliz reino da necessidade, enquanto que explicados pelo acaso nos liberam no
feliz reino da liberdade. As circunstâncias explicadas como exclusivamente
necessárias requerem para a sua compreensão, a compreensão da sua necessidade,
igualmente uma educação necessária, desse modo, somos produtos das
circunstâncias e da educação, quer dizer, produtos necessários duma estrutura
necessária que é a estrutura determinista da necessidade, daí a minha
referência ao estruturalismo. Já as circunstâncias explicadas pelo acaso
admitem não ser exclusivas, quer dizer, admitem a existência da necessidade,
mas então requerem para a sua compreensão uma multiplicidade de explicações, a
compreensão do seu acaso de ser circunstância casual e/ou de ser circunstância
necessária supõe para a sua constituição uma educação voluntária que muda a
circunstância casual e uma educação voluntária e necessária que muda a
circunstância necessária ao mesmo tempo que muda a si mesmo, quer dizer, que
sua vontade é mudada pela educação necessária e pela educação voluntária, posto
que domar/dominar a própria necessidade é coisa permitida pela vida/por
quem não pode ser detido em vida. Deu para perceber que essa explicação pelo
acaso de Epicuro referida ao casual e à vontade lembra as usadas por Marx
quando, nas suas teses sobre Feuerbach, se refere à prática revolucionária
como "a coincidência (acaso) da mudança das circunstâncias e da atividade
humana ou autotransformação", quer dizer, quando, em lugar de se referir
ao cósmico e universal, se refere ao particular e singular, às condições
práticas de vida e/ou à ética, logo, se Marx usasse os critérios do prazer da
ética de Epicuro (e ele se refere ao prazer e não ao instinto nem à
necessidade - numa passagem dessa parte da tese de Marx Demócrito
aparece considerando que "(...) a substância da necessidade seria a
antipatia, a impulsão da matéria", a tal ação e reação ou aquilo que na
mecânica de Newton, tira o corpo da inércia - teria usado algo similar a
Demócrito que são os prazeres naturais e necessários, os naturais e não
necessários e os que não são naturais nem necessários e veríamos Epicuro escolhendo
os naturais e necessários como os mais usuais, os naturais e não
necessários como de uso moderado e os não naturais nem necessários que devem
ser evitados no uso, logo, Epicuro parece recorrer tal qual Demócrito à
necessidade, mas para explicar o prazer ou a simpatia e não o destino
ou a antipatia.
Outro problema decorrente das minhas transgressões, quer dizer, da minha
angústia e ansiedade se apresenta no texto porque eu forço a barra e introduzo
algo do mundo capitalista da época de Marx (e da nossa, é claro) numa época de
economia escravista de mercado. Mesmo que seja verdade que Epicuro liberta seus
escravos e, desse modo, se manifeste favorável ao trabalho livre, não parece
ser possível dizer com certeza que ele suprimia a economia de mercado dando
preferência a uma economia de subsistência ou se com o acaso e a libertação de
seus escravos ele promovia a mudança da economia escravista de mercado para a
economia assalariada de mercado, quer dizer, a mudança de uma economia de
trabalho determinista de mercado para uma economia de trabalho livre/casual de
mercado. Tampouco parece natural fazer de Demócrito um senhor do trabalho e dos
meios de produção, quer dizer, um escravo que se torna senhor pelo domínio do
trabalho e dos meios de produção, já que na economia escravista de mercado
todos os senhores dominam o trabalho e os meios de produção como seus donos,
logo, teria de atribuir a todos eles a condição de escravos que se tornam
senhores pelo domínio do trabalho e isto parece muita transgressão, posto que o
senhor se impõe como senhor ao escravo por não temer a morte e se aproveitar do
temor da morte do escravo para impor a escravidão ou o trabalho forçado do
escravo enquanto o senhor permanece livre do trabalho ou então exerce o
trabalho livre. E Demócrito parece corresponder muito mais àquele que, fazendo
parte do mundo dos senhores, exerce o trabalho livre e viaja por toda
parte tanto na condição de senhor que dispõe de mercadorias para trocar nos
diferentes mercados quanto na condição de senhor que aprende as diversas artes,
técnicas, ciências, saberes desenvolvidos no exercício do trabalho livre. Ao
contrário, Demócrito, com suas viagens pelo mundo inteiro tendo por finalidade
maior o aprendizado dos saberes positivos, parece se situar na afirmação e
desenvolvimento do trabalho livre, quer dizer, da força humana de trabalho,
mas, como esta na sua época é escrava, então ele admite que não só a escravidão
resulta do determinismo, mas também o próprio trabalho livre é resultante do
determinismo da necessidade da economia de mercado, de modo que o seu
desenvolvimento está ligado à expansão do mercado, portanto, é certo que o
desenvolvimento da erudição dos saberes positivos, empíricos, técnicos de
Demócrito é inseparável da própria expansão do mercado da economia escravista.
Epicuro, numa fase após o império de Alexandre, quando o mercado se expandiu ao
máximo e para continuar seu desenvolvimento se voltou para o interior, o
mercado interno, com sua fixação no seu jardim tendo por finalidade maior vivenciar
a amizade e o prazer, parece se situar na afirmação e desenvolvimento da
propriedade dos meios de produção, mas de um modo que muda a propriedade
senhorial estritamente privada para associada e muda mais ainda ao admitir que
seu sistema econômico de produção não usa mais o trabalho escravo e sim o
trabalho livre, portanto, se existe ainda alguma correspondência com a minha
transgressão ela se deve à permanência do escravismo com Demócrito por mais que
ele tenha desenvolvido o trabalho livre e à supressão do escravismo com Epicuro
por menos que ele tenha desenvolvido a propriedade comum dos meios de produção
no seu jardim, logo, se o atomismo determinista de Demócrito corresponde à luta
para desenvolver a força humana de trabalho livre então o atomismo ao acaso de
Epicuro corresponde à luta para desenvolver a supressão da força humana de
trabalho escravo. Saber se a resultante da atividade de Epicuro seria a
economia de mercado capitalista do trabalho livre assalariado, a
economia comunista do trabalho livre ou economia comunitária do servos pode ser
relevante para a nossa imaginação, mas na história a presença do epicurismo
ocorre em Roma, que se torna o novo império da economia escravista de mercado,
e reaparece nos modernos, por exemplo, em David Hume (citado na aula
online pelo Clóvis de Barros: https://www.youtube.com/watch?v=3X2aolzrPAw
)
que coloca, tal qual Epicuro, a percepção sensível ou a sensibilidade
como critério básico e fundamental. David Hume foi amigo e influência no
pensamento de Adam Smith, logo, o epicurismo chega aí como economia de mercado
capitalista do trabalho livre assalariado. Porém, Marx se baseava na crítica da
economia política clássica, em especial, a de Adam Smith e David Ricardo,
dos quais se dizia discípulo crítico por ter adotado a teoria do valor-trabalho
igualmente de forma crítica. Ou seja, é aí, agora sim, de forma clara, que se
situa o mesmo procedimento expresso na tese sobre Demócrito e Epicuro, onde o
atomismo do primeiro é submetido à crítica até ser dissolvido no que é chamado
de ciência natural da consciência humana de si. Logo, Marx submete à
crítica a economia política clássica e sua teoria do valor-trabalho de
modo a chegar à sua dissolução no que chama de ciência social da comunidade
humana, ciência social ou de si da emancipação humana ou ciência humana do
comunismo.
Finalmente, acho que fica claro minha necessidade de
ler, ouvir e trocar opinião, já que, acredito, sem ela eu não consigo avançar
no meu próprio esclarecimento. Mas, aqui, esta necessidade não
é necessariamente a de entrar no mundo
acadêmico, mas é sim a necessidade de livremente compartilhar
do mundo da amizade, é a necessidade de amigos como prazer
natural e necessário. Em todo caso, permanece de pé o problema a resolver: como
superar o mercado? Escrevo a respeito, mas nada está resolvido nem acredito que
estará em breve, talvez até, nunca esteja, mas aí entramos com o mercado no fim
da história e/ou no eterno retorno da sociedade e economia de mercado. Porém,
será que não é possível que a história continue e que o eterno retorno e/ou a
repetição só exista como farsa? E, nesse caso, o mercado em eterno retorno não
será uma farsa e, portanto, inexistente como forma de vida autêntica, logo, não
somos nós que não sabemos pensar exceto necessariamente com o mercado?
SABER VIVER
É desgastante não saber viver e querer superar essa
ignorância se dedicando ao estudo para aprender e adquirir o saber para poder
viver.
O desgaste e a ignorância só aumentam por meio do tal estudo
como se este só funcionasse para afastar ainda mais do saber viver, como se o
tal estudo fosse o desenvolvimento dum obstáculo que continuamente cresce e
interdita o acesso ao saber viver. Obstáculo que interdita como um fosso, um
abismo, um muro, uma redoma porque a liberdade do estudante termina onde começa
a liberdade do outro, portanto, porque não existe nenhuma ponte que possibilite
que a liberdade de cada estudante comece com a liberdade do outro, ou seja,
nenhuma ponte que libere para o encontro do estudante com o outro, para o
encontro do estudante não só com o estudo, mas também com o conhecimento e
fruição do saber viver.
Ainda mais quando este tal estudo parte de uma tese, segundo
a qual dois estudiosos que encontraram a ponte que os levou ao mesmo saber viver,
o atomismo grego, em seguida se distanciaram por completo, com cada um se
opondo ao outro numa construção duma interdição completa entre eles, de modo
que a liberdade de cada um, não só terminasse quando tinha início a liberdade
do outro, mas o que é pior como se a liberdade de cada um significasse a
supressão da liberdade de cada outro, tamanho o grau de antagonismo
desenvolvido entre eles, quer dizer, eles não conseguem permanecer nos limites
de cada um e agem como se a liberdade de cada um só fosse possível suprimindo a
liberdade do outro. A liberdade de cada um só começa quando termina com a
liberdade do outro, logo, a redoma de um suprime a redoma do outro.
A ponte e o encontro de ambos no mesmo saber viver são temporários,
na verdade, só servem para que o saber viver de um destrua o saber viver do
outro, aliás, será mesmo que cada um deles sabe viver?!
Bom, sendo claro, eu estudo a tese de Marx, sobre o atomismo
de Demócrito e o atomismo de Epicuro, visando aprender o saber viver. E, por
mais que eu estude, nunca aprendo a viver nem mesmo a compreender a tese de
Marx. E, como isso é muito desgastante e cada vez me torna mais ignorante do
viver, eu tenho vontade de dar fim a este estudo com o qual viso saber viver e
só aprendo a ignorar o viver.
Se meu estudo de como saber viver só me ensina como ignorar
viver, então, talvez, esta contradição possa chegar ao resultado oposto se
mudar a orientação do meu estudo para como ignorar viver e, desse modo,
aprender como saber viver. Que coisa infantil é essa? E, como se pode realizar
uma tal mudança tão simplória? Sim, porque o objeto do estudo do saber viver se
situa, por incrível que pareça, na tese de Marx sobre Demócrito e Epicuro e se
tem me ensinado a ignorar viver, então, como mudo a orientação do meu estudo
para como ignorar viver? Não mudo, porque já mudei, posto que aprendo apenas
como ignorar viver? Nesse caso, como faço o truque de me dedicar a estudar como
ignorar viver para obter como resultado o ensinamento de como saber viver?
Estabeleci na condição de sujeito como objeto de estudo o
saber viver presente na tese de Marx sobre Demócrito e Epicuro e o resultado
obtido na minha condição de sujeito foi aprender a ignorar viver, quer dizer, a
mudança oposta àquela que visava efetivar na minha condição de sujeito. Então,
agora, o que fazer? Estudando o saber viver de Demócrito e Epicuro presente na
tese de Marx aprendi a desenvolver a ignorância de viver, quero dizer que
iniciei o estudo para saber viver com alguma ignorância de viver e com o
progresso do estudo multipliquei por muitas a minha ignorância de viver. O
sujeito, que queria aprender a saber viver, ao que parece, não aprendeu a saber
viver, mas aprendeu a desenvolver a si mesmo, quer dizer, a sua condição de
sujeito ignorante do viver. Que significa isso? Talvez signifique a
impossibilidade de aprender a viver estudando o saber viver dos atomistas
gregos presente na tese de Marx porque este aprendizado do saber viver dos
atomistas gregos presente na tese de Marx não é nem pode ser obtido pelo estudo
e sim pela prática do viver, ou seja, é preciso adotar o saber viver estudado
como prática, logo, é preciso aplicar na prática o que se estudou. Talvez,
então, o ignorante do viver, que é o mesmo sujeito que faz este estudo do saber
viver, precise aplicar na sua subjetividade, no seu viver o saber dos atomistas
gregos. Ué, mas não era isso que ele pretendia?! Não estou entendendo?! Nem
eu!!
Talvez o estudante ignorante do viver tenha se mantido
sempre o mesmo sujeito ignorante do viver porque no seu estudo manteve sempre
como objeto o saber viver de Demócrito e Epicuro da tese de Marx, desse modo
nunca arriscou colocar como objeto a condição de estudante ignorante do viver
que incorpora como sujeito o saber viver dos atomistas gregos, nunca arriscou
dar vida ao saber viver dos atomistas gregos por aplicá-los no seu próprio
viver. Será que é isso?!
O afeto principal de Demócrito é “a impulsão da matéria, o
movimento, a antipatia” e o afeto principal de Epicuro é “a ataraxia da
consciência de si, o repouso, a apatia”. Guerra e tragédia se fazem com “a
impulsão da matéria, o movimento, a antipatia”, mas como fazer a paz e
felicidade em meio à guerra e tragédia? Através da “ataraxia da consciência de
si, do repouso, da apatia”. A admiração de Nietzsche por Demócrito é muito
clara, já a sua admiração por Epicuro é um tanto obscura. Nos seus estudos
denominados de “A filosofia na época trágica” Nietzsche se dedica ao conjunto
dos filósofos que, tradicionalmente, são chamados de filósofos da natureza e/ou
pré-socráticos. E, apesar de só ter tido acesso a trechos desses estudos
citados junto com trechos dos estudos de outros filósofos sobre o mesmo tema, é
visível o destaque dado a Demócrito dentre todos os trechos extraídos da citada
obra de Nietzsche. Nietzsche adotará muito de Demócrito ou reforçará muito de
si mesmo confirmando com o que já foi elaborado, dito e vivido por Demócrito. O
determinismo da necessidade, que tem por substância a impulsão da matéria, o
movimento, a antipatia, é adotado por Nietzsche com total simpatia e empatia
como o próprio e essencial da dramaturgia trágica com sua configuração do
destino inexorável. Já Epicuro, que não pertence a este ciclo e que, além de
pós-socrático, é pós-aristotélico, é inicialmente criticado por afirmar a
existência de algo escondido por detrás da aparência e/ou por se esconder por
detrás da aparência, o que para Nietzsche é um engodo, uma mentira, pois não há
nada escondido por detrás da aparência nem há como se esconder por detrás da
aparência e só existe mesmo é a própria aparência sem nada por detrás, ou seja,
segundo Nietzsche, o clinâmen, a declinação ou o desvio da queda em linha reta,
que, segundo os epicuristas, constitui a subjetividade ou o sujeito, não passa
duma forma de manifestação daquilo que, na “Genealogia da moral”, Nietzsche
chamou de inversão dos valores feita pela revolta dos escravos na moral, ou
seja, Epicuro não passa de um escravo revoltado que inverte os valores na moral
passando a fazer valer como força e caráter a sua fraqueza e ressentimento
escondidos sob a sua aparência de fraqueza e ressentimento, logo, na verdade,
Nietzsche considera que Epicuro tem por detrás da aparência da fraqueza e do
ressentimento a própria fraqueza e ressentimento e não como Epicuro pretende a
força e o caráter da sua essência subjetiva, da subjetividade e/ou do sujeito.
Porém, em outro momento, Nietzsche encontra identificação com Epicuro ao
classificar a ambos de “os póstumos”, o que significa admitir que identificou
sua vivência de “interdito” com a vivência de Epicuro nos limites de seu jardim
e que previu para sua obra uma liberação e um sucesso similar ao de Epicuro que,
depois de sua morte, floresceu na multiplicidade de seguidores epicuristas não
só na Grécia, mas em Roma, no império romano, na modernidade e na
contemporaneidade. E isso ocorre porque Nietzsche se identifica com Epicuro ao
considerar que ele Nietzsche estava sendo vítima da inversão dos valores feita
pela revolta dos escravos na moral, ou seja, ele, Nietzsche, um senhor pleno de
vitalidade, força e caráter estava contínua e perseverantemente sendo interdito
sob a inversão dos valores que vestia, carimbava e/ou selava com a aparência da
fraqueza e do ressentimento do escravo. Nietzsche percebe que sua opinião
anterior sobre Epicuro possui as mesmas características do destino inexorável
que está vivenciando com a interdição de sua força e caráter sob a aparência da
fraqueza e do ressentimento com a qual vem sendo contínua e perseverantemente
carimbado. É aí que ele decide acreditar que é um póstumo, tal qual percebeu,
agora, que Epicuro o fora, quer dizer, é um pensador interditado e enterrado em
vida, mas que, dedicado à sua obra, mesmo mantido à margem do viver, logo,
declinando do viver oficial e, com sua força e caráter, existindo num
intermundo, que, tal qual semente, irá desabrochar e florescer como “póstumo”.
As obras de Nietzsche que se mostram cheias de vida, de
imaginação, de criatividade, de invenção são predominantemente de acordo com o
determinismo de Demócrito porque este é próprio do destino inexorável da
tragédia e da filosofia da época trágica. E Nietzsche é aquele que assume
trazer o trágico para a filosofia de sua época, aliás, ele se propõe mais,
porque se assume como o anunciador da vinda duma nova época trágica para a
filosofia. Ora, Nietzsche, ao contrário de Marx, atribui ao determinismo ou à
dramaturgia da necessidade de Demócrito o uso da imaginação cheia de vida,
criatividade e invenção, por outro lado, também ao contrário de Marx, atribui à
possibilidade abstrata/escondida ou à dramaturgia do acaso de Epicuro o uso do
entendimento cheio de ressentimento, inversão dos valores e niilismo. Mais
ainda, atribui a Demócrito a embriaguez dionisíaca do determinismo ou
dramaturgia da necessidade e atribui a Epicuro a aparência apolínea da
possibilidade abstrata/escondida ou dramaturgia do acaso.
Com efeito, a dramaturgia da necessidade de Demócrito tal
qual a de Édipo é cheia de aventuras de viagens, de conhecimentos, seja
decifrando um enigma, seja investigando um crime, seja recusando a coroa real
para descobrir uma nova etiologia etc., enquanto que a dramaturgia do acaso de
Epicuro tal qual a de Prometeu é vazia pela desventura do sedentarismo, do
pensamento fixo, seja de entrega da centelha à humanidade, seja de entrega da
humanidade ao filosofar, seja de entrega à ataraxia da consciência humana de si
etc. Demócrito na hora que a morte se aproxima está na companhia da irmã e
consegue adiar a sua morte para que ela possa participar dum festival dos
deuses na cidade de Abdera; é curioso, mas Édipo se aproxima do seu túmulo na
companhia de sua irmã Antígona, que também é sua filha, e adianta sua morte
para que ela possa retornar a Tebas para participar do enterro de seu irmão.
Epicuro na hora que a morte se aproxima se coloca num tonel com água quente
para aliviar a dor da pedra, bebe vinho e pede aos amigos que se mantenham
fiéis à filosofia; também é curioso que Prometeu Acorrentado a uma rocha, antes
de ser lançado no Hades (inferno grego), peça aos amigos que escutem suas
revelações do futuro e se mantenham fiéis à sua amizade guardando segredo das
mesmas. Ainda mais curioso é que Nietzsche tenha sido cuidado/acompanhado por
sua irmã até a chegada de sua morte e que esta tenha tomado para si a
responsabilidade pela edição de suas obras. Sintomático também que Marx tenha
tido uma cerimônia fúnebre na qual os amigos enalteceram e prometeram fidelidade
ao seu pensamento e ainda fixaram a imagem de Marx numa estátua de pedra, rocha
ou metal junto a seu túmulo.
O que percebemos é que no determinismo de Nietzsche não há
nada por detrás da aparência, ou seja, o que há é a própria aparência, é apenas
a própria objetividade, logo, não existe um sujeito por detrás da objetividade
aparente do sujeito, de modo que o sujeito é sua própria objetividade aparente,
portanto, para Nietzsche, o senhor é força objetiva aparente e o escravo é
fraqueza objetiva aparente, logo, o que percebemos é que no determinismo de
Nietzsche não existe subjetividade, melhor, a subjetividade que existe é a da
força objetiva e a da fraqueza objetiva. Nesse sentido, o determinismo de
Nietzsche é um determinismo objetivo da física e da biologia, de modo que,
quando se refere à subjetividade é ao excesso objetivo de força física e
biológica do senhor e também é à carência objetiva de força física e biológica
do escravo, logo, a subjetividade é o excesso objetivamente aparente no senhor
e a subjetividade é a carência objetivamente aparente no escravo e disso
resulta que apenas o senhor possui subjetividade e que o escravo apenas é
despossuído de subjetividade.
Ainda que Nietzsche permaneça com seu determinismo objetivo
ele admite que vive num mundo no qual o excesso de força objetiva se encontra
na condição de prisioneiro da carência de força objetiva, o senhor se encontra
na condição de escravo do escravo, porque nesse mundo já aconteceu e foi
vitoriosa a revolta dos escravos na moral, portanto, aí vigora a inversão ou a
subversão dos valores. Ao admitir isso ele também admite, como vimos acima,
Epicuro e passa a apostar no troco que poderá dar postumamente quando sua obra
vier a se efetivar como a transvaloração dos valores, de modo que o excesso de
força objetiva deixe de ser escravo e se torne livre e senhor outra vez.
Nietzsche admite que seu projeto tem as mesmas características daqueles que
fizeram e foram vitoriosos com a revolta dos escravos na moral, porque, para
ele, agora, são os senhores, escravizados pelos revoltosos na moral que
subverteram todos os valores, que precisam se libertar organizando uma luta de
transvalorização dos valores que reabilite os senhores na moral. Permanece tudo
igual e contrário, quer dizer, permanece tudo no âmbito do determinismo e/ou da
ação e reação.
O que ocorre na dramaturgia do acaso? O principal
acontecimento é a constituição do sujeito ou da subjetividade, a constituição
da essência subjetiva da força de cada um e esta é a condição para que venha a
acontecer a constituição do fenômeno objetivo da força de cada um como
resultante do encontro da essência subjetiva da força de um com a essência
subjetiva da força de um outro. A objetividade é o fenômeno da aparência da
força que só ocorre depois do vir a ser subjetividade da essência abstrata,
escondida, invisível da força.
PROMETEU ERA UM PÓSTUMO?!
Sim ambos são atomistas, mas em
momentos e terrenos históricos inteiramente diversos. Leucipo teria sido o
mestre e antecessor de Demócrito e a teoria atomista teria surgido da crítica
ao ser metafísico de Parmênides ("o ser é e não pode não ser") que nega
o movimento e o vir a ser, logo, considera todo o empírico e sensível como
ilusão. O ser que é e não pode não ser se o compararmos a algo empírico e
sensível terá de ser, no máximo, a uma pedra, uma rocha, um metal mas sem as
interferências do tempo e das ocorrências meteorológicas que desgastam e o
fazem não ser, não dá para comparar a algo congelado, exceto no caso de algo
eternamente congelado, já que qualquer derretimento por mínimo que seja o faz
não ser. Pois é, Leucipo criticando este ser que é e não pode não ser por só
ser possível no pensamento ou imaginação, mais ainda, não no pensamento e na
imaginação físicos e sensíveis, porque ainda se movem, e sim num
pensamento e imaginação metafísicos e insensíveis (vazio?!). Leucipo, olhando
para a esta contradição do ser metafísico e insensível com a realidade física e
sensível e percebendo que o ser metafísico e insensível corresponderia física e
sensivelmente ao vazio, mas, assim, contraditoriamente, o ser metafísico seria
como ser físico correspondente ao ser que não é e pode não ser, ou seja,
Leucipo não conseguia encontrar em parte alguma da filosofia da Natureza - e
esta era a filosofia de sua época, quer dizer, a filosofia anterior aos
chamados socráticos e, por isso, chamada também de pré-socrática - lugar
para o ser metafísico de Parmênides, mas, ao mesmo tempo, ele achava lugar para
pensar física e imaginativamente na pluralidade de mudanças mínimas como
persistências de seres mínimos e na imutabilidade do vazio como não ser máximo
no qual se encontravam os seres mínimos e estes podiam ora se dissociar uns dos
outros se espalhando no vazio, ora se juntar uns aos outros configurando mundos
- dissociação e associação será algo retomado, por exemplo, por David Hume;
também Freud fará uso disso e ainda de outro par "deslocamento e
condensação", já Kant irá preferir usar o espaço e o tempo como formas a
priori da percepção sensível -, assim, a grosso modo, ele criou os
átomos/mínimos seres e o vazio/máximo não ser e Demócrito é seu discípulo. É
uma muito curiosa coincidência que o atomismo de Leucipo tenha nascido da
crítica à metafísica de Parmênides e que o chamado criticismo ou idealismo de
Kant tenha igualmente surgido duma crítica (leitura de David Hume) que o fez
despertar do sono metafísico.
Demócrito, que se tornou muito mais
conhecido do que Leucipo, a ponto de suspeitarem que Leucipo nunca existiu e
foi um personagem inventado por Demócrito, é considerado o grande atomista da
época pré-socrática ou de vigência da filosofia da Natureza. Não sei dizer o
que você perguntou, ou seja, se Demócrito alguma vez usou o termo ataraxia com
outro significado, mas sei dizer que a concepção de Demócrito segundo a
qual tudo se movimenta e ocorre devido à necessidade, melhor, de maneira
necessária, ou seja, o movimento original é o de impulsão da matéria, de
movimento mesmo ou saída do inerte, de antipatia; noutras palavras, é uma força
que necessariamente vinda de fora impulsiona, movimenta, antipatiza com a
matéria inerte/inercial. E isto é reproduzido na vida de Demócrito como
inquietude, curiosidade, sede de saber que o faz se mover incansavelmente por
toda parte do mundo e sempre entendendo que tudo ocorre determinado pela
necessidade, quer dizer, pela inquietude, curiosidade etc., enfim, devido a um
empurrão que nos coloca em movimento - Newton pensava que nada nos tira do
nosso movimento inercial, exceto uma força externa que
dê empurrão/impulsão na matéria -. Desse ponto de vista, Marx vê Demócrito
como aquele que se encontra dentro do transtorno, da inquietude, da
perturbação, da angústia, da ansiedade, da dor, do desprazer. Porque? Porque a
necessidade ou a impulsão da matéria é sempre consequência de um movimento
externo ou que nos assujeita numa cadeia ou encadeamento de condições etc. Mas,
é bom ressaltar que Demócrito permanece um filósofo da Natureza e não como a
partir de Sócrates da Ética, da Sociedade, da Política etc.
Epicuro, com certeza, não quer
transtorno, inquietude, perturbação, angústia, ansiedade, dor, desprazer e, por
isso mesmo, toda sua filosofia é feita tendo por finalidade/objetivo a ataraxia
da consciência humana de si e não o conhecimento da natureza em si e para si,
ou seja, o atomismo de Epicuro já se encontra num outro contexto e não é mais
propriamente uma filosofia da Natureza e sim uma filosofia da consciência
humana de si; noutras palavras, se o atomismo de Demócrito está conectado a um
conhecimento da física natural e independente do ser humano, já o atomismo de
Epicuro está muito mais conectado a um conhecimento da física natural que
conduz ao conhecimento da natureza psíquica do ser humano, ou seja, no contexto
epicurista o atomismo se tornou uma via de acesso que oriunda da physis visa
chegar e chega efetivamente à psyché. - Eu agradeço a você, meu interlocutor
escondido, porque agora eu estou sendo mais claro para mim mesmo, ainda que já
soubesse disso, em geral não sei usar a meu favor. - Epicuro, além de estar
situado num período pós-socrático também está situado num período
pós-aristotélico, quer dizer, posterior ao experimento da filosofia no papel de
imperatriz do mundo - Alexandre, o imperador do mundo, era um discípulo
respeitoso e obediente de Aristóteles e mandava para ele tudo que quisesse para
fazer seus estudos (inclusive pedras, para além de plantas, livros, escritos,
mapas, animais etc.) - e o seu projeto não é mais o poder, melhor, o seu
projeto de poder não é mais o poder pelo poder ou a elevação da filosofia à
posição de imperatriz do mundo, ou seja, o seu projeto de poder é satisfazer
efetivamente a consciência humana de si com um prazer duradouro, com a
realização efetiva ou o poder efetivo duma vida feliz. Por isso, o seu projeto
de poder se desloca (olha uma palavra que em Freud é conceito) do poder
político do Estado para o modo de viver em comunidade e, em seguida, em
sociedade etc., seu atomismo como via de conhecimento e satisfação da
psyché pode ser visto tanto como o que vem sendo chamado na atualidade de
micropolítica quanto também o que vem sendo chamado de movimento socialista,
comunista, melhor, vinha sendo até que o projeto anterior de conquista do poder
pelo poder e, consequentemente, com perda do conhecimento e satisfação da
consciência humana de si, se apoderou do socialismo, da socialdemocracia,
do comunismo etc.
Em todo caso, a dedicação de Epicuro à
filosofia, quer dizer, a este saber que visa a ataraxia da consciência humana
de si, a fruição estável e duradoura do prazer e da vida feliz, ou seja, esta
dedicação a um saber que se fixa no conhecimento de si mesmo e do que
satisfaz a si mesmo e supera e suprime a angústia, a ansiedade, a perturbação,
a dor, o desprazer, a inquietude, o transtorno e, por isso mesmo, é a
prática de um saber que se desenvolve de forma autodidata "etc. e
tal", enfim, é um saber que "necessita" considerar que tudo é
determinado ao acaso/pelo acaso porque assim se torna possível a ataraxia, a
fruição estável e duradoura do prazer e da vida feliz, já que se torna viável
um movimento interno/próprio/independente da necessidade e que é o tal do
desvio da queda em linha reta, quer dizer, é um movimento do próprio sujeito,
um movimento da própria subjetividade, um movimento da psyché, um movimento
aleatório, de cada sujeito, um movimento autodidata, consequentemente, se tudo
na natureza vem a ser por si mesmo, então, vem a ser por acaso, livre e
felizmente e não por necessidade, prisioneira e condenadamente. É tudo muito
simplório?! Por isso mesmo difícil, mas é tudo baseado e fundamentado tal qual
expresso por Marx nessa passagem do fim da tese: "(...) Aquilo de que
necessita a nossa vida, não é da ideologia nem de hipóteses vãs, mas do que
pode nos fazer viver sem problemas. (...)". Então, Epicuro não se move
pelo mundo porque o movimento ao qual ele se dedica é o do repouso, da
satisfação e do prazer duradouros, é o movimento autodidata e/ou que gira em
torno de si/revolucionário/desvio da queda em linha reta ou movimento em linha
curva e, a partir do qual, vem a constituir os encontros e relações com os
demais. Acho que Epicuro e o epicurismo ficaram um pouco mais claros.
Mas, o que escrevi foi a respeito de
Nietzsche lendo Demócrito e Epicuro, melhor, foi a respeito da minha leitura de
como Nietzsche lê Demócrito e Epicuro. Parto do princípio que Nietzsche é um
adepto de Demócrito porque também parto dum estranhamento muito grande a
respeito de Nietzsche e que é não entender porque um jovem muito bem-sucedido
na universidade se alista voluntariamente nos exércitos de Bismarck e participa
da Guerra Franco-Prussiana, mesmo que tenha ido na condição de enfermeiro.
Dizem que nessa ocasião teve uma queda dum cavalo e aí adoeceu, também que
foi aí que contraiu sífilis e adoeceu, também que foi aí que teve os traumas de
guerra e adoeceu. Eu levanto uma hipótese para ele ter ido para a guerra e
durante a mesma ter escrito seu livro "O nascimento/a origem da tragédia
no espírito da música" que é a seguinte: ele como estudioso dos gregos e
da tragédia grega sabia que todos os três grandes trágicos (Ésquilo: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89squilo,
Sófocles: https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3focles
e Eurípedes: https://pt.wikipedia.org/wiki/Eur%C3%ADpides)
antes de escreverem suas tragédias participaram das diferentes guerras e
batalhas ocorridas na Grécia e na condição de estrategos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Estratego
foi isso que li num livro dum italiano na biblioteca da PUC, ainda que na
Wikipédia apenas Sófocles seja mencionado como tendo sido estratego), portanto,
suponho que ele procurou usar a oportunidade de participar da guerra para poder
escrever o mais vívida e fielmente a sua obra a respeito da tragédia. Nietzsche
foi à guerra de Bismarck para ter vivência material para escrever sua obra
trágica. - estou voltando do almoço e acabo de ler Alas https://uncafeconolivia.wordpress.com/2016/03/26/alas/,
que placer! - De todo modo, por trás ou diante, melhor, dentro e no
cerne da tragédia está a guerra (e, aliás, Demócrito usa a imagem da
guerra dos átomos ou da guerra de todos contra todos, usada na modernidade por
Thomas Hobbes e outros, tanto no movimento da queda em linha reta quanto no
movimento da repulsão em linha reta entre os átomos, enquanto que Epicuro, caso
use a imagem da guerra, só o faz no movimento de repulsão dos átomos entre si).
A acusação do trágico Nietzsche ao farsante Epicuro que defende algo escondido
por detrás da aparência, quer dizer que defende o sujeito escondido sob a
objetividade é uma crítica que pode ser compreendida de outro modo, à maneira
de Marx que afirma que a história só se repete como farsa, logo, o atomismo de
Epicuro só repete o de Demócrito como farsa. Já a aprovação e identificação de
Nietzsche da sua filosofia em vida com o caráter escondido da filosofia
durante a vida de Epicuro revela a sua esperança de prever para a sua filosofia,
depois de sua morte, um sucesso semelhante ao caráter da filosofia de
Epicuro que ficou à mostra depois de sua morte.
Não sei se consegui esclarecer o
assunto que escrevi no SABER VIVER já indagando se Prometeu era um póstumo.
Eu acho que quis chamar a atenção para uma confusão que eu tendo a fazer: Eu
costumo considerar que Nietzsche usa livremente a imaginação, melhor, se for
observar, não é tão livremente assim, então, recomeçando, eu costumo considerar
que Nietzsche usa de forma preponderante a imaginação, logo, ele é tal qual
Epicuro e, mais ainda, tal qual Prometeu que, apesar de aprisionado e
interdito, discorre sobre a história do passado e prevê a história do futuro sem
nenhum medo da miséria que lhe é imposta pelos que dominam a história do
presente. Por mais que eu faça esta identificação, tenho de admitir que
ela é confusa, porque por todo lado Nietzsche usa o determinismo da necessidade
e/ou o destino inexorável de Demócrito e Édipo, mas não o determinismo do acaso
e/ou o domar ou se assenhorear flexível e livremente do destino,
noutras palavras, criar livremente ou ao acaso o reino da liberdade. Ora,
quando Nietzsche se identifica com Epicuro, ainda assim, ele não adota o acaso
senão sob a forma do destino inexorável; além disso, não é verdade que em vida
Epicuro tenha vivido escondido e que sua filosofia só veio a ser postumamente,
ao contrário, parece que, na história do epicurismo, só Epicuro mesmo conseguiu
fazer em vida de forma completa o reino da liberdade que anunciou nos limites
da singularidade abstrata, quer dizer, da comunidade dos amigos e dos prazeres,
de modo que ela nunca chegou a abranger a comunidade de todos os humanos, quer
dizer, a sintetizar a pluralidade concreta das singularidades abstratas numa
mesma unidade da diversidade, ou seja, numa universalidade. Aqui, basta
perceber que Epicuro não foi exatamente um póstumo como afirma Nietzsche.
Também não parece correto considerar que Epicuro tenha vivenciado uma condição
de prisioneiro e interdito similar àquela vivenciada por Nietzsche. Porque?
Porque na sua filosofia, o pique no lugar, o girar em torno de si, girar em
linha curva, a prática revolucionária, o viver escondido etc. são formas de
expressar o seu princípio filosófico, ou seja, o sujeito ou a subjetividade que,
como essência, encontra-se sob o fenômeno objetivo, o qual, por sua vez, só vem
à existência depois que a essência do sujeito surge e/ou se afirma ao
acaso/livremente. Nem Epicuro nem Prometeu estão prisioneiros nem interditos,
apesar de objetivamente poderem ser percebidos como prisioneiros e interditos,
porque antes de se constituírem em fenômenos objetivos eles se constituíram e
se constituem em essências subjetivas, de modo que, para eles, os fenômenos
objetivos não se constituem em obstáculos, porque são apenas possibilidades
reais rigorosamente delimitadas pelo entendimento das necessidades relativas,
enquanto que eles são possibilidades abstratas livremente ilimitadas pela
imaginação e que, por isso mesmo, podem vir a domar as necessidades relativas,
quer dizer, se libertar das pretendidas prisões e interdições impostas pelo
entendimento das necessidades relativas. Mais ainda, tanto o que foi chamado de
micropolítica como de Rádice (cadê o Ralph?) e também de velha toupeira por
Hegel, Marx e Engels só adquire compreensão clara como atividade do sujeito,
atividade subjetiva igual e própria de qualquer força humana sem que se
confunda com a atividade objetiva desigual e alienada das forças humanas.
Noutras palavras, no momento do clinâmen todos os sujeitos são igualmente
sujeitos e/ou essências subjetivas iguais e eles só se diferenciam no momento
da repulsão onde são objetivamente desigualmente objetos e/ou fenômenos
objetivos. Epicuro dizia que todos caem na linha reta em igual velocidade
independentemente da diferença de peso e que, do mesmo modo, se desviam ao
acaso ou num tempo e lugar a seu livre arbítrio e/ou casual da queda em
linha reta em igual velocidade e independentemente do peso, mas, em resultado
desse desvio vem ao encontro uns dos outros e aí suas diferenças de peso se
manifestam como diferenças de peso e constituem um mundo de objetivas posições
relativas de acordo com as diferenças de gravitação que estabeleceram entre si.
Temo ter complicado ainda mais o que
parecia complicado. Meu objetivo era chamar a atenção para uma leitura que
fizesse luz na minha confusão a respeito da imaginação usada por Epicuro e a
imaginação usada por Nietzsche de modo que ficasse claro que a imaginação
prometeica é a usada por Epicuro e não a usada por Nietzsche, porque, afinal de
contas, este reivindica a necessidade como destino inexorável e isto, pelo que
se percebe, mesmo quando diz usar o acaso. Na verdade, o que eu quero não é nem
sanar a confusão do determinismo do acaso com o determinismo da necessidade
usado por Nietzsche, mas sim trazer à tona e compreender melhor o determinismo
do acaso usado por Epicuro. Alas da Olívia é uma luz forte nesse nevoeiro (https://uncafeconolivia.wordpress.com/2016/03/26/alas/
).
DESCARTÁVEL É TUDO, ESTE É O SEGREDO DUMA FILOSOFIA
ASSISTEMÁTICA
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www.consciencia.org
Vida
(biografia) e obra (pensamento) do filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900), com análise de suas frases e entrada para muitos outros
recursos.
|
Lendo isto
algumas informações foram corrigidas, outras se perderam, mas, o principal é
que o asceticismo criticado por Nietzsche está presente em Epicuro bem como o
apolíneo etc. etc., logo, eu e todos meus míseros esforços somos objetos da
crítica de Nietzsche e somos portadores do niilismo. Logo, tudo que escrevo
pode, merece e deve ser descartado, jogado fora, ainda que eu não o faça por
ser muito fraco, por ser um escravo completo.
Se for para a universidade
serei obrigado a estudar tudo isso e a me criticar ainda mais, logo serei
obrigado a levar o niilismo até à minha execução, até à morte do homem, de modo
que o escravo acadêmico esteja pronto para se entregar ao domínio do senhor, à
vida do super-homem. Ora, este é uma finalidade criativa? Uma finalidade
criadora de minha parte? Matar o humano em mim para que venha a habitar e viver
em mim o super-homem? Mas, que se deve dizer desses super-homens formados em
série pela universidade? São criaturas ou são criadores? Eu deveria ser capaz
de responder esta pergunta: mas tem um objetivo este estudo da filosofia?
COMPLETAMENTE PERDIDO
Estou completamente perdido. Não se assuste. Estou completamente
perdido já faz muito tempo. Na época, que compraram um apartamento para eu
morar, costumava repetir para meus pais "vocês estão me matando!",
assim, eu que já estava quase
completamente perdido me tornei completamente
perdido, morto. O cara que você conhece desde então era primeiro quase morto e, em seguida, morto. Eu fico me perguntando como foi e
como é, para as pessoas, conhecer e se relacionar com um morto? Suponho que, na
verdade, seja até mesmo fácil, por ser um não se relacionar com um vivo, logo, por ser um se relacionar tanto com a aparência, quer dizer, com a exterioridade ou
com os diferentes sinais (apelidos, características, modos de ser
etc.) atribuídos àquele morto, àquela casca vazia que, apesar de vazia e
sem vida, ainda possui a aparência de um indivíduo tal qual uma estátua, uma
pintura, um retrato, um filme ou esta realidade fantástica de um morto fazendo
de conta que é um vivo. As pessoas percebiam que podiam usar o morto como
figuração e também como vazio no qual podiam armazenar suas impressões e fruir
de outras impressões já armazenadas nesse vazio, mas limitavam suas relações
com o morto à sua participação como figurante e como armazém de guarda e
retirada de impressões porque suas relações com o morto não eram como as
relações com os vivos nas quais participam como sujeitos que, juntos, criam
formas de expressão de seus conteúdos plenos, criam o drama, a trama etc.
Porque a fixação nessa tese de Marx? Agora estou me referindo a um
dos aspectos dessa fixação, talvez o mais importante, qual? A tese propõe que
"o espírito teórico, que se tornou livre em si mesmo, se transforme em
energia prática e saia como vontade do reino das sombras do Amênti
(mundo dos mortos no Antigo Egito) e se volte contra a realidade que
existe sem ele", ou seja, é a partir do morto que se constitui a vontade que se afirma no vivo que existe
sem o morto. Claro que o morto, antes de tudo, se imortalizou dentro de si
mesmo, caso contrário, não teria como sentir-se livre em si mesmo, ou seja, não
teria como sair da condição de morto preso em si mesmo, quer dizer, da
condição de apenas morrer em si mesmo para a de causar a mortalidade livre em
si mesmo, quer dizer, exigindo sair como mortalidade, melhor, vontade voltada
contra o vivo. E, como o vivo é mortal essa mortalidade que se lança sobre
o vivo e o consome é vital, vitalidade, vida que a mortalidade adquire no mundo
vivo. Esta é a tese. Esta é a crueldade.
Estou completamente perdido, completamente morto precisamente
porque o outro aspecto de permanecer morto é a recusa à crueldade, a causar a
mortalidade dos vivos, a recusa a ser "chama devoradora voltada para
fora", logo, a "chama devoradora voltada para dentro" é própria
do "espírito teórico que continua preso em si mesmo" e consumindo a
si mesmo e também o que o mundo guarda como morto nesse vazio, nesse mundo
morto, aliás, o que o mundo vivo tanto guarda quanto retira de morto desse
mundo morto. Esta recusa à crueldade acaba sendo uma aceitação de suportar e voltar a
crueldade contra eu mesmo.
Estou completamente perdido, completamente morto.
Crueldade do morto contra a vida em si e crueldade do morto contra
a vida fora de si. A crueldade do morto contra a vida em si só aceita/afirma e
interpreta a vida do mundo fora de si. A crueldade do morto contra a vida
fora de si só recusa/nega e muda a vida do mundo fora de si. A crueldade do
morto contra a vida em si se deprime e deixa encher com a vida do mundo
fora de si. A crueldade do morto contra a vida fora de si se anima e se lança a
esvair a vida do mundo fora de si. O morto contra a vida em si sucumbe (se mata
e morre) para que advenha a vida do mundo fora de si. O morto contra a
vida fora de si ressuscita para preencher com sua vida o mundo que mata e morre
fora de si.
Estou completamente perdido, completamente morto, mas também
completamente atraído e acorrentado à esperança de ressuscitar prometida
pela tese de Marx, ainda que permaneça me recusando a matar a vida do mundo
fora de mim e, desse modo, fiel à proposta de Nietzsche de que o humano sucumba
(se mate e morra) dentro de mim para que venha a ser a vida do mundo
super-humano fora de mim.
Estou completamente perdido, completamente morto, em completa
autocontradição, mas se, por acaso, me liberto de ficar indo contra a vida em
mim e vou contra a vida fora de mim, então me liberto da autocontradição,
afirmo minha unidade ou singularidade/minha vida e entro em contradição
com a vida fora de mim para afirmar minha vida fora de mim.
Estou completamente perdido, completamente morto, em completa
autocontradição, de modo que, necessariamente, me determino a ficar
indo contra a vida em mim e, por isso mesmo, sou a favor que a vida fora de mim
também contradiga a vida em mim, então me aprisiono na autocontradição, afirmo
minha dualidade ou universalidade/vida fora de mim e entro em contradição com a
vida dentro de mim para afirmar a vida fora de mim.
O pior de tudo para mim é que queria algo diferente disso. Queria
sair da condição de morto, logo, como vontade que se volta para fora de si, mas
não para promover a morte do mundo fora de si e sim para adquirir vida em
aliança/coincidência vital com outros que saem da morte dentro de si para
encontrar a vida fora de si. Eu assim resolveria o problema de estar morto
dentro de mim sem precisar matar a vida fora de mim para poder estar livre e
vivo dentro de mim e ainda livre e vivo no mundo fora de mim.
Porque não consigo? Porque estou completamente perdido, porque não
me encontro livre dentro de mim e, portanto, com vontade viva voltada para
fora, para o encontro e construção da liberdade viva fora de mim.
Aqui e agora, nesses últimos parágrafos, levantei ao acaso a
determinação de outra dramaturgia, nem marxiana nem nietzschiana. Será mesmo?!
Não é ilusão?! E se for ilusão, é ilusão de qual dessas dramaturgias, a
marxiana ou a nietzschiana?!
PLANEJAMENTO INICIAL:
UM MESMO DIFERENTE?!
“ Se constitui uma lei
psicológica que o espírito teórico, que se tornou livre em si mesmo, se
transforme em energia prática e saia como vontade
do reino das sombras do Amênti (mundo dos mortos no Antigo Egito) e se volte
contra a realidade mundana que existe sem ele. (Mas é importante, do ponto de
vista filosófico, especificar mais os lados desta relação, porque, a partir do
modo determinado desta conversão, a gente pode refletir a determinidade
imanente e o caráter histórico e mundial de uma filosofia. Nós vemos aqui, por
assim dizer, seu curriculum vitae reduzido ao essencial, trazido
até sua extremidade subjetiva.) Mas a prática
da filosofia é ela mesma teórica. É
a crítica que mensura da existência
singular até à essência, da realidade efetiva particular até à ideia. Mas esta realização imediata da filosofia é, segundo sua essência mais íntima, afligida
por contradições e esta essência que é sua toma forma no fenômeno e lhe imprime
seu selo. ” [tradução extraída de Karl Marx, DIFFÉRENCE DE LA PHILOSOPHIE DE LA
NATURE CHEZ DÉMOCRITE ET ÉPICURE, traduction, introduction et notes par Jacques
PONNIER, ÉDITIONS DUCROS, 1970, Bordeaux, France, p. 235]
Estou com meu espírito acorrentado à tese de Marx sobre os
atomistas gregos porque se trata, antes de tudo, duma tese sobre os antecedentes
da vida e antecedentes dessa vida que conhecemos, ou seja, da vida que é
mortal. E é aí que tomamos um susto porque a vida mortal é percebida como sendo
originada da morte imortal da seguinte forma: a morte é imortal, logo, a morte não morre, quer dizer, ela própria não morre, mas ela só é morte porque é morte
de algo que não é ela própria, ou seja, ela é morte da vida, morte de algo que
vive, logo, o algo que vive é também algo que morre, a vida mortal, portanto,
sendo a morte imortal ela está continuamente promovendo e produzindo a
mortalidade e a mortalidade só existe para a vida e não para a morte que é
imortal, por isso que a vida mortal pode ser vista como partícula, quantum,
átomo, fragmento etc. que escapa, foge, declina, desvia etc. da morte imortal.
Por isso também que nos deparamos com algo muito pouco habitual que é a
descrição de Marx da passagem da realidade teórica da filosofia para a
realidade prática do mundo como sendo a passagem do mundo dos mortos para o
mundo dos vivos, de modo que o morto sai do mundo dos mortos como vontade
prática voltada contra o mundo dos vivos e, assim, sua vontade prática com sede
de vida traz a mortalidade para o mundo dos vivos e a vitalidade para sua
condição de morto, ou seja, seu espírito livre em si mesmo, quer dizer, livre
no mundo dos mortos, significa dizer que seu espírito é livre em si mesmo por passar
da condição de morto para a de mortal, porque sai liberto da imortalidade com a
mortalidade em busca da vida, da vitalidade. Até parece um vampiro, um morto
que vive sugando o sangue dos vivos. Crueldade é o que parece existir aí nessa
assustadora descrição desse misterioso processo da vida mortal que é o chamado
de cadeia alimentar, de modo que a vida vive da mortalidade. Aqui isso aparece
invertido porque é a mortalidade que vem a viver trazendo a mortalidade e,
assim, cultivando, desenvolvendo e aumentando a vida. Mas, certamente, essa
descrição é a de uma guerra e também de uma tragédia posto que a morte imortal
está na base da vida mortal que dela escapa como vir a ser e eterno retorno,
como vir a ser em eterno retorno. Também é a descrição de uma travessia de um
fogo que, aceso, vai consumindo a ponte que o leva do mundo dos mortos até o
mundo dos vivos para então se apagar no mundo dos mortos, travessia e ponte que
Nietzsche atribuiu ao homem que sai do animal para chegar ao super-homem e
sucumbir voltando ao eterno retorno de vir a ser travessia e ponte. É isso que
me leva a trazer aqui uma referência à “Arte da Guerra”, de Sun Tzu.
“A Arte da Guerra”, de Sun Tzu (ver:
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Arte_da_Guerra).
“
A obra é composta por 13 capítulos:
- Planejamento Inicial (始計, pinyin:
Shǐjì)
- Guerreando (作戰, pinyin: Zuòzhàn)
- Estratégia ofensiva (謀攻, pinyin: Móugōng)
- Disposições (軍行, pinyin: Jūnxíng)
- Energia (兵勢, pinyin: Bīngshì)
- Fraquezas e forças (虛實, pinyin: Xūshí)
- Manobras (軍爭, pinyin: Jūnzhēng)
- As nove variáveis (九變, pinyin: Jiǔbiàn)
- Movimentações (行軍, pinyin: Xíngjūn)
- Terreno (地形, pinyin: Dìxíng)
- As nove variáveis de terreno (九地, pinyin: Jiǔdì)
- Ataques com o emprego de fogo (火攻, pinyin: Huǒgōng)
- Utilização de agentes secretos (用間, pinyin: Yòngjiàn)”
O primeiro capítulo é muito similar a essa passagem que
coloca a filosofia no mundo do espírito e permanecendo no mundo do espírito
como teoria até se sentir e perceber livre em si mesmo como teoria, quer dizer,
se sentir e perceber disposto para a prática. O primeiro capítulo, na citação
chamado de planejamento inicial, pode ser visto como a instituição do mundo do
espírito e/ou do cálculo das possibilidades abstratas, quer dizer, pode ser
visto como a instituição do Estado-Maior e é daí que, depois de se sentir e se
perceber a melhor das possibilidades abstratas, sai como estratégia a vontade
prática voltada contra o mundo que existe sem seu espírito.
Quando se sente e percebe livre em si mesmo o espírito “se
transforma em energia prática, sai como vontade do reino das sombras do mundo
dos mortos e se volta contra a realidade mundana que existe sem ele”, mas “o
espírito teórico que se tornou livre em si mesmo” pode ser, diria Nietzsche, o
do senhor ou o do escravo, pode ser apolíneo ou dionisíaco. Já Marx,
considerando os polos dessa conversão, a filosofia e o mundo, a teoria e
prática, diz que existe um percurso da conversão da filosofia teórica em
prática mundana e que este percurso começa na conversão inicial do espírito
teórico em espírito livre em si mesmo e, por isso, é aí que se pode especificar
o “modo determinado desta conversão” através do qual “se pode refletir a
determinidade imanente e o caráter histórico e mundial de uma filosofia”, ou seja, o
caminho percorrido pela filosofia teórica convertida em prática mundana pode
ser melhor medido pelo quantum da determinidade imanente do espírito teórico se
converteu em espírito livre, quer dizer, pelo quão intensa foi a conversão do
espírito teórico em espírito livre para que se possa desde aí avaliar a extensão
do caráter histórico e mundial que sua filosofia percorrerá na conversão em realidade
prática. Significa que o desenvolvimento da realização prática da filosofia
depende do quão livre em si mesmo o espírito teórico se tornou antes de se
transformar em energia prática que sai do mundo dos mortos voltada contra a realidade
mundana. É aí que a análise de Marx sobre os atomistas gregos se fixa na
diferença entre o espírito teórico que se torna livre em si mesmo por
determinismo ou necessidade e o espírito teórico que se torna livre em si mesmo
por criatividade ou acaso, ou seja, se a determinidade imanente do espírito
teórico se tornou livre por determinismo ou necessidade, então esta liberdade é
determinada/instintiva ou necessitada, quer dizer, limitada ou carente, mas se
foi por criatividade ou acaso, então esta liberdade é inventada/desejada ou
prazerosa, quer dizer, ilimitada ou plena; portanto, a conversão, do espírito
teórico em espírito livre em si mesmo de forma incompleta, também se transforma
em energia prática voltada contra a realidade mundana de forma incompleta,
enquanto que, é claro, a conversão, do espírito teórico em espírito livre em si
mesmo de forma completa, também se transforma em energia prática voltada contra
a realidade mundana de forma completa, ou seja, na conversão incompleta a
teoria filosófica permanece existindo de um lado e o mundo do outro, já na
conversão completa a teoria filosófica deixa de existir de um lado e o mundo
deixa de existir do outro lado e ambos coincidem em existir dum mesmo lado como
prática da liberdade, prática da criatividade, prática revolucionária.
Isso bem poderia
ser parte de um livro, mas eu também bem que poderia ser um outro. Porém, tudo
que verdadeiramente me interessa é que eu e o outro que eu poderia ser coincidamos
em ser um mesmo diferente e, por isso, isso é parte disso mesmo, desses
escritos para mim e para alguém.