Faz anos que tento compreender a tese de Marx sobre Demócrito e Epicuro que adotei como objeto (às vezes sujeito) da minha pesquisa do saber viver. Ela tem passagens que escapam à minha compreensão. Agora, essa sucessão de textos que parecem se ater exclusivamente ao título do blog, “singularidade/pluralidade”, abriu uma possibilidade de compreensão duma passagem muito significativa, mas, ao mesmo tempo, muito enigmática, pelo menos para mim, para minha muito simples e muito concreta capacidade de compreender e raciocinar.
Essa é a passagem:
"Enfin, cet être-dedoublé de la conscience de soi philosophique se présente comme la lutte de deux tendances, s'opposant entre elles de la manière la plus extreme, dont l'une, le parti libéral, ainsi que nous pouvons le designer en général, s'en tient, comme détermination principale, au concept et au principe de la philosophie, tandis que l'autre retient le non-concept, le moment de la realité. Cette deuxiéme direction est la philosophie positive. L'activité de la première est la critique, donc justamente l'acte de se-tourner-vers-l'extérieur de la philosophie; l'activité de la seconde est l'essai de philosopher, donc l'acte de se-tourner-en-soi de la philosophie, car elle conçoit le défaut comme immanent à la philosophie, tandis que la première le conçoit comme défaut du monde, qu'il s'agit de rendre philosophique. Chacun de ces partis fait précisément ce que l'autre veut faire et ce qu'il ne veut pas faire lui-même. Mais le premier a conscience, au sein de sa contradiction intime, du principe en général et de son but. Dans le second apparaît le travers, la folie pour ainsi dire, comme tel. Pour ce qui est du contenu, le parti libéral seul, parce que parti du concept, parvient à des progrès réels, tandis que la philosophie positive n'est à même que d'arriver à des exigences et à des tendances dont la forme contredit la signification ."
Vou traduzir, não porque domine o francês, mas porque não gosto de ler textos que me excluem com citações em línguas estrangeiras que não domino e, desse modo, me deixam de fora do círculo de sabidos e espertos que, assim, se intitulam sábios e experts ou especialistas. Vou traduzir por respeito a mim mesmo que desde muito cedo fui denominado simples, burro, oligofrênico, idiota por exemplares destas belas almas superiores tão soberbas.
“Enfim, este ser-desdobrado da consciência de si filosófica se apresenta como a luta de duas tendências, se opondo entre si da maneira mais extrema, onde uma, o partido liberal, assim como nós podemos designá-lo em geral, se atém, como determinação principal, ao conceito e ao princípio da filosofia, enquanto que o outro retém o não-conceito, o momento da realidade. Esta segunda direção é a filosofia positiva. A atividade da primeira é a crítica, logo justamente o ato de se-voltar-para-o-exterior da filosofia; a atividade da segunda é o ensaio de filosofar, logo o ato de se-tornar-em-si da filosofia, porque ela concebe o defeito como imanente à filosofia, enquanto que a primeira o concebe como defeito do mundo, que se trata de tornar filosófico. Cada um desses partidos faz precisamente aquilo que o outro quer fazer e aquilo que ele-próprio não quer fazer. Mas o primeiro tem consciência, no seio da sua contradição íntima, do princípio em geral e do seu fim. No segundo aparece o capricho, a loucura por assim dizer, como tal. Para aquilo que se refere ao conteúdo, só o partido liberal, por ser partido do conceito, alcança progressos reais, enquanto que a filosofia positiva só consegue mesmo chegar a exigências e a tendências cuja forma contradiz o significado [conteúdo].”
Acho, hoje, que a chave, para abrir a possibilidade que a tal sucessão de textos abriu agora, está na parte final da passagem. Foi sempre aí que senti a dificuldade em distinguir entre a presença da felicidade da sabedoria e a presença da tragédia da loucura. Porque? Porque quem se propõe, por exemplo, mudar o mundo, como é dito, é aquele que considera o mundo defeituoso e se entrega à crítica do mundo, já quem se propõe mudar (corrigir) a filosofia, também é dito, é aquele que considera a filosofia defeituosa e se entrega à (auto)crítica da filosofia. O problema é que a forma prometeica, por exemplo, é considerada a de quem muda o mundo para afirmar a liberdade da humanidade. Já a forma edipiana é vista como a de quem reconhece e muda o defeito da humanidade e, ao mesmo tempo, afirma e conserva a liberdade perfeita do divino mundo.
Na proposta de ditadura revolucionária do proletariado podemos ver inequívoca e claramente a forma edipiana, enquanto que vemos a forma prometeica inequívoca e claramente na proposta de eterno retorno da vontade de poder do super-homem. Como compreender isso? Tudo é tragédia e loucura sem felicidade nem sabedoria.
A proposta da ditadura revolucionária do proletariado difere da proposta edipiana porque se propõe destruir e dissolver o Estado na sociedade socializada/comum da Humanidade, enquanto que a edipiana se propõe destruir o poder de Édipo destituindo-o do Estado e dissolver Édipo na sociedade estrangeira/alheia expulsando-o de Tebas, então, quanto ao conteúdo, a primeira visa o fim do Estado e da sociedade privada/diferenciada da Nação.
A proposta do eterno retorno da vontade de poder do super-homem difere da proposta prometeica porque se propõe sucumbir a Humanidade ou a sociedade humana para a criação do Super-Homem com a Vontade de Poder em Eterno Retorno ou a criação da Nação do Super-Homem e do Poder do Estado que garante o Eterno Retorno do Super-Homem, enquanto que a prometeica se propõe sucumbir os Imortais ou a sociedade singular dos Imortais para a criação da Humanidade ou da sociedade comum dos Mortais, então, quanto ao conteúdo, a primeira visa o Retorno Eterno do Estado-Nação do Super-Homem ou do quase imortal, enquanto que a segunda visa a criação da Humanidade ou da sociedade comum dos Mortais.
O conteúdo da proposta da ditadura revolucionária do proletariado e da proposta prometeica co-incidem. E, o conteúdo da proposta do eterno retorno da vontade de poder do super-homem e da proposta edipiana também co-incidem. Então, os conteúdos que visam a maioridade humana são o da proposta prometeica e da ditadura revolucionária do proletariado, enquanto que os que conservam a menoridade humana são o da proposta edipiana e do eterno retorno da vontade de poder do super-homem. No entanto, ainda que o conteúdo da ditadura revolucionária do proletariado seja a proposta prometeica, já a sua forma é a proposta edipiana. Ao contrário, a forma do eterno retorno da vontade de poder do super-homem é a proposta prometeica, ainda que seu conteúdo seja a proposta edipiana.
Tudo isso, no entanto, está idealizado em excesso. Como se nosso mundo fosse o dos conceitos. E o problema é vivido no momento de realidade, no mundo positivo. É aí que quem quer mudar o defeito que é o mundo se lança na crítica do mundo e nessa prática-crítica de mudança do mundo aceita a sua própria mudança da filosofia para o mundo, logo, aceita mudar sua perfeição (conceitual) da filosofia para a sua perfeição (conceitual) do mundo. E que quem quer mudar o defeito que é a filosofia se fixa na crítica da filosofia e nessa teoria-crítica de mudança da filosofia exige a própria mudança do mundo para a filosofia, logo, exige mudar a perfeição (positiva) do mundo para a sua perfeição (positiva) da filosofia.
Traduzindo quem quer mudar o mundo se desloca da filosofia para o mundo e quem quer mudar a filosofia se fixa na filosofia e exige o deslocamento do mundo para a filosofia. Quem se desloca muda para mudar o mundo e quem se fixa não muda exigindo que o mundo mude. Quem muda para mudar o mundo ousa conquistar a maioridade e se abrir para o desenvolvimento da maturidade. Quem não muda exigindo que o mundo mude teima em ficar na menoridade, melhor, exibe a vontade de poder (o poder da vontade) da menoridade e se fecha no eterno retorno da infantilidade. [É sintomático que Marx considere os gregos aqueles que encarnaram a eterna infância da humanidade.]
Eu que iniciei este texto tomado pelo choro, passei a me proteger da dor com a continuidade do escrever indo para um plano conceitual, mas, ainda assim, de algum modo, consegui descer para o plano mais positivo do vivido, mesmo que o sofrimento tenha ficado apenas sugerido. Porque isso? Porque um dos assuntos dos últimos textos é conhecer a dor e não tão somente ignorar a dor.