domingo, 31 de agosto de 2014

LER O SI MESMO EM SI MESMO [6]





INTRODUÇÃO



Como fazer isso? Certamente que é fazendo do mesmo modo que se aprende a caminhar, a falar, a ler, a escrever etc. Fazendo, então, é claro.


Numa vertente eu leio as idéias, as teorias do si mesmo em si mesmo. Na outra vertente eu leio as materializações, as práticas do si mesmo em si mesmo.


Na vertente das idéias, das teorias do si mesmo que leio em mim mesmo o espírito teórico se desenvolve preso em si mesmo e se converte em vontade, em energia prática, em atividade sensível a favor do mundo que existe sem ele, ou seja, desenvolve teorias, melhor, autocríticas práticas que explicam, justificam e interpretam adequadamente a realidade mundana, quer dizer, autocríticas práticas que adaptam o espírito teórico à realidade mundana que existe sem ele desenvolvendo interpretações e modelos conformes a ela. E, na vertente das materializações, das práticas do si mesmo que leio em mim mesmo o espírito teórico se desenvolve livre em mim mesmo e se converte em vontade, em energia prática, em atividade sensível contra o mundo que existe sem ele, ou seja, desenvolve teorias, melhor, críticas práticas que contrariam, contestam e transformam efetivamente a realidade mundana, quer dizer, críticas práticas que adaptam a realidade mundana independente desenvolvendo transformações e efetivações sensíveis conformes ao espírito teórico.


Inicialmente aparece de um lado, o espírito teórico, e do outro, a realidade mundana. Em seguida, surge a vontade, a energia prática, a atividade sensível nascida do espírito teórico livre que é voltada contra a realidade mundana independente e aquela que nasce do espírito teórico preso que é voltada contra o próprio espírito teórico ou a favor da realidade mundana independente.


Na verdade, a cisão do espírito teórico e da realidade mundana pode ser resolvida de duas maneiras. Numa, o fim da cisão ou a unidade do espírito teórico e da realidade mundana se faz através da transformação do espírito teórico em realidade mundana ou da conformação da realidade mundana ao espírito teórico. Na outra, o fim da cisão ou a unidade do espírito teórico e da realidade mundana se faz através da conformação do espírito teórico à realidade mundana ou da transformação da realidade mundana em espírito teórico.


Na verdade mais específica, a cisão do espírito teórico e da realidade mundana é a unidade inicial, o ponto de partida e, por isso mesmo, do ponto de vista do espírito teórico, quer dizer, do ponto de vista da subjetividade (o espírito teórico) que, por um lado, se encontra dentro da objetividade (a realidade mundana) que o envolve e circunda e, por outro lado, se encontra fora da objetividade (realidade mundana) que o envolve e circunda por se encontrar em si mesmo na subjetividade (espírito teórico) envolvida e circundada pela objetividade (realidade mundana), se constitui numa unidade instável por ser uma subjetividade que está dentro da objetividade e, desse modo, está fora da objetividade e também por ser uma subjetividade que está fora da objetividade e, desse modo, está dentro da objetividade.


A forma da subjetividade estar dentro da objetividade é estando em si mesma e circundada fora de si mesma pela objetividade, mas, a forma da subjetividade estar fora da objetividade também é estando em si mesma e circundada pela objetividade fora de si mesma.


Então, a forma da subjetividade estar dentro da objetividade é estando em si mesma e circundada fora de si mesma pela objetividade e a forma da subjetividade estar dentro de si mesma também é estando em si mesma e circundada pela objetividade fora de si mesma.


Quando a subjetividade como espírito teórico sai de si como vontade, energia prática, atividade sensível que se afirma na objetividade fora de si que a circunda ela se objetiva dentro da realidade mundana.


Quando a subjetividade como espírito teórico entra em si como vontade, energia prática, atividade sensível que se afirma na subjetividade dentro de si ela se subjetiva fora da realidade mundana.


No primeiro caso, ela faz a passagem do espírito teórico para a realidade mundana, melhor, para a transformação da realidade mundana. E, no segundo caso, ela faz a passagem para a permanência do espírito teórico em si mesma, logo, para a manutenção da realidade mundana que a circunda.


Porém, no primeiro caso, onde há a transformação da realidade mundana pela atividade sensível objetiva do espírito teórico, este, como subjetividade dentro da objetividade, permanece dentro de si mesmo.


E, no segundo caso, onde há manutenção da realidade mundana pela atividade sensível subjetiva do espírito teórico, este, como subjetividade fora da objetividade, permanece dentro de si mesmo.


Em ambos os casos, o espírito teórico como subjetividade permanece dentro de si mesmo. Porém, como atividade sensível, o espírito teórico sai de si mesmo no primeiro caso e entra em si mesmo no segundo caso.


Então, a subjetividade se diferencia por meio da atividade sensível do espírito teórico, quer dizer, por meio da atividade sensível que se volta para fora, para a crítica e transformação da realidade mundana e da atividade sensível que se volta para dentro, para a autocrítica e transformação do espírito teórico. Ora, mas para a atividade sensível se voltar para fora e, portanto, sair livre do espírito teórico é preciso que ela se volte contra permanecer presa no espírito teórico. E, por sua vez, para a atividade sensível se voltar para dentro e, portanto, permanecer presa no espírito teórico é preciso que ela se volte contra sair livre do espírito teórico.


“Eu considero a virada para a não-filosofia duma grande parte da escola hegeliana como um fenômeno que acompanhará sempre a passagem da disciplina para a liberdade.”


A filosofia hegeliana é identificada com a disciplina e a virada desta para a não-filosofia é identificada com a liberdade. Só que esta virada pode ser uma afirmação da filosofia na não-filosofia ou uma afirmação da não-filosofia na filosofia. Pode ser o espírito teórico que sai livre da filosofia e se afirma como crítica e transformação da não-filosofia. E pode ser o espírito teórico que permanece preso na filosofia e se nega como autocrítica e conformação da filosofia à não-filosofia.


O espírito teórico livre em si mesmo é aquele que sai como atividade sensível voltada contra o mundo, quer dizer, é aquele que é levado pela atividade sensível voltada contra a realidade mundana como crítica e como transformação da mesma.


O espírito teórico preso em si mesmo é aquele que entra como atividade sensível voltada contra si mesmo, quer dizer, é aquele que traz o mundo como atividade sensível voltada contra si mesmo como autocrítica e como conformação à realidade mundana.


A atividade sensível voltada contra a realidade mundana carrega o conceito, no caso o conceito da filosofia hegeliana, quer dizer, a dialética, como crítica e transformação da realidade mundana.


A atividade sensível voltada contra o espírito teórico em si mesmo carrega a positividade, no caso a positividade da filosofia hegeliana, quer dizer, o idealismo, como autocrítica e conformação à realidade mundana.


No entanto, a filosofia hegeliana da qual partem ambas atividades sensíveis é o espírito teórico de ambas, logo, ela é o espírito teórico livre em si mesmo e o espírito teórico preso em si mesmo. Ela, portanto, desenvolveu as duas vertentes e, antes que ambas surgissem, foi a unidade que efetivamente realizou o desenvolvimento da crítica e da transformação mas sob a forma da Reforma, quer dizer, da autocrítica do espírito teórico em busca duma interpretação conforme à realidade mundana.


Noutras palavras, a mudança promovida pela Reforma foi uma mudança do espírito teórico católico para o espírito teórico protestante luterano, uma mudança da interpretação da religião cristã, uma mudança das idéias religiosas cristãs, uma libertação dos religiosos cristãos da submissão ao Papa Cristão e à sua Igreja Católica Apostólica Romana. Certamente que esta mudança estava ligada à invenção da imprensa por Gutemberg, bem como por sua publicação da Bíblia. A leitura direta da Bíblia viabilizou a interpretação de Lutero como diretriz do movimento da Reforma, ou seja, criou um corpo de idéias, uma doutrina, um movimento das idéias como um movimento real, o que veio a ser chamado de ideologia e duma ideologia religiosa que se realiza efetivamente como objetivação de suas idéias, quer dizer, é este movimento que está na fonte do idealismo alemão, o que significa dizer na fonte da objetividade ou da positividade do idealismo alemão, quer dizer, na base daquela identidade famosa, segundo a qual, “todo ideal é real e todo real é ideal”. Logo, o “idealismo é real e a realidade é idealista” foi o fio condutor da filosofia de Hegel até o espírito teórico idealista chegar ao saber absoluto, à sua realização máxima enquanto desenvolvimento do espírito, momento a partir do qual o espírito teórico absoluto não mais se desenvolve e, portanto, tampouco a realidade da prática do saber absoluto do espírito, seja esta prática compreendida como a monarquia absolutista prussiana ou como a democracia estadunidense norte-americana. O ponto culminante do idealismo de Hegel também é aquele que afirma o fim da história, logo, afirma o fim da dialética e a eternização absoluta da realidade e, desse modo, afirma o eterno retorno da realidade prática do fim da história.


É esta situação, duma dialética que chegou ao fim e dum idealismo que só pode idealizar o absolutismo prussiano ou o democratismo estadunidense, aquela na qual se encontra a escola hegeliana. Certamente que a direita hegeliana identificará o fim da história (e da dialética) e a realização do saber absoluto com o absolutismo prussiano, o centro hegeliano identificará o fim da história (e da dialética) e a realização do saber absoluto com combinações do absolutismo prussiano e do democratismo estadunidense (até porque em ambos o protestantismo é presença forte e decisiva) e, enfim, a esquerda hegeliana identificará o fim da história (e da dialética) bem como a realização do saber absoluto com o democratismo estadunidense.


Esta última tendência, a da esquerda hegeliana, é a que mais deseja a positividade do fim da história e da realização do saber absoluto, já que o status quo da Alemanha permanece sendo o absolutismo prussiano e nele o democratismo estadunidense existe muito mais como o ideal que é real, isto é, como o movimento dos hegelianos de esquerda que são a realidade (ou a ideologia) que quer o democratismo estadunidense, do que como o real que é ideal, ou seja, como o movimento da realidade do absolutismo prussiano que é a idealidade (ou a positividade/a materialidade) do querer efetivamente a democracia estadunidense na Alemanha. A esquerda hegeliana quer, portanto, o último movimento da dialética que é a afirmação da sua ideologia democrática como negação do absolutismo prussiano, o qual, por sua vez, desse modo, em troca, assume a “negação” da sua realidade absolutista prussiana como afirmação da materialidade democrática.


Mas, nessa realização do saber absoluto e do fim da história houve uma quebra da dialética idealista, de modo que apesar do ideal ser real, no caso movimento ideológico democrático, e de o real ser ideal, movimento da materialidade democrática absolutista prussiana, eles se encontram cindidos e, desse modo, o ideal permanece limitado ao seu ser realmente apenas ideologia e o real permanece limitado à sua consciência de ser realmente apenas materialidade. De um lado, cada vez mais, se concentra a ideologia democrática e, do outro, cada vez mais, a materialidade absolutista prussiana da democracia.


E, no entanto, o lado ideológico permanece querendo se apoderar do lado material para nele se realizar por completo e, por sua vez, o lado positivo permanece querendo se apoderar do lado ideológico para nele se idealizar por completo. A ideologia democrática quer ser a realidade do poder político prussiano e a realidade absolutista prussiana quer ser o ideal da ideologia democrática.


Ambos os lados estão em luta pelo poder de se afirmar um no outro. A ideologia democrática quer deixar de ser ideologia e se tornar prática e a prática absolutista prussiana quer deixar de ser prática e se tornar ideologia.


E é o querer virar prática que abrange os hegelianos de esquerda e Marx. E o problema do virar prática ou do vir a ser real é precisamente a compreensão idealista desta dialética. Na compreensão idealista o ideal se torna real e o real se torna ideal. E, no entanto, é precisamente isto que se quebrou de modo que o ideal real não consegue sair de sua condição de ideologia e o real ideal não consegue sair de sua condição de poder positivo. De contrários que, durante toda a vigência da dialética idealista, se transformavam um no outro, eles, com a chegada do saber absoluto e do fim da história, passaram a contrários que resistem um ao outro e persistem em permanecer em si mesmos. Na vigência da dialética idealista, o lado ideal real, a ideologia se apodera do lado real ideal, o poder positivo, e, desse modo, este último se transforma em ideal e, por usa vez, o lado real ideal, o poder positivo se apodera da ideologia, o lado ideal real, e, desse modo, esta última se transforma em real. Com a quebra deste vir a ser a insistência nesta via idealista do vir a ser implica em cada lado sair desta persistência no seu ensimesmamento, o que, na condição de permanência em si mesmos na qual se encontram, significa que a ideologia passa a ter por ideação o poder positivo, logo, cede à prática do poder positivo que quer se tornar ideologia e que, por outro lado, o poder positivo passa a ter por prática a ideologia, logo, cede à realização da ideologia que quer se tornar poder positivo. Cede significa que, ainda que permaneça em si mesmo, entra em contradição consigo mesmo e passa a desenvolver uma nova ideologia, no caso a ideologia positivista, quer dizer, uma prática positiva ideológica, e um novo poder positivo, no caso o poder positivo negativista, quer dizer, uma ideologia ilusionista.


A solução da quebra do vir a ser é encontrar outra via para o vir a ser e é a partir da compreensão da quebra como sendo ela própria parte integrante da novidade do vir a ser que deixou de ser filosofia (ou prática) idealista e passou a ser prática (ou filosofia) materialista, de modo que os contrários não são mais dois lados do idealismo ou da filosofia e sim dois lados do mundo ou do materialismo. Nestas novas condições os contrários são dois lados do mundo, são dois reais que querem a supressão um do outro, que querem a dissolução um do outro, não querem fazer qualquer concessão, eles não querem sair de si mesmos e querem sim é que seus si mesmos saiam percorrendo livres onde antes estavam impedidos de percorrer.


É aqui que aparece a compreensão de Marx. Ele que seguiu Hegel no aprendizado da dialética compreendeu que o idealismo estava ultrapassado e era uma limitação do desenvolvimento da dialética, que esta não era mais tão somente o vir a ser do espírito e era sim o vir a ser da atividade sensivelmente humana, da prática, da matéria e não mais tão só da idéia, da teoria, do espírito. O ponto culminante do idealismo de Hegel, o saber absoluto e o fim da história do espírito, era igualmente o início do saber relativo e da continuidade da história da atividade sensivelmente humana, quer dizer, o início da vigência da prática materialista como via mais ampla do desenvolvimento da dialética.


Por isso que a dialética que ele aprendeu com Hegel é o conceito que quer se apoderar da atividade sensivelmente humana, logo, quer ser ideologia da atividade sensivelmente humana, quer dizer, ideologia da prática e não mais exclusivamente do poder positivo. Porém, quer ser ideologia da prática humana para se apoderar do poder positivo e suprimir o poder positivo. Não quer, como na tradição do idealismo alemão, fazer uma Reforma ou elevar ao poder positivo uma nova interpretação. Pelo contrário, quer, como nas novidades do materialismo inglês (inclusive estadunidense) e francês, fazer uma Revolução ou afirmar o poder de classe duma nova transformação.


Na atualidade é esta dialética materialista que está em baixa, que está tendo uma quebra, por ser aquela cujas realizações estão sendo todas sistematicamente dissolvidas. O materialismo está quebrado?! Este retorno ao Hegel do fim da história e do saber absoluto feito por Fukuyama indica o retorno e a vigência do idealismo ou, ao contrário, indica a necessidade de retomar o materialismo que foi perdido no curso da história, ou, finalmente, indica que nem o idealismo nem o materialismo são atualmente as vias do vir a ser, logo, a dialética teria por fio condutor uma outra prática que não é idealista nem é materialista, seria isso?!


domingo, 24 de agosto de 2014

Para poder ler o si mesmo em si mesmo [5]




“É chegada a hora de olhar para o problema nele mesmo, isto é, em si mesmo e sem recorrer a Marx, Nietzsche, Foucault, Althusser. É hora de ousar e, por isso mesmo, de parar de escrever para cuidar de ler o si mesmo em si mesmo e, depois, voltar a escrever para cuidar de ser si mesmo em si mesmo.”


Vamos ler tudo que já escrevemos sobre o si mesmo e tentar resumir para poder usar na atividade de ler o si mesmo em si mesmo.


Hegel chegou com sua dialética do idealismo objetivo ao espírito absoluto e, desse modo, ao fim do desenvolvimento do espírito. Chegou também à aceitação da monarquia absoluta prussiana como fim da história, mas Fukuyama defende, a partir da leitura de Kojève, que o fim da história para Hegel era a democracia dos Estados Unidos. Pode-se supor que Hitler foi o último defensor do absolutismo prussiano porque perdeu a guerra para a democracia estadunidense e, se supor também, que, desse modo, se resolve a dúvida que Hegel deixou para seus leitores quanto ao fim da história coincidente com o saber absoluto do espírito ser o absolutismo prussiano ou ser a democracia estadunidense.


Marx, por exemplo, na sua “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” e na “Questão Judaica”, diz que a Filosofia do Direito de Hegel, uma obra do espírito teórico alemão, é a única realidade alemã contemporânea às realidades das sensibilidades práticas efetivamente existentes na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, portanto, apenas o mundo dos sonhos do espírito teórico do idealismo objetivo de Hegel é contemporâneo à realidade dos países do mais avançado desenvolvimento histórico e, por isso, também, toda a restante realidade alemã é anacrônica.


Marx queria que este avanço presente na Filosofia do Direito de Hegel saísse da sua morada no espírito teórico e entrasse na realidade alemã se efetivando nela como realidade contemporânea por meio da supressão do anacronismo e transformação de sua realidade em contemporânea. O que ele não admitia era que o espírito teórico da filosofia hegeliana permanecesse fixo em sua moradia em si mesmo, permanecesse uma realidade do mundo dos sonhos ou das idéias do espírito alemão, portanto, acessível à consciência teórica do alemão mas inteiramente separado de sua consciência prática, de sua realidade sensível, material.


Foi aí que Marx analisou a realidade contemporânea da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos comparando-a com a da Alemanha e descobriu que nos países de realidades sensíveis contemporâneos à realidade espiritual alemã existiam atividades sensíveis práticas que materializavam tudo aquilo que era apenas idealizado na Alemanha. Tais atividades sensíveis eram praticadas pelas classes sociais através de lutas políticas sociais. Ele descobriu que a classe proletária nos países de avançado desenvolvimento estava promovendo a efetivação sensível da mais avançada materialização social, quer dizer, a efetivação sensível duma nova sociedade. Comparou as classes existentes nos países avançados com as classes existentes na Alemanha e descobriu que a Alemanha precisava tornar realidade sensível a filosofia do direito de Hegel, quer dizer, realizar efetivamente o direito da sociedade capitalista da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, ou seja, efetivar a revolução burguesa,e que não podia contar com a classe burguesa para fazê-lo. Aliás, não podia contar com nenhuma classe da sociedade para fazê-lo e só podia contar com uma classe que não era considerada uma classe da sociedade, o proletariado, logo, precisamente aquele que, nos países avançados, estava efetivando a revolução proletária socialista, seria capaz de realizar efetivamente a filosofia do direito de Hegel ou a revolução burguesa na Alemanha.


O proletariado alemão era a atividade sensível capaz de encarnar na realidade do mundo o espírito teórico da filosofia do direito de Hegel. Esta encarnação foi vista por Marx como passagem do espírito teórico preso em si mesmo e que, por isso, só se encarna como espírito teórico, como realidade objetiva do mundo das idéias ou do idealismo, para o espírito teórico livre em si mesmo e que, desse modo, se encarna como atividade sensível, como realidade objetiva do mundo das materializações ou do materialismo.


O proletariado, a classe ameaçadora da sociedade burguesa porque identificada como capaz de encarnar o espectro do comunismo que rondava a Europa, era a classe que efetivamente realizaria a revolução burguesa na Alemanha.


E o que fez o proletariado na época da Associação Internacional dos Trabalhadores? Uma revolução proletária? Depende. De modo geral, a Internacional levou ao reconhecimento legal dos sindicatos e, principalmente, dos partidos dos trabalhadores. De modo específico, a Internacional só foi identificada como propiciadora da revolução proletária na França com a efêmera e simbólica Comuna de Paris. Aliás, o mesmo veio a ocorrer na Rússia com os efêmeros e simbólicos Sovietes.


Então, de um modo geral, a atividade sensível do proletariado permaneceu sendo efetivamente capaz de encarnar a revolução burguesa ou a realização da filosofia do direito de Hegel. E, de modo específico, como atividade sensível do proletariado voltado para a encarnação do seu próprio espírito livre, quer dizer, da sua própria revolução proletária, esta classe, melhor, esta atividade sensível tem mostrado que seu espírito teórico está preso em si mesmo, mas, por outro lado, o proletariado é compreendido e concebido antes de tudo como uma atividade sensível e não como um espírito teórico, mais claramente: o proletariado é concebido como espírito teórico livre em si mesmo, logo, efetivamente como atividade sensível, prática e encarnada nas materializações do materialismo e não nas idéias do idealismo. Aliás, o espírito teórico preso em si mesmo, o idealismo hegeliano, por exemplo, concebe teoricamente aquilo que existe sensivelmente na França, Inglaterra e Estados Unidos, ou seja, seu ideal foi real antes nestes países e, portanto, seu ser sensível real precedeu sua consciência espiritual racional.


O importante é notar que a atividade sensível proletária tem encarnado muito mais o espírito teórico livre em si mesmo burguês do que o espírito teórico livre em si mesmo proletário. A atividade sensível proletária tem encarnado o espírito teórico livre em si mesmo burguês e mantido desencarnado o espírito teórico preso em si mesmo proletário.


Este problema foi refletido por Edward Bernstein como uma mudança feita pelo próprio proletariado que estava mudando da atividade industrial para a atividade de serviços e, assim, ia abandonando as cooperativas de produção e se entregando às cooperativas de consumo, ou seja, abandonando a socialização dos meios de produção e se concentrando na socialização dos meios de consumo. E essa mudança também era uma mudança da revolução socialista para a reforma socialista, porque a socialização dos meios de produção exigia uma mudança revolucionária na sociedade capitalista baseada na apropriação privada dos meios de produção, enquanto que a socialização dos meios de consumo exigia apenas uma reforma na sociedade capitalista. Bernstein concluiu que o proletariado tinha mudado o programa socialista dum programa revolucionário para um programa reformista, mudado do socialismo revolucionário para o socialismo evolucionário ou reformista por ter adotado todo o ideário democrático do liberalismo burguês adaptando-o aos seus interesses de mudanças sociais progressivas.


Karl Kautsky criticou Edward Bernstein a partir da consideração feita por Marx e Engels, segundo a qual, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, logo, o dominante é a atividade sensível proletária encarnar o espírito teórico livre burguês em si mesmo. E, a seu ver, como explicitaram Marx e Engels numa passagem do Manifesto, é a fração burguesa dos ideólogos que cai nas fileiras do proletariado que traz a ciência para o desenvolvimento de sua prática revolucionária. Kautsky defendeu que cabia aos intelectuais saídos da burguesia e organizados no partido dos trabalhadores a tarefa de esclarecer cientificamente e de dirigir politicamente tanto os trabalhadores filiados ao partido quanto aqueles influenciados pelo partido.


Lênin, fazendo uso da posição de Kautsky, desenvolveu o partido como organização dos revolucionários profissionais, ou seja, o partido se diferenciava nitidamente dos sindicatos e outras organizações criadas pelos trabalhadores, porque tanto uns quanto outras eram apropriados para o exercício das atividades espontâneas do proletariado, as quais, em geral, eram economicistas, mas, em determinadas ocasiões, também podiam ser revolucionárias, porém, revolucionárias de caráter espontâneo, porque, afinal, o proletariado é a classe social espontaneamente revolucionária. Já a organização dos revolucionários profissionais era uma organização das atividades revolucionárias de caráter refletido, das atividades revolucionárias planejadas e praticadas profissionalmente. A organização dos revolucionários profissionais se constituía num Estado-Maior dos revolucionários profissionais que cuidavam de desenvolver todas as capacidades e de satisfazer todas as necessidades da revolução, do processo revolucionário. Desse modo, o espírito teórico livre em si mesmo se encarnava como vontade, energia prática, atividade sensível do revolucionário profissional do partido proletário socialista. Não se tratava mais de ser simplesmente a atividade sensível proletária ou de um trabalhador, a respeito do qual teorizou Bernstein, nem de ser simplesmente a atividade sensível da fração dos ideólogos do partido proletário, porque agora se tratava de ser a atividade sensível do revolucionário profissional do proletariado. Originalmente o revolucionário profissional podia ser um trabalhador proletário ou um membro da fração dos ideólogos proletários, porém, só quando se tornava um profissional da revolução que passava a participar do Estado-Maior da revolução ou da organização dos revolucionários profissionais, isto é, do partido revolucionário do proletariado.


O partido, a partir de Lênin, pretendeu ter solucionado o problema do desvio espontâneo do proletariado para a ideologia dominante capitalista. No entanto, por mais revolucionárias que tenham sido as ações dos revolucionários profissionais, do Estado-Maior da revolução, do partido profissional revolucionário do proletariado em nada impediram que as revoluções que se efetivaram se desenvolvessem no rumo do retrocesso ao capitalismo e que nelas as organizações espontâneas do proletariado, como, por exemplo, os sovietes da revolução russa, fossem efêmeras e meramente simbólicas.


Permanece sem solução o problema do espírito teórico do proletariado em si mesmo. A ideologia dominante tem mostrado que o proletariado ter encarnado com muita facilidade e habilidade o espírito teórico livre em si mesmo da burguesia e também o espírito teórico livre em si mesmo do reformista, da fração dos ideólogos, do revolucionário profissional, do anarquista e também da direita fascista, nazista, enfim, tal qual aparece no Manifesto do Partido Comunista, são vários os espíritos que chamam o proletariado para encarnar a luta de classes, mas, por sua vez, também é dito no Manifesto que só quando o proletariado organiza a si mesmo em classe é que ele também se organiza em partido. E ele se organiza em classe quando, por exemplo, luta pela redução da jornada de trabalho e quando, por exemplo, a conquista, porque, durante a luta, organiza sua união em classe e porque, com a conquista da redução da jornada de trabalho, libera parte considerável do tempo dos trabalhadores para a sua organização em partido.


A disciplina da burguesia, a economia política, se tornou o principal foco da crítica de Marx e Marx se tornou a principal fonte da ciência revolucionária do proletariado. A realidade mundana capitalista se expressa na economia política e o espírito teórico de Marx livre em si mesmo se converte em vontade, em energia prática, em atividade sensível voltada contra a ou em crítica da realidade mundana que existe sem ele. No entanto, esta atividade sensível crítica se identifica com a atividade sensível prática do proletariado e adota o ponto de vista prático do proletariado como ponto de partida da sua própria atividade crítica.


Esta identidade, da atividade crítica de Marx com o proletariado, quando não se verifica, leva os críticos identificados com Marx a acusar o proletariado de aburguesamento, de aristocratização, de ser parte duma nova classe etc.


Aquilo que estou me propondo fazer também me parece ser aquilo que o proletariado necessita fazer, ou seja, cuidar de ler o espírito teórico em si mesmo, de lê-lo tanto em sua prisão em si mesmo quanto em sua liberdade em si mesmo, porque conseguindo ler o espírito teórico preso em si mesmo certamente se estará racionalizando a vontade, a energia prática, a atividade sensível real em outros lugares e conseguindo ler o espírito teórico livre em si mesmo se estará realizando a vontade, a energia prática, a atividade sensível racional no lugar mesmo no qual se encontra, no seu próprio espaço-tempo, quer dizer, em si mesmo.


“É chegada a hora de olhar para o problema nele mesmo, isto é, em si mesmo e sem recorrer a Marx, Nietzsche, Foucault, Althusser. É hora de ousar e, por isso mesmo, de parar de escrever para cuidar de ler o si mesmo em si mesmo e, depois, voltar a escrever para cuidar de ser si mesmo em si mesmo.”


sábado, 23 de agosto de 2014

Continuando na busca de si mesmo [4]




O espírito teórico, que se tornou livre em si mesmo, seguindo uma lei psicológica, sai como vontade do reino das sombras do Amênti e se volta como atividade sensível contra a realidade mundana que existe sem ele.


O espírito teórico, que se tornou prisioneiro em si mesmo, seguindo uma lei psicológica, entra como vontade no reino das sombras do Amênti e se volta como atividade sensível contra a realidade espiritual que existe nele mesmo.


O espírito teórico liberto em si mesmo é aquele que se encarnou por completo como vontade viva da atividade sensível voltada contra a realidade mundana que existe sem ele.


O espírito teórico prisioneiro em si mesmo é aquele que não se encarnou por completo e no qual a vontade da realidade mundana entra como atividade sensível espiritual que se volta contra a realidade espiritual que existe nele mesmo.


O liberto é aquele que conseguiu a afirmação plena de si mesmo transformando a realidade mundana. E o prisioneiro ou escravo é aquele que conseguiu a afirmação plena da realidade mundana variando ou mudando a interpretação de si mesmo.


Ambos, tanto o liberto e afirmador ou senhor de si, quanto o prisioneiro e negador ou escravo de si, estão relacionados ou referenciados ao espírito teórico em si mesmo, ou seja, à filosofia ou ao sistema teórico de um mestre. E a relação ou referência de Marx e dos jovens de esquerda de sua época é a Hegel.


Aqui ocorre algo significativo.


Marx se tornou hegeliano contra sua vontade, melhor, foi só depois de ter escrito um sistema metafísico contra Hegel e ter descoberto que seu sistema terminava onde o de Hegel começava, ou seja, após ter descoberto que se encontrava atrasado no espaço-tempo em relação a Hegel se situando aquém dele, então, descobriu que tinha de aprender com Hegel, com o espaço-tempo dele situado além do seu atraso e que só poderia avançar para além de Hegel aprendendo com Hegel.


Marx critica os jovens hegelianos por terem aderido “com entusiasmo a todas suas determinações unilaterais” e argumenta que “se eles foram realmente seduzidos pela ciência que receberam inteiramente pronta ao ponto de se assenhorear dela com uma confiança ingênua e não crítica, então manifestam sua falta de consciência ao reprovar o mestre por nutrir uma intenção escondida detrás de sua pesquisa, logo ele para quem a ciência não estava inteiramente feita, mas em vir a ser, ele cujo coração espiritual mais íntimo não cessa de bater enquanto não tiver atingido os limites extremos desta ciência. Eles lançam antes a suspeita sobre eles-mesmos e fazem crer que antes não levavam a coisa a sério; é seu próprio estado passado que eles combatem, parecendo atribuí-lo inteiramente a Hegel, mas esquecem, fazendo isso, que ele estava numa relação imediata e substancial com seu sistema, enquanto que eles estão, em relação a este sistema, reduzidos a uma relação de reflexão”.


“Que um filósofo cometa esta ou aquela inconsequência sob o império desta ou daquela acomodação é pensável; ele mesmo pode ter consciência disso. Mas aquilo de que ele não tem consciência é que a possibilidade desta acomodação aparente tem sua raiz mais íntima numa insuficiência ou numa compreensão insuficiente do seu princípio ele mesmo. Então, se um filósofo tiver realmente se acomodado, seus discípulos deverão explicar a partir da consciência íntima e essencial deste filósofo aquilo que revestia para ele mesmo a forma duma consciência exotérica. Desta maneira aquilo que aparece como um progresso da consciência é ao mesmo tempo um progresso da ciência. Não se suspeita da consciência particular do filósofo, mas se constrói a forma essencial da sua consciência, elevando-a a uma figura e significação determinadas e assim, ao mesmo tempo, se a ultrapassa”.


Contrariado, Marx se tornou discípulo de Hegel, enquanto que, entusiasmados, os jovens de esquerda se tornaram discípulos de Hegel.


Estes se perceberam contrariados pelos sistema de Hegel e o acusaram de ter intenções ocultas, de ser mal-intencionado. Enquanto Marx se mostra entusiasmado com o filósofo “cujo coração espiritual não cessa de bater até que tenha atingido os limites extremos de sua ciência”.


Os jovens hegelianos de esquerda acusaram Hegel de ter sido inconsequente por ter se acomodado e por ter consciência disso, de modo que passaram não só a suspeitar mas também a rejeitar a consciência particular do filósofo.


Marx aceitou que Hegel tenha sido inconsequente por ter se acomodado e aceitou também que ele tivesse consciência disso, mas atribuiu a inconsequência da acomodação e a própria consciência dela ao desenvolvimento insuficiente ou à falta de consciência suficiente do seu próprio princípio. E, desse modo, passou a explicar a inconsequência da acomodação e a própria consciência do filósofo da inconsequência da acomodação a partir da compreensão e aceitação da consciência particular do filósofo. Assim, a consciência íntima e essencial do filósofo ficou devidamente caracterizada como uma figura do idealismo limitada à significação idealista que sua época teve da dialética. A inconsequência da acomodação e a própria consciência do filósofo desta inconsequência da acomodação se deviam ao idealismo próprio da consciência particular, íntima e essencial do filósofo a respeito do seu princípio, a dialética. E, para esta consciência idealista da dialética a consciência materialista era uma forma exotérica. E Marx, portanto, tratou de assumir e desenvolver a consciência, a compreensão ou o desenvolvimento materialista da dialética ou do próprio princípio do qual Hegel partia.


Os jovens hegelianos de esquerda também se voltam para a não-filosofia, para a prática, para o materialismo por meio do desprezo da consciência idealista de Hegel e, portanto, também querem a atividade sensível, materialista, prática, positiva. E é aqui que repetem a inconsequência da acomodação de Hegel num grau muito maior que o do próprio Hegel. A inconsequência da acomodação de Hegel da qual ele próprio tem consciência é o encontro duma pedra no caminho, melhor, de algo positivo, prático, material, sensível que resiste e impede o avanço consequente de sua dialética idealista e que, por isso, ele adota a inconsequência e nela se acomoda.


Marx se volta para a não-filosofia, para a prática, para o materialismo por meio da aceitação e compreensão da consciência idealista de Hegel como uma limitação da dialética que estanca ao encontrar uma pedra no caminho, quer dizer, ao encontrar algo positivo, prático, material, sensível que resiste e impede o avanço consequente da dialética. Ora, esta pedra, positividade, prática, materialidade, sensibilidade que impede o avanço da dialética é uma limitação da consciência idealista da dialética, portanto, o desenvolvimento materialista da dialética vai criticar, dissolver ou transformar a pedra, a positividade, a prática, a materialidade, a sensibilidade de forma irresistível e liberadora do avanço consequente da dialética no materialismo.


Enquanto os jovens hegelianos de esquerda querem se voltar para a não-filosofia desenvolvendo a positividade (aceitação/acomodação) e rejeitando a negatividade (crítica), já Marx se volta para a não-filosofia desenvolvendo a crítica (negatividade) e rejeitando a positividade (acomodação/aceitação).


São duas concepções de prática que se apresentam. Uma repete a limitação de Hegel e, portanto, repete a efetivação dos diversos momentos do sistema de Hegel. A outra cuida de superar a limitação de Hegel e, portanto, avança na realização libertadora da totalidade do sistema de Hegel.


No entanto, é preciso compreender que, do ponto de vista materialista, o espírito teórico, que se tornou livre em si mesmo, se converteu em vontade, energia prática, atividade sensível voltada contra a realidade mundana que existe sem ele, ou seja, é preciso compreender que, do seu ponto de vista, não se trata mais do desenvolvimento do espírito e sim do desenvolvimento livre da atividade sensível transformadora do mundo.


Por sua vez, é preciso compreender que, do ponto de vista idealista, o espírito teórico, que permanece preso em si mesmo, deixou a realidade mundana, que existe sem ele, se converter em vontade, energia prática, atividade sensível espiritual voltada contra o espírito teórico existente em si mesmo, ou seja, é preciso compreender que, do seu ponto de vista idealista, se trata sim, mais uma vez, de um desenvolvimento do espírito, mas de um outro desenvolvimento do espírito que interprete de maneira mais fiel a realidade mundana aceitando-a tal e qual, como pedra no caminho e fim da dialética.


Para o materialista o que importa é transformar o mundo, quer dizer, é o livre desenvolvimento da atividade sensivelmente humana, da prática transformadora e não subjetiva, logo, quer dizer, objetiva, material.


Para o idealista o que importa é interpretar o mundo de diferentes maneiras, quer dizer, é prender-se ao desenvolvimento da atividade sensível do espírito, da interpretação teórica e não objetiva, logo, quer dizer, subjetiva, ideal.


Mesmo assim, só alcança o desenvolvimento do ponto de vista materialista quem liberta o espírito teórico em si mesmo, bem como só consegue o desenvolvimento do ponto de vista idealista quem aprisiona o espírito teórico em si mesmo.


Liberto e senhor de si mesmo versus prisioneiro e escravo de si mesmo. Hegel era liberto e senhor de si mesmo porque na sua época o idealismo era o desenvolvimento imediato e substancial da dialética, já seus discípulos estão numa outra época e nesta o idealismo não é mais o desenvolvimento imediato e substancial da dialética, até porque eles se encontram numa relação de reflexão em relação a Hegel, portanto, precisam pela reflexão e mediação de Hegel alcançar o materialismo como nova forma de desenvolvimento imediato e substancial da dialética.


A época atual, na qual os discípulos de Marx estão todos, em geral, em maior ou menor grau, retrocedendo em todas as aplicações de suas propostas de transformação do mundo capitalista para a conformação e desenvolvimento do mundo capitalista, é adequada para perguntar se todos estes discípulos de Marx tiveram a mesma atitude que tiveram os jovens hegelianos em relação a Hegel ou, pelo contrário, todos eles tiveram a mesma atitude que teve Marx em relação a Hegel?!


Certas determinações da consciência particular de Marx foram desprezadas em nome da urgência imposta pela positividade?! Ou, ao contrário, certas determinações da consciência particular de Marx foram aceitas e compreendidas de modo que foram ultrapassadas pelas determinações da nova consciência particular mais elevada que superou a ciência de Marx ou da época de Marx?!


Se pode citar aquilo que foi proposto primeiro por Edward Bernstein e chamado de reformismo e também de revisionismo e que atualmente desde o neoliberalismo, a globalização e “O Fim da História”, de Francis Fukuyama, parece vigorar por toda parte fazendo todos os discípulos que, até há pouco, aplicavam as propostas de transformação do capitalismo retrocederem para a conformação e desenvolvimento do capitalismo.


Se pode citar ainda aquilo que foi chamado de ultra imperialismo por Karl Kautsky, em oposição ao que foi chamado de imperialismo por Lênin & outros, como estando em vigor por toda parte junto com o neoliberalismo, a globalização, a superpotência (“pensamento único”) dos EUA etc.


Se pode citar ainda o próprio Marx por ter dito que suas propostas de transformação só seriam realizáveis nos países de capitalismo desenvolvido e que quando fossem aplicadas nos países de baixo desenvolvimento capitalista teriam por resultado o retorno do desenvolvimento acelerado do capitalismo, exceto no caso de se combinarem com a aplicação simultânea em países de capitalismo desenvolvido.


Se pode citar ainda o próprio Marx por ter dito que a ditadura revolucionária do proletariado era o meio de transição que levaria do capitalismo ao comunismo. E citar ainda que, para ele, a ditadura revolucionária do proletariado era um regime que destruía a máquina do Estado e que, portanto, se desenvolveria dissolvendo o Estado e não superdesenvolvendo o Estado como ocorreu nos ditos países do socialismo realmente existente.


Se pode citar ainda o próprio Marx por ter dito que a democracia, o regime democrático era concebido por ele como o último estágio antes do advento do que chamava de ditadura revolucionária do proletariado e que era um regime de participação social direta muito intensa e que destruía a máquina do Estado e toda participação social indireta, ou seja, era um aprofundamento da democracia ou era uma democracia muito mais efetivamente completa.


Porém, se o que se quer é conquistar o espírito teórico livre em si mesmo e, portanto, transformar o mundo, então é preciso desenvolver suficientemente ou compreender suficientemente o próprio princípio do qual se parte.


E, aqui, é possível optar, dada a distância no espaço-tempo, não mais pela compreensão da consciência particular do filósofo que forneceu o princípio, ou seja, é possível optar não mais pela compreensão de Hegel ou de Marx, mas sim pela compreensão da sua própria consciência particular, quer dizer, compreendendo o que é uma pedra no caminho, uma positividade, enfim, o que é transformável e de que forma.


Certamente que, desse modo, apenas se realizará a transformação de um momento ou de um aspecto da sua própria consciência particular, ou seja, se cairá no caminho dos jovens hegelianos de esquerda que, se desviando da reflexão, procuravam cortar caminho para a realização imediata, ingênua e não crítica de suas vontades.


Porém, também será igualmente possível desenvolver a compreensão de sua própria consciência particular através da reflexão daquilo que se encontra fora da consciência e que se visa transformar para ser liberto e senhor de si mesmo.


As duas vias se apresentarão por todo lado, por toda parte, nas mais diversas situações, incluindo aí, as menores e menos importantes, ou seja, o liberto e senhor de si mesmo versus o prisioneiro e escravo de si mesmo poderão surgir nas mais inesperadas e surpreendentes ocasiões, por isso que Nietzsche se faz presença incontornável na atualidade, já que ele não se ocupa com o desenvolvimento de um sistema social como, por exemplo, faz Marx, mas, pura e simplesmente, em afirmar onde puder o ser liberto e senhor de si mesmo bem como superar onde puder o ser prisioneiro e escravo de si mesmo. E, nesse sentido, o problema do si mesmo está permanente e diretamente posto por Nietzsche todo o tempo e ao alcance de qualquer um. Ainda que com Nietzsche exista, por sua vez, um novo problema, como observou Francis Fukuyama, e que é o problema do reconhecimento, ou seja, a exigência de ser considerado liberto e senhor de si mesmo pelo outro, logo, também de ser liberto e senhor do outro. E, com isso, retorna o problema da cisão do espírito teórico prisioneiro em si mesmo.


Apesar disso tudo, não é difícil perceber Nietzsche sendo usado, na atualidade, para promover espíritos teóricos livres em si mesmos e Marx sendo usado, na atualidade, para promover espíritos teóricos prisioneiros em si mesmos. O que leva a pensar que uma filosofia sem um sistema na atualidade permite que se chegue mais diretamente à liberdade, enquanto que uma filosofia com um sistema na atualidade impõe mais diretamente a prisão. Me refiro ao nietzschiano Foucault que, antes de morrer, se preocupou em deixar como legado o “cuidado de si”, enquanto que o marxista Althusser, antes de morrer, tratou de deixar como legado a “loucura” ou o “não cuidado de si” matando sua mulher. Com Foucault, Nietzsche sai do asilo de loucos e adentra como Marx no cuidado de si ou na emancipação de si, enquanto que, com Althusser, Marx entra no asilo de loucos e sai como Nietzsche do cuidado ou emancipação de si exigindo, mesmo na loucura, o reconhecimento de si.


É chegada a hora de olhar para o problema nele mesmo, isto é, em si mesmo e sem recorrer a Marx, Nietzsche, Foucault, Althusser. É hora de ousar e, por isso mesmo, de parar de escrever para cuidar de ler o si mesmo em si mesmo e, depois, voltar a escrever para cuidar de ser si mesmo em si mesmo.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Na busca de si mesmo [3]




"Se constitui na afirmação duma lei psicológica que o espírito teórico que se tornou livre em si mesmo saia das sombras do Amênti como vontade, energia prática, voltada contra a realidade mundana que existe sem ele." Karl Marx - tese de doutorado.




Ele fala duma lei psicológica atuando no espírito teórico que se tornou livre em si mesmo. Este espírito teórico está na psiquê e aí se tornou livre em si mesmo e, por isso, sai das sombras do Amênti (mundo dos mortos) e se volta contra a realidade mundana que existe sem ele, ou seja, ele sai da mente para o corpo e para os órgãos dos sentidos, quer dizer, para a sensibilidade e através da atividade sensível se volta contra a realidade sensível mundana que existe sem ele.


Esta lei psicológica é a mesma que converte o espírito teórico livre em si mesmo em espírito vivo da prática. É a liberdade em si mesmo que faz esta conversão do espírito teórico em vontade, em energia prática, que faz o espírito teórico sair do desencarnado mundo da morte para se converter em vontade e entrar encarnado na vida em luta contra a realidade mundana independente dele.


A liberdade sai do espírito teórico e se converte em vontade, em energia prática da atividade sensível, a liberdade se torna prática ou, como diz Marx na mesma observação de sua tese, "este é um fenômeno que acompanhará sempre a passagem da disciplina para a liberdade".


E, com isso, revela também que o espírito teórico preso em si mesmo está preso na disciplina, preso na filosofia e, portanto, não sai do mundo das sombras do Amênti. E, no entanto, o espírito teórico preso em si mesmo também se converte em vontade, em energia prática, mas, em lugar de ser uma vontade voltada contra a realidade mundana que existe sem ele, ele se converte numa vontade voltada contra a realidade espiritual existente nele mesmo.


Aquele espírito teórico livre em si mesmo se converte em vontade prática voltada contra o mundo que existe sem ele, se converte em liberdade da atividade sensível voltada contra a atividade sensível do mundo que existe sem ele.


Já aquele espírito teórico preso/disciplinado em si mesmo se converte em vontade prática voltada contra o espírito teórico que prende e disciplina em si mesmo, logo, se converte numa vontade prática que, no interior mesmo do espírito teórico disciplinado, se revolta e rebela contra si mesmo e, desse modo, infelizmente, sua cisão espiritual em si mesmo realiza efetivamente sua vontade prática contra o espírito teórico disciplinado em si mesmo sob a forma de espírito teórico rebelado e re-voltado contra si mesmo, ou seja, como vontade do espírito teórico disciplinado em si mesmo sendo combatida pela vontade do espírito teórico re-voltado contra si mesmo, portanto, sua vontade prática permanece dentro do mundo das sombras do Amênti, permanece prisioneira da atividade do espírito teórico, permanece filosofando ou realizando efetivamente o filosofar do espírito teórico preso em si mesmo.


Aquele que é um espírito teórico livre em si mesmo se converte em vontade prática ou converte a filosofia em atividade sensível voltada contra a atividade sensível do mundo.


Aquele que é um espírito teórico disciplinado em si mesmo se converte em vontade filosófica ou converte uma parte do espírito teórico ou filosófico existente em si mesmo em atividade espiritual teórica ou filosófica em si mesmo voltada contra a atividade espiritual teórica ou filosófica existente em si mesmo.


O espírito teórico livre, quer dizer, a atividade sensível voltada contra a atividade sensível do mundo independente de si mesmo desenvolve uma prática crítica da realidade mundana, desenvolve uma prática de transformação do mundo.


O espírito teórico prisioneiro, quer dizer, a atividade espiritual teórica em si mesmo voltada contra a atividade espiritual teórica existente em si mesmo desenvolve uma prática de cisão da realidade espiritual e, desse modo, uma prática de desenvolvimento de diferentes interpretações do mundo, como, por exemplo, na cisão íntima que diferencia e confronta o espírito teórico preso em si mesmo com o espírito teórico re-voltado contra si mesmo.


São dois espíritos teóricos, o da liberdade e o da disciplina, sendo que um constitui e desenvolve a si mesmo e o outro cinde a si mesmo e põe parte de si mesmo em confronto com outra parte de si mesmo.


É muito significativo que Marx, muito antes de Nietzsche, tenha se referido àqueles que procedem "moralmente", que "ressentem a identidade plástica de si mesmo com o sistema", àqueles que "não sabem que se voltando contra o sistema nada fazem senão realizar efetivamente seus diversos momentos", enfim, tenha se referido "ao espírito do ressentimento", como dizia Nietzsche, que promove "a revolta dos escravos (prisioneiros) na moral".


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Infelicidade [2]

É tudo muito deprimente e o que é mais deprimente é saber que não sou sequer um si mesmo.

Esta prática de escrever "para todos e para ninguém" está na verdade sintonizada com o totalitarismo, com o reducionismo de tudo a átomos e vazio.

Romper com esta prática é conseguir escrever "para mim e para alguém". É conseguir sintonizar com "ser um si mesmo", com o elevar os indivíduos à concretização da vitalidade.

Um espírito preso em si mesmo escreve de forma imperativa categórica, escreve "para todos e para ninguém", já que um espírito preso em si mesmo é um espírito absoluto por permanecer absolutamente preso em si mesmo. É um espírito impessoal, sem relações.

Um espirito livre em si mesmo escreve de forma afetiva livre, escreve "para si mesmo e para outrem", já que um espírito livre em si mesmo é um espírito relativo por sair relativamente livre de si mesmo. É um espírito pessoal, com afetivas relações.

Com certeza não sou um espírito livre, mas tampouco me interessa a infelicidade do espírito preso nesse mundo de múltiplas relações impessoais, de múltiplas prisões afetivas.

Talvez só tenha uma chance de vir a ser um espírito livre em mim mesmo e, talvez, seja exercitando o escrever para mim mesmo até que efetivamente escreva para alguém, mesmo que esse alguém venha a ser precisamente a conquista da capacidade de ser eu mesmo, já que, atualmente, como disse no início, "não sou sequer um si mesmo".

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Comentário a "no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem!' [B]

Leio no artigo do Roberto Da Matta (http://oglobo.globo.com/opiniao/uma-sociologia-da-morte-13663906) sobre a morte. E me parece que ela é muito mais presente do que parece. Ele diz que escreveu num livro que "no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem!" A mitologia nos fala dela através da figura de Cronos, a qual, por sua vez, será figura da morte desde a Idade Média (aquela com ancinho para ceifar a vida). Cronos, "aquele que come seus próprios filhos", é antes de tudo "o tempo que não pára e que come seus próprios filhos". Daí que fica estabelecida a conexão entre a morte imortal, ou que não morre, e seus filhos a vida mortal, ou a vida que sempre morre.

Foi com uma pedra que enganaram Cronos que a devorou no lugar de seu filho Zeus. Zeus é o raio, é o zás, zim, quer dizer, é o instante e, portanto novamente o tempo, mas o tempo do instante do presente, da vida que se afirma e que se afirma imortal, como instante que não passa e se eterniza. Foi Prometeu, aquele que prevê, quem roubou do raio eterno de Zeus apenas uma centelha e a incorporou na humanidade de modo que esta recuperou Cronos ou o tempo que não pára da morte imortal em sua relação com Zeus ou com o tempo intenso da vida imortal, ou seja, rompendo com Zeus possibilitou a vida mortal do tempo intenso e, mais do que isso, a vida mortal dentro do tempo intenso, ou seja, possibilitou o tempo do vir a ser, o futuro. O tempo de Cronos ou da morte imortal que não pára é a eternidade da morte que não morre e, por isso, é compreendido como fonte eterna do passado. O tempo de Zeus ou da vida imortal que pára na eternidade intensa do instante que não morre é compreendido como fonte do presente eterno, melhor, como fonte da eternização do presente ou de um modo vida, no caso, o da vida imortal dos deuses do Olimpo. O tempo de Prometeu ou da vida mortal que combina a sucessão de instantes vitais com a eternidade da morte imortal é compreendido como fonte do contínuo futuro, melhor, como fonte da continuidade da história ou da sucessão de vidas e modos de vida, quer dizer, como apreensão completa do tempo pela vida mortal, pelo vir a ser que, saindo do presente e adentrando no futuro, constitui o passado e um outro presente.

Este tempo de Prometeu, no entanto, é um tempo de quem tem o fígado devorado todos os dias, um tempo de um imortal que quer ser mortal, logo, um tempo da morte imortal que quer ser vida mortal. Prometeu é também aquele imortal que quer morrer pela vida mortal da humanidade e nisso se assemelha a Cristo ou àquele Deus ou filho de Deus que morreu pela salvação da humanidade. Aqui nós temos a tradição de Tiradentes - um quase Cristo - que morreu pela Independência do Brasil, de Zumbi - um quase "santo" ou espírito que se encarna -, de Getúlio - um trágico, um quase Prometeu que se suicida -, de Jânio - uma farsa, um quase Cronos que renuncia -, de Jango - um racional, um quase Zeus que sofre um golpe -, de Tancredo - um resistente quase presidente -, de Collor - uma farsa, um quase Cronos que sofre impeachment -, de Eduardo Campos - uma promessa de futuro, um quase Prometeu que é morto tragicamente -. Mas, aqui, os mortos são santificados e se encarnam nos terreiros. Em outros lugares existe a loucura de ser Napoleão ou quaisquer outros vultos da história, aliás, mesmo aqui, existe esta loucura quando o encarnar é querer ser o vulto da história, ou seja, desincorporar a si mesmo ou quem se é, mas, aqui, existe a outra possibilidade que é a de qualquer um encarnar os vultos da história, especialmente da história brasileira, sem ser o vulto da história e apenas emprestando seu corpo para interpretar-encarnar o vulto da história, logo, sem enlouquecer e também é possível que, por isso, aqui, "os mortos não morram!".

O trabalho de Marina é ser ela mesma e também o cavalo de Eduardo Campos.

domingo, 17 de agosto de 2014

Um texto saído da gaveta [A]

GOLPE OU REVOLUÇÃO

O governante ucraniano está dizendo que um golpe está em curso no seu país e que ele não vai renunciar (ver http://t.noticias.br.msn.com/mundo/parlamento-destitui-presidente-da-ucr%c3%a2nia-e-convoca-elei%c3%a7%c3%b5es-para-maio-1).

É muito curioso que a forma do processo deste golpe, segundo o presidente ucraniano, seja similar a uma revolução de tipo insurrecional, algo que remete para a revolução francesa e a revolução russa. Também é curioso que o mesmo processo, com características muito similares apesar das diferenças, esteja se passando na Venezuela. Também é bom lembrar duma outra curiosidade histórica (coincidência ou o quê?) em 1979 ocorreu a revolução sandinista na Nicarágua e a revolução islâmica no Irã enquanto no Brasil ocorria a Anistia. Agora, estão em curso golpes ou revoluções na Venezuela e na Ucrânia (depende do ponto de vista adotado?!) enquanto no Brasil ocorre o que na legislação? E, se ainda não ocorre nada, está em curso a ameaça duma legislação antiterrorista e qual o significado disto em relação à Anistia de 1979? Que, a partir de agora, os que cometeram crimes contra a humanidade não serão mais anistiados?! Ou que, como já dizia a Anistia, quem cometeu crime de sangue não seria anistiado?! Então, como podem ser anistiados os torturadores e assassinos da ditadura com base na lei que proíbe quem comete crime de sangue de ser anistiado/contemplado pela lei?! Significa, ao contrário, que a partir de agora haverá a criminalização dos movimentos sociais de modo que não possa existir no universo das manifestações nenhuma hipótese, mesmo que imaginária, como as que existem na Venezuela e na Ucrânia, de golpe ou revolução?!

Outra curiosidade: 79 é o ano do lançamento do Neoliberalismo pela Margareth Thatcher. O sandinismo era membro da Internacional Socialista e foi da França que Khomeini organizou sua revolução islâmica até entrar em solo iraniano. A UE está evidentemente no centro da instabilidade da Ucrânia e é o motivo de toda a instabilidade. Os EUA estão apoiando os insurretos na Ucrânia e sendo acusados de estar por trás dos insurretos da Venezuela. Na Nicarágua os EUA atuaram com os contra para desestabilizar os sandinistas e fizeram isto contando com o apoio clandestino do Irã islâmico. Estes islâmicos, num primeiro momento, entraram em confronto com os EUA e neste processo enfraqueceram a administração democrata de Carter e beneficiaram o retorno da administração republicana com Reagan. Ucranianos até agora não acusaram os EUA de estar por trás da insurreição, mas a Rússia tem sido vista como agente pró governo da Ucrânia e contra o Acordo com a UE. Em relação à Venezuela os EUA dizem não apoiar nenhum golpe, mas criticam o governo e pedem apoio dos países da OEA para conter o governo venezuelano e defender a democracia na Venezuela. López é opositor de Maduro de linha radicalmente insurrecional e ele é formado em Harvard, onde se formou Obama. Se conhecem?

Estamos aprisionados na linguagem e nos movimento promovidos/desenvolvidos/feitos por estas forças?! E nós existimos?! Quem somos?! Existimos com nossas forças?! Quais são elas?! Onde estão?! São visíveis?! São invisíveis?! São seres reais, práticos?! Ou são espectros, fantasmas que rondam o mundo?!

ÍNDICE DUMA GUINADA: AFEGANISTÃO

Duma maneira geral, os EUA sempre estiveram na posição do invasor durante o período da Guerra Fria. Mas, no Afeganistão quem estava nesta posição era a URSS e aí os EUA, ao que tudo indica pela primeira vez, assumiram uma posição e um papel que costumava ser precisamente aquele desempenhado pela URSS. Os EUA deram apoio à luta de guerrilhas de libertação nacional dos afegãos contra a URSS invasora. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_sovi%C3%A9tica_do_Afeganist%C3%A3o

Aparentemente esta guinada na posição dos EUA também está ligada ao aprendizado com a derrota na Guerra do Vietnam. Em todo caso é um conjunto de mudanças que se implementam em 1979 e que estão relacionadas às mudanças na configuração do mundo pela aceitação da descolonização como configuração dum novo mundo.

As formas de luta democráticas insurrecionais atuais apoiadas pelos EUA e pela UE também não são parte desta guinada de 79? Aliás, a URSS não foi derrubada por formas de luta similares? Os povos e os países se libertaram da URSS. A democracia se afirmou como valor universal. Gramsci passou a ser respeitado pelo Departamento de Estado dos EUA. A China já vinha apoiando uma política internacional inspirada nos direitos humanos desde a aproximação com os EUA da época de Nixon, mas ela foi inspiradora e um suporte inigualável para a administração Carter, a qual, por sua vez, foi derrotada em 79/80.

Mas, o mais importante aspecto resultante destas mudanças não é que as lutas políticas entre a esquerda e a direita passaram a ser desenvolvidas sob a forma de verdadeiras lutas de classes nas ruas?! Além disso, quem parece ter tido a iniciativa ou estar levando vantagem na atualidade é a direita e isto precisamente porque a esquerda está demasiado marcada pelo estatismo da antiga URSS e por lutas de libertação que se fazem mais por lutas de guerrilhas e/ou de exércitos armados do que por movimentos insurrecionais com muito maior participação direta da população do que aqueles que são quase que exclusivos dos combatentes das guerrilhas ou dos exércitos, quer dizer, que são quase exclusivos dos revolucionários profissionais. Um PT, que nasceu próximo das características mais insurrecionais e se institucionalizou mais próximo das características dum aparato profissional, se encontra na atualidade suspeitando da existência de movimentos de tipo insurrecional que podem colocá-lo em xeque. Com tal suspeita parece tender para fortalecer ainda mais o tal aparato institucional profissional da democracia representativa que tende a consolidar uma democradura, logo, a enfraquecer a democracia mais viva e direta; isso, pelo menos, é o que indica a opção do PT pela legislação antiterrorista.

Tais mudanças ou guinadas na história não estão abrindo a possibilidade de as tais formas de lutas mais conhecidas como lutas de classes se desenvolverem sob estas suas formas próprias a tal ponto que num futuro próximo entrará em foco a luta de classes dentro do capitalismo desenvolvido que pode desembocar na saída efetivamente libertadora do capitalismo?! É por aí que se encontra o caminho/a via para a emancipação humana/para a emancipação do sistema capitalista, quer dizer, é por meio desta luta que se faz através da afirmação da democracia direta, viva e não-profissional como um modo de ser em desenvolvimento que se chega à saída efetiva do sistema capitalista?! Ou não?! Tudo isto não passa de ilusão e delírio?!

Porque e para que a história faz estas ironias?! Estes ziguezagues?!

AINDA SOBRE AS TAIS LUTAS DE CLASSES

As lutas de classes são uma tradição da Roma Antiga, onde elas se desenvolvem em torno da propriedade fundiária, sem esquecer o caso de Spartacus, onde uma revolta de gladiadores se transforma numa revolta de escravos que, sem condições de conduzir uma guerra civil, busca fugir de Roma e acaba massacrada.

As lutas de classes são formas democráticas de luta e nos EUA sob a forma de lutas pelos direitos civis elas acabaram com as leis racistas e influenciaram as lutas contra o sistema do Apartheid da África do Sul, já antes os primeiros formuladores da desobediência civil eram estadunidenses (Thoreau, Emerson) e influenciaram a luta de Gandhi pela Independência Nacional da Índia.

Estas formas de luta democráticas eram pacifistas sob Thoreau, Emerson, Gandhi e Mandela, ainda que com este durante um tempo tenha sido guerreira/beligerante. Mas, na Europa dos séculos XVIII, XIX e parte do XX eram formas imediatas de luta que, em geral, chegavam à violência dos confrontos nas ruas dos manifestantes com a repressão. Elas ameaçavam tomar o poder do Estado e efetivamente o tomaram na revolução francesa.

A legitimidade democrática parece ser a principal característica desta forma de luta. Ela se mostra uma luta nascida das ruas, nascida do povo e, desse modo, coerente e correspondente àquela legitimidade expressa pela democracia nos EUA: poder do povo, para o povo e pelo povo. Marx considerava que a mais perfeita emancipação política tinha sido feita nos EUA, que os EUA eram a forma mais perfeita de Estado emancipado, de democracia. E a esta emancipação política do capitalismo ele opunha a emancipação humana, mas adotava a via da luta de classes, que caracterizava a emancipação política e a conquista da democracia dos EUA, como caminho para chegar à passagem para a emancipação humana e mesmo à fase de transição da chamada ditadura revolucionária do proletariado na qual o direito igual, que é o direito burguês ou capitalista, é aplicado do modo mais completo possível e, assim, deixa vir à tona a injustiça, quer dizer, a necessidade de superar o direito igual burguês e de desenvolver o direito desigual proletário de modo que as diferenças individuais ou dos indivíduos são reconhecidas e compensadas e, desta maneira, são impedidas de virem a ser diferenças de classes, ainda que as diferenças individuais tenham livre desenvolvimento.

É preciso saber quem, partindo das mesmas condições, demonstra uma capacidade maior e quem, partindo de condições iguais, demonstra uma capacidade menor. Este último demonstra ter uma necessidade maior ou desigual em relação aos demais, enquanto o primeiro demonstra ter uma necessidade menor ou desigual em relação aos demais. É mais "pobre" individualmente quem tem menor capacidade e maior necessidade em relação aos demais. É mais "rico" natural ou individualmente quem possui maior capacidade e menor necessidade em relação aos demais.

Aquele que é mais capaz natural ou individualmente muda as circunstâncias antes dos demais ou, pelo menos, lidera a mudança das circunstâncias porque é capaz de aprender mais rápida e facilmente e, por isso, pode até mesmo ensinar aos demais. Aquele que é menos capaz natural ou individualmente muda as circunstâncias depois dos demais ou, pelo menos, precisa ser liderado na mudança das circunstâncias porque é capaz de aprender mais lenta e dificilmente e, por isso, precisa mesmo ser ensinado pelos demais. Então, de acordo com a terceira tese de Marx sobre Feuerbach, são os homens que mudam as circunstâncias (os mais capazes mais rápida e facilmente/os menos capazes mais lenta e dificilmente) e o educador precisa ser educado (não basta ser o mais capaz, o que aprende mais facilmente porque também é preciso ser o mais capaz de ensinar, porque é preciso ser educado). O mais capaz tende a ser o mudador ou transformador e o menos capaz tende a ser o mudado ou educado/transformado pela educação. A prática revolucionária é a coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação. Os mais capazes, a capacidade média e os menos capazes. A capacidade média ou geral desempenha o papel decisivo e só há mudança das circunstâncias quando ela coincide com a atividade dos mais capazes e, por sua vez, só há mudança da educação quando ela coincide com a mudança dos menos capazes.

Na sociedade capitalista os trabalhadores são aqueles que ficam continuamente conectados à mudança das circunstâncias sem que a percebam como resultante deles próprios e sim como resultante dos meios de produção e da ciência e tecnologia que os fez, ou seja, sentem que a mudança das circunstâncias é feita pela educação científica incorporada tecnologicamente nos meios de produção e não pela atividade dos trabalhadores. Uma ditadura revolucionária do proletariado seria a implantação do poder dos trabalhadores não meramente de trabalhar porque isto é o que fazem no capitalismo, mas sim um poder sobre os meios de produção, logo, um poder sobre a educação científica e sobre a tecnologia a partir do poder dos trabalhadores de efetivar realmente ou não a mudança das circunstâncias pela tecnociência. Ou seja, através do poder de trabalhar, melhor, de por em prática ou não as mudanças feitas pelos meios de produção, pela educação tecnocientífica, que os trabalhadores irão promover as mudanças do mundo, quer dizer, as mudanças da educação tecnocientífica, dos meios ou máquinas de produção, do meio ou máquina do Estado. Por um lado, os trabalhadores retomam o poder de mudar as circunstâncias que está com os meios de produção tecnocientíficos e, por outro lado, os trabalhadores dissolvem o poder de mudar as circunstâncias dos meios de produção tecnocientíficos.

Ainda existe um universo a ser esclarecido.



Não tenho para quem escrever - (texto completo) - [1]



Não tenho para quem escrever, melhor, com quem me corresponder. Eu quando escrevo para alguém eu não escrevo para alguém, acabo fazendo algo do tipo escrever "para todo mundo e ninguém". E, até agora, não encontrei quem também escreva "para todo mundo e ninguém". Solidão. Parece que preciso aprender a escrever "para mim e alguém". Com efeito, escrever para se corresponder com todo mundo é escrever para se corresponder com ninguém, porque, afinal, quem é todo mundo? Como definir quem é todo mundo? E, por sua vez, quem é ninguém? Ninguém?! Ninguém, em princípio, é nenhum alguém, é o vácuo. E todo mundo? Todo mundo, em princípio, é qualquer um, é um pleno indefinido por ser uma pluralidade de plenos, um excesso. Ninguém corresponde ao vazio e todo mundo corresponde a totalidade dos átomos. Ninguém e todos os alguéns se correspondem, um pela falta e o outro pelo excesso. São duas abstrações absolutas. Ninguém é o espaço abstrato absoluto e todo mundo é o tempo abstrato absoluto. Mim, em princípio, é um eu, é um pleno definido. Alguém, em princípio, é um eu, é um pleno definido, melhor, é um outro eu, é um outro pleno definido. São duas concreções relativas. Mim é espaço-tempo concreto relativo e alguém é outro espaço-tempo concreto relativo. Mim e alguém se referem a algo comum, melhor, a algo que é o mesmo e que é diferente. Mim e alguém se relacionam, se correspondem. Então preciso aprender a escrever para mim para poder me corresponder com alguém ou aprender a escrever para alguém para que possa se corresponder comigo.

Aí está presente o problema do totalitarismo (todo mundo) e do niilismo (ninguém), quer dizer, o problema da desmedida ou loucura presente na pretensão de ser ação universal (escrever para todo mundo e ninguém). Também está presente o mecanicismo, melhor, a teoria física da mecânica.


Aí está presente também o problema do liberalismo (mim) e do comunismo (alguém), quer dizer, o problema da justa medida ou saúde presente na pretensão de ser ação singular (escrever para mim e alguém). Por sua vez, também está presente o vitalismo, melhor, a teoria física da relatividade.


Todo mundo: simples átomos indefinidos se entrechocando na guerra de todos contra todos.


Ninguém: o simples vazio entre os átomos indefinidos.


Mim: simples átomo definido em si mesmo (e para si mesmo) como indivíduo-força humana de trabalho.


Alguém: encontro de outro simples átomo definido (em si mesmo e) para si mesmo como outro indivíduo-força humana de trabalho em associação, sociedade, comunidade, num campo ou mundo exclusivo do encontro dos átomos entre si, quer dizer, do átomo com o (outro) átomo, encontro consigo mesm-o-utro.


Mim é um ser individual e sua consciência. Alguém também é um outro ser individual e sua consciência. Logo, na verdade, é no encontro de Mim com Alguém, de um ser individual humano com outro ser individual humano que vem à tona a consciência, tanto de Mim quanto de Alguém - aliás, talvez, por isso mesmo que seja con sciência no sentido de com ciência, ou seja, a ciência é sempre de alguma realidade, quer dizer, é sempre com ciência/consciência -, de modo que ensimesmados e parasimesmados Mim e Alguém como meros seres existentes correspondem a Todo mundo e Ninguém e só quando outro dentro de si e outro em frente de si Mim e Alguém como simples consciências essenciais correspondem a Mim e Alguém.


Donde resulta que se quero escrever para Mim e Alguém, quero correspondência, então preciso começar escrevendo para Mim na qualidade de consciência essencial e não de mero ser existencial, o que significa me relacionar com o outro invisível dentro de mim e o outro visível na percepção de mim. Ou seja, antes de tudo preciso ser Mim e não Todo Mundo para poder vir a me corresponder com Alguém e não com Ninguém.


Ser Mim: o que é? Ser com ciência/consciência. Ora, ser com ciência é ser afirmativo, melhor, é ser com serenidade, ser com coragem, ser com sabedoria.


Como ser Mim? Fazendo ciência de Mim, melhor, escrevendo para Mim. Porque só assim poderei vir a escrever para Alguém, ou seja, antes é preciso ser Alguém-Mim para poder escrever para Ti-Alguém-Alguém.