sábado, 30 de maio de 2015

Sentidos e destinos trágicos: Emancipação e Menoridade








"Monstro, criatura, escravo, prisioneiro etc. é essa minha condição e eu a detesto e eu a adoro porque dela não tenho saída. Kant queria que o homem usasse seu raciocínio para sair da menoridade e mostrava que por toda parte ele não encontrava senão indivíduos que recusavam e negavam o uso do raciocínio para sair da menoridade, ele descreve seu encontro com diferentes profissionais (pastor, padeiro, mercador/comerciante etc.) que recusam o uso do raciocínio, mas diz também que encontrou um que aceita o seu uso do raciocínio para sair da menoridade desde que ele o obedeça (o governante/também chamado de déspota esclarecido e que era o soberano iluminista). Pois, até hoje, é esse soberano/tirano/ditador iluminista (Édipo-Tiranos, como mostrou Foucault em 'A Verdade E As Formas Jurídicas', era o título original da tragédia de Sófocles) que permanece o modelo dos revolucionários, mas, não como a tragédia ensinou com a atitude de renúncia/abdicação do poder feita por Édipo, nem como Marx apreendeu ser a trajetória do príncipe proletariado: tomada do poder, estabelecimento da ditadura que destrói a máquina do estado e renúncia/abdicação/fim do estado/da ditadura/da tirania e instituição da liberdade da comunidade humana." 



Tudo indica que há um erro gritante na primeira frase grifada e em negrito acima porque a história recente diz precisamente o contrário, porque o modelo revolucionário da revolução russa realiza efetivamente a atitude de renúncia/abdicação do poder feita por Édipo gritando sim para o que a tragédia ensinou. Com efeito, o fim da URSS só ocorreu quando os poderosos da URSS assumiram a renúncia ou abdicação do poder tal qual Édipo fez. No entanto, a abdicação de Édipo deixou as instituições existentes intactas de modo que o Estado que existia com Édipo no poder continuou a ser o Estado existente mas sem Édipo no exercício do poder. No entanto, na atualidade, parece existir uma interpretação da segunda frase grifada e em negrito destacada acima porque o resultado do modelo revolucionário russo corresponde não à realização efetiva dessa segunda frase e sim à realização efetiva duma interpretação dessa segunda frase acima, porque se não realizou efetivamente a tomada do poder, o estabelecimento da ditadura que destrói a máquina do estado e renúncia/abdicação/fim do estado/da ditadura/da tirania e instituição da liberdade da comunidade humana, então, realizou sim a tomada do poder, o estabelecimento da ditadura que expande e desenvolve a máquina do estado como totalidade e a renúncia/abdicação/fim da máquina do estado como totalidade da sociedade e redução da máquina do estado à parte dirigente da sociedade/fim da ditadura e redução do poder aos limites da democracia liberal/fim da tirania econômica da totalidade do estado e redução da economia ao poder e exercício do liberalismo do mercado; noutras palavras, esta interpretação que efetivamente se realizou corresponde à frase presente na 'Ideologia Alemã', segundo a qual, "a implantação do comunismo em países de desenvolvimento econômico atrasado tem por resultado o retorno avançado do capitalismo". Então, o aprendizado foi sim o daquilo que a tragédia ensinou, aliás, talvez, precisamente por isso, Nietzsche tenha entrado em alta na época que esta lição se realizou efetivamente. O comunismo real ou realmente existente não passa de um instrumento, meio ou ferramenta para implantar, gestar e dar à luz o capitalismo desenvolvido e não o tão desejado e propagandeado comunismo. E acredito não haver dúvidas de que o ocorrido foi uma tragédia, já que a longa duração no tempo bem como os diversos sofrimentos e momentos de heroísmo e de vilania não deixam espaço para o riso duma comédia, exceto, para a alegria dos dionisíacos que é feita da tragédia!!!


Kant propunha a saída da menoridade pelo uso da razão via emancipação política, aliás, ele observava que na sua época, a do iluminismo, apenas o déspota esclarecido aceitava sua proposta de saída da menoridade pelo uso da razão, mas, acrescentava que este déspota esclarecido, tendo consigo o poder das armas ou de polícia, exigia a obediência. E Kant desenvolveu sua filosofia do uso da razão prática da liberdade como filosofia do uso da razão prática do dever, ou seja, a liberdade imaginada e desejada pela razão no seu uso ou na sua prática se realiza efetivamente como dever. Desse modo, o homem que adota a filosofia da razão prática da liberdade de Kant é um homem praticante do seu dever, um homem realizador de tarefas. A prática da liberdade se dá sob determinadas condições de possibilidade de modo que o homem consciente do uso prático de sua liberdade é aquele consciente de que sua prática e seu uso no cumprimento do dever é a realização efetiva da liberdade. Mas, ele entende de forma séria, honesta e trágica, ou seja, não se trata para ele da mera obediência às condições exteriores de possibilidade de realização da liberdade, quer dizer, não se trata para ele apenas de se dobrar e obedecer o que quer impor uma vontade exterior e sim de realizar sua vontade interior, de efetivá-la apesar das condições exteriores mostrarem que ele está agindo exteriormente de forma obediente e não livre. É algo assim: Ele estabelece livremente no seu íntimo a prática da liberdade tal como Édipo estabeleceu livremente a condenação ao ostracismo para aquele responsável pela Peste de Tebas, ou seja, Kant estabeleceu livremente agir de forma a não prejudicar ninguém, quer dizer, de modo a não prejudicar aos demais nem a si mesmo, logo, estabeleceu agir livremente de acordo com a lei moral, de acordo com o cumprimento do dever moral, enquanto que Édipo, ao descobrir que ele é o responsável pela Peste de Tebas, cumpre a condenação que havia estabelecido antecipadamente, renuncia e expulsa a si mesmo de Tebas. 


Quase ninguém mais estabelece livremente no seu íntimo a prática da liberdade como a prática do dever na objetividade, quase ninguém estabelece a prática da liberdade no seu íntimo como a prática que se realiza na objetividade como dever, como tarefa, quer dizer, como um trabalho, uma produção de realidade efetiva na objetividade. O que não significa, de modo algum, que muitos não estabeleçam suas práticas das liberdades como tarefas, como trabalhos, como produções, como deveres. A diferença é que as tarefas, trabalhos, produções, deveres destes últimos se reduzem a meros meios que são abandonados e substituídos por outros ou usados e praticados de forma meramente exterior, cínica e farsante, quer dizer, sem que se considere, nesses abandonos e substituições, nenhuma consequência para o uso e a prática da liberdade íntima, nenhuma tragédia. Pelo contrário, apenas se considera que o uso pragmático de diferentes tarefas, trabalhos, produções, deveres tem por resultado a obtenção e fruição de maior liberdade para fazer tais usos instrumentais, apenas se considera o uso pragmático de instrumentos ou meios de produção como obtenção e fruição de maior liberdade íntima. Então quanto maior o uso pragmático de tudo e de todos como meios ou instrumentos de produção maior a liberdade pragmática do usuário.


Esta interpretação do uso pragmático de todos os meios para a realização de seus fins, esta interpretação do uso pragmático e sem limites de todos os meios para a realização sem limites da sua liberdade pragmática difere muito do projeto de Kant. Mais do que isso é antagônica. Porém, eis o problema: Esta atitude que trata tudo e todos como menores em nada contribui para a saída da menoridade, pelo contrário, esta atitude não percebe que trata seu próprio agente ou autor como quem não sai da menoridade porque, afinal, ela não age de maneira que liberta os demais ou que cria a liberdade para os demais e sim de maneira que simplesmente usa os demais ou que cria a manipulação ou a escravidão dos demais e, por isso mesmo, ela também não cria para seu próprio autor/agente a realização efetiva de sua liberdade íntima e sim a realização efetiva do seu escravismo íntimo, de modo que a liberdade do escravocrata, do senhor nada mais é do que a escravidão do escravizado, do escravo, melhor, dos manipulados, dos usados, dos reduzidos a objetos. Esta interpretação abandona e substitui a dimensão íntima de desenvolvimento do agente/do autor, aquela que se ocupa com a sua própria atividade, com sua própria capacitação, com sua própria força de trabalho para realizar tarefas, trabalhos, produções, deveres, ou seja, precisamente aquilo a que Kant se mantinha fiel visando sua efetivação real, seu crescimento ou desenvolvimento efetivamente real. Esta interpretação abandona e substitui o principal, o próprio princípio da libertação, ou seja, o uso da razão para sair da menoridade, para crescer ou se desenvolver e alcançar a maioridade, cujo significado é o uso e a prática responsável da sua própria liberdade/razão, logo, não é o uso irresponsável dos demais.


O pior de tudo é que aqueles que se apresentam e se pretendem revolucionários que lutam contra a exploração do homem pelo homem são precisamente aqueles que há tempos fazem precisamente o contrário recorrendo a esta interpretação do uso pragmático de tudo e de todos como meios instrumentais de produção da "liberdade".


Com uma tal concepção quem quer sair da menoridade? Quem quer alcançar a maioridade e ser responsável por si mesmo, por seu uso da razão/da liberdade? Com uma tal concepção, que é a que vemos por toda parte, ninguém quer sair da menoridade e, ilusoriamente, todos consideram que a prática do crime é a prática da liberdade.


O primeiro passo para sair da menoridade, para caminhar rumo à maioridade, para rumar para a libertação humana é admitir que, por todo lado, nos encontramos na menoridade e que precisamos cuidar de nossa energia para tarefa, força de trabalho, capacidade de produção, vontade de dever, ou seja, de nosso real desenvolvimento íntimo e subjetivo, de nosso real crescimento que faz a real passagem da menoridade para a maioridade.


O "jeitinho brasileiro", o "gosto de levar vantagem em tudo", o "para os inimigos a lei e para os amigos tudo", o "pragmatismo", o "revolucionário na prática", a "prática na real", enfim, tudo que se reduz ou é reduzido à menoridade, ao puro e simples egoísmo, à eterna e imutável lucratividade da natureza humana não expressa em parte alguma qualquer possibilidade real de emancipação humana da menoridade ou de emancipação da menoridade humana.


Será que é por isso que a libertação do capitalismo só é possível em países de capitalismo avançado? Será que esta libertação que se identifica inteiramente com a menoridade ou escravidão é "normal e inerente" aos países de capitalismo atrasado? Ou será que, hoje, mesmo em países de capitalismo avançado todo processo de libertação e revolução está inteiramente identificado como processo de livre desenvolvimento da menoridade humana ou da humanidade menor?! O sucesso do terrorismo por toda parte tem alguma relação com a ideia da menoridade ou da escravidão, segundo a qual a prática do crime é a prática da liberdade? Relação com a ideia de ser a liberdade um crime, de ser a liberdade a prática do crime e de ser impossível a liberdade ou a libertação sem a prática do crime?! 




quinta-feira, 28 de maio de 2015

Libertação: Permanência na Menoridade Política e Social!!!




Monstro, criatura, escravo, prisioneiro etc. é essa minha condição e eu a detesto e eu a adoro porque dela não tenho saída. Kant queria que o homem usasse seu raciocínio para sair da menoridade e mostrava que por toda parte ele não encontrava senão indivíduos que recusavam e negavam o uso do raciocínio para sair da menoridade, ele descreve seu encontro com diferentes profissionais (pastor, padeiro, mercador/comerciante etc.) que recusam o uso do raciocínio, mas diz também que encontrou um que aceita o seu uso do raciocínio para sair da menoridade desde que ele o obedeça (o governante/também chamado de déspota esclarecido e que era o soberano iluminista). Pois, até hoje, é esse soberano/tirano/ditador iluminista (Édipo-Tiranos, como mostrou Foucault em "A Verdade E As Formas Jurídicas", era o título original da tragédia de Sófocles) que permanece o modelo dos revolucionários, mas, não como a tragédia ensinou com a atitude de renúncia/abdicação do poder feita por Édipo, nem como Marx apreendeu ser a trajetória do príncipe proletariado: tomada do poder, estabelecimento da ditadura que destrói a máquina do estado e renúncia/abdicação/fim do estado/da ditadura/da tirania e instituição da liberdade da comunidade humana. Bom, Kant propunha a saída da menoridade pelo uso da razão, quer dizer, propunha a emancipação ou libertação política ou saída da menoridade. Marx pretendia ir além propondo a saída da menoridade social e não mais tão só da menoridade política, de modo que os praticantes de diferentes atividades profissionais, em especial, os praticantes do chamado trabalho manual ou do trabalho em geral fizessem uso da razão e saíssem não só da menoridade política, mas, principalmente, da menoridade social acabando com o Estado.


O que querem os menores infratores? Sair da menoridade?! Não! Querem o uso de sua menoridade como justificativa de sua irresponsabilidade na prática dos crimes. E os índios? Também são considerados inimputáveis como os que se encontram na menoridade criminal. O mesmo ocorre com os loucos que também são considerados inimputáveis. O mesmo ocorre ainda com os interditos. Nenhum desses pode ser punido com o crime de responsabilidade, isto é, com aquele crime que faz o impedimento dos presidentes da república. Tampouco podem sofrer as mesmas penas que um criminoso "de maior". O que quer a direita? O fim da menoridade criminal ou, pelo menos, sua redução e isto para afirmar o quê? O uso do raciocínio pelo menor?! Ou a obediência?! Querem o mesmo para os índios, o fim de sua inimputabilidade. Muito provavelmente querem o mesmo para os loucos e os interditos. O que quer a esquerda? Continuidade das leis de modo que se criem condições educacionais para que os menores usem seu raciocínio; que os índios tenham suas terras demarcadas nas quais podem valer o uso do raciocínio à altura de sua cultura; que os loucos convivam em ambientes sociais que compreendam a diferença deles em relação aos normais; que os interditos tenham espaço para usar e praticar os graus de raciocínio que alcançam.


Na prática menores, índios, loucos, interditos querem usar/praticar sua irresponsabilidade, sua diferença, sua liberdade em relação aos demais. Se alguém consegue o diagnóstico de louco, então se sente livre para cometer homicídio, quero dizer que existe quem queira o diagnóstico de louco ou interdito para poder cometer o homicídio que deseja cometer.


Quem quer sair da menoridade? Os menores não querem e procuram aproveitar ao máximo sua menoridade para a prática livre do crime. Os maiores querem a aliança com os menores para que os crimes possam ser assumidos e cometidos pelos menores. Mas, quando se tornam maiores mesmo, o que querem? Se livrar das punições e penas de seus crimes e não propriamente da prática dos crimes. Fazer um pé de meia para se afastar da vida do crime via abertura de empreendimentos que legalizem seus crimes e os deixem em paz com a justiça. O que fazem os maiores normais? Pelo que se vê no mundo político e empresarial usam o poder e as leis para praticar crimes, em especial, os de corrupção. Obediência às leis é um faz de conta, desde as do trânsito até às do direito à vida. O uso do raciocínio não é para sair da menoridade, se menoridade for entendida como incapacidade de deixar de olhar para seu próprio umbigo, mas, ao contrário, é usado pelos ditos normais para desobedecer a tudo e fazer apenas o que é do seu interesse e em seu próprio interesse. Aproximação de uma conclusão: Vivemos em condições sociais e culturais que por toda parte só querem efetivamente a menoridade, talvez, porque também só querem o seu egoísmo, o seu êxito, a sua ascensão de classe; de todo modo, o que se quer é ficar à sombra da lei, à sombra do Estado, é um mundo às sombras da lei e do Estado iluministas/iluminados. O cinismo, a comédia e a tragédia de um mundo de leis e regras que permanece de acordo com a máxima: "As regras ou leis existem para serem quebradas!" porque isto é considerado como a conquista da maioridade, da liberdade, do uso livre do raciocínio/da razão. Vivemos no obscurantismo iluminista ou no iluminismo obscurantista.



domingo, 10 de maio de 2015

El Tiempo de Olívia e a Certeza Sensível de Hegel


       El Tiempo



Es que pasa y pasa...
Sigue pasando
¡Y ya pasó! 
En este pasar me encuentro 
pasando, pasando y ya pasó...


Dueña de mi andar en el pasadizo que abarco
en la nada de ayer con el vacío de hoy
abrazo el aire que como el paso
ventila el camino por el que paso
y que ya pasó...  


Irrumpe. Hace y deshace caminos
parte de la nada y transita  
por el vacío lleno de vida
en cada instante que llega y que pasa
y que ya pasó...


Sequencia de un principio, ¡nada lo atrapa!
Pero él, a todo traspasa 
dejando trazas que luego se apagan
viaja y viaja sigue pasando y pasa    
y ya pasó...

                                                OLÍVIA - nombre de mujer y ninã - Olívia de Fátima Henriques                                                                 primera edición: octubre, 2014                                                                                                                         ISBN  obra independiente: 978-956-358-153-9                                                                                              facebook.com/olivia.defatimahenriques                                        https://www.facebook.com/pages/Un-caf%C3%A9-con-Ol%C3%ADvia/1472739489656347




Esta poesia resume o primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito de Hegel. É o tempo que faz este primeiro capítulo, mesmo que a figura do saber que intitula o capítulo, a “Certeza Sensível”, queira precisamente o contrário, queira ser atemporal, eterna.

Certeza sensível é meramente uma figura criada por Hegel? Não. A certeza sensível é o primeiro comportamento do saber e que se renova cotidianamente, sempre que a consciência desperta de seu sono para a experiência imediata da vigília, quer dizer, sempre que a consciência acorda de sua inconsciência para a experiência imediata da consciência. Então, a certeza sensível é a experiência imediata da consciência e, nesse sentido, desde que exista, apareça ou se experimente a consciência também existe, aparece e se experimenta a certeza sensível. Assim, a certeza sensível não é uma figura inventada por Hegel, mas sim uma figura inseparável da experiência da consciência e que surge ou nasce com o surgimento ou nascimento da consciência, incluindo aí o surgimento ou nascimento da consciência que ocorre diariamente após o período de inconsciência ou sono.


Saindo da inconsciência e entrando na consciência se inicia a experiência, melhor, a crença da certeza sensível, ou seja, se experimenta a sensação de certeza sensível da consciência, sensação que não se experimenta ou que se perde quando no estado de sono ou de inconsciência. No estado de sono ou inconsciência não se tem certeza sensível das imagens, acontecimentos e mesmo de todo o conteúdo presente no estado de sono e de inconsciência. Aquilo que acontece ou as imagens do estado de sono e de inconsciência é incerto e é insensível, quer dizer, pode ser qualquer imagem ou acontecimento impossíveis de ocorrer no estado de vigília e de consciência porque neste último só ocorre o que é possível, o que é certo e sensível.


Claro que eu espero que se concorde com esta conclusão. Qual? A de que a certeza sensível é efetivamente a primeira figura a aparecer na experiência da consciência. Porque isso? Só para garantir que Hegel faz sua obra partindo desde o início do aparecimento do seu objeto de estudo, ou seja, desde o despertar da consciência.


Não leio alemão e das traduções a que tive acesso a mais recente é a brasileira (2ª edição, 1992 – sem data da 1ª edição, Vozes, Petrópolis, Brasil) e a mais antiga é a francesa (novembro de 1983, edição nº? – ano da 1ª edição: 1941, Éditions Montaigne, Paris, França), sendo a mexicana situada entre as duas (sexta reimpressão, 1985 – primeira edição em espanhol, 1966, Fondo de Cultura Econômica, México, D.F.). Pois bem, tanto a brasileira quanto a mexicana parecem seguir a francesa na hora de traduzir o título do primeiro capítulo da Fenomenologia.


Vejamos. A tradução francesa para “I. Die sinnliche Gewißheit oder das Diese und das Meinen” que literalmente é “I. A certeza sensível ou o isto e o opinar/significar” foi traduzido por “I. La certitude sensible, ou le ceci et ma visée du ceci”, tradução acompanhada da seguinte nota: [1] “Das Diese und das Meinen”. On traduit ordinairemente “Meinung” par opinion; mais dans ce texte il était bien difficile de traduire le verbe “meinen” par opiner. Hegel oppose “meinen” à “wahrnehmen”. La certitude sensible vise un ceci qu’elle ne prend pas effectivement. Nous avons traduit “meinen” par viser et “Meinung” par avis. Hegel rapproche “mein” et “meinen”, suggérant ainsi le caractere subjectif de la certitude sensible; pour conserver l’idée, nous avons traduit “meinen” dans le titre par “ma visée du ceci”. Traduzindo: Se traduz ordinariamente “Meinung” por opinião; mas neste texto é bem difícil de traduzir o verbo “meinen” por opinar. Hegel opõe “meinen” à “wahrnehmen” (perceber). A certeza sensível visa um isto que ela não toma (pega, apropria) efetivamente. Nós traduzimos “meinen” por visar et “Meinung” por avis (que em português, dentre outros, pode ser: avistado, aviso, opinião). Hegel aproxima “mein” (meu) e “meinen”, sugerindo assim o caráter subjetivo da certeza sensível; para conservar a ideia nós traduzimos “meinen” no título por “minha (meu) mira (pontaria, visão, alvo) do isto”.


A tradução mexicana é “I. La certeza sensible, o el esto y la suposición” e a brasileira é “I. A certeza sensível ou: o Isto e o Visar”, nesse sentido, a brasileira parece seguir mais a francesa. O sentido para o “das Meinen” parece ser o de algo que é da certeza sensível “mein” (meu) apenas de forma subjetiva, algo que ela quer que seja, que ela opina que é ou que ela deseja, almeja, visa, supõe, mira, alveja que seja. Então, o sentido é de algo que ela objetivamente faz, no sentido ordinário da tradução do alemão “das Meinen”, quer dizer, opinar, significar. Ora, significar é algo próprio da linguagem e os franceses conhecem isto melhor do que outros, graças a Ferdinand de Saussure, que deu início à fundamentação científica da linguística e tornou famoso o par significante/significado. A certeza sensível quer o isto, o significado, mas só consegue/alcança o visar, o significante. Jean Hyppolite informa na sua nota que Hegel opõe “meinen” a “wahrnehmen” ou opinar/significar a perceber, quer dizer, significante a significado e também hipótese a efetivo, ou seja, a certeza sensível também é parte integrante da ciência que parte da hipótese para chegar ao efetivo, por isso, também que, na história da filosofia grega, a certeza sensível dos pré-socráticos parte de diferentes hipóteses, opiniões, visões ou visadas da Natureza, ou seja, cada um dos pré-socráticos parte da certeza sensível do ser da coisa sensível, portanto, estão todos sensivelmente certos de que ela é e, nesse sentido, a concepção de Parmênides (“o ser é e não pode não ser”) resume as diferentes hipóteses ou exemplos dos pré-socráticos, sendo ela mesma o exemplo que não quer ser exemplo. No entanto, o que é vivido, o resultado da experiência da certeza sensível está melhor expresso pelos Mistérios eleusinos do comer o pão e do beber o vinho de Ceres e de Baco, bem como pelo fogo de Heráclito, porque pela afirmação do consumo ambos negam o ser da certeza sensível e, assim, afirmam o seu não-ser, logo, o ser e o não-ser da certeza sensível e, desse modo, o fim da certeza sensível e a passagem para outra figura da consciência desperta, precisamente aquela que, com maior grau de vigília, quer o efetivo e que é o perceber, o qual dará origem ao segundo capítulo da Fenomenologia, cujo título é precisamente: a percepção ou a coisa e a ilusão.


Agora, tentemos fazer algo mais difícil. Tentemos fazer um resumo da experiência que Hegel nos faz viver ao ler “A certeza sensível ou o Isto e o Visar”. Não nos parece ser nada fácil resumir o que Hegel faz. Porque o que Hegel faz é uma reportagem da certeza sensível. E fazer uma tal reportagem não é nada fácil. O que mostra a grande habilidade de Hegel como filósofo, mestre ou professor: ele nos faz viver a experiência da consciência porque ele nos reporta à experiência da consciência. E isto ele faz em todos os capítulos da Fenomenologia do Espírito, cujo subtítulo é Ciência da Experiência da Consciência. Pois bem, vamos tentar um resumo da reportagem que Hegel faz da certeza sensível ou nos reportar a um resumo da certeza sensível feita por Hegel.


Primeiro, é bom lembrar que a tradução francesa divide o capítulo em três partes, mas sem dar nenhum título a cada uma delas, já a mexicana, também divide em três partes, mas dá título a cada uma delas; finalmente, a brasileira, não faz nenhuma divisão nem intitula nenhuma parte interna do capítulo “A certeza sensível ou o Isto e o Visar”.


Segundo, os intertítulos da tradução mexicana podem servir de auxílio na hora de tentar reportar um resumo da “certeza sensível”.


Terceiro, não há nenhum caminho para fazer a reportagem que não seja o caminhar na reportagem de Hegel da “certeza sensível”, ou seja, é o tal do “caminhante não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.


O capítulo “A certeza sensível ou: o Isto e o Visar” começa com três parágrafos e, na tradução mexicana, é seguido por oito parágrafos do primeiro subtítulo: [1. O objeto desta certeza], já o segundo subtítulo: [2. O sujeito desta certeza], é composto por dois parágrafos, finalmente, [3. A experiência desta certeza] é o subtítulo final que, como o inicial, também está integrado por oito parágrafos. Ao todo são vinte e um parágrafos.


A tentativa, então é de reportar ao resumo de cada um desses blocos de parágrafos.


No jornalismo tudo principia pela informação e o que os redatores e editores querem do repórter é o informe, é, como diz Hegel, “o saber do imediato ou de lo que es. Devemos proceder também de forma imediata ou receptiva, nada mudando assim na maneira como ele se oferece, e afastando do nosso apreender o conceituar.”


O que apreendemos da certeza sensível ou do informe é o objeto na sua plenitude, sem a interferência de nenhum conceito ou preconceito de nossa parte e, assim, essa certeza ou informe aparece como o mais rico conhecimento e de riqueza infinita por ser conhecimento de um “objetão” sem qualquer limite para a sua totalidade nem para qualquer fragmento ou parte da sua plenitude. Mais ainda, o informe ou a certeza sensível aparece como o saber mais verdadeiro porque do “objetão” nada ainda deixou de lado e o tem pleno diante de si. Porém, de fato, a certeza sensível ou o informe é para si a verdade mais abstrata e pobre porque se limita a saber do objeto o que dele apreende sem nada mais conceituar ou acrescentar, ou seja, só sabe que ele é. “A consciência está presente aí nesse informe ou nessa certeza como puro Eu, ou seja, Eu só estou ali como puro este, e o objeto, igualmente apenas como puro isto”. Ou seja, “Eu, este, estou certo desta coisa; não porque Eu, enquanto consciência, me tenha desenvolvido, e movimentado de muitas maneiras o pensamento. Nem porque a Coisa de que estou certo, conforme uma multidão de características diversas, seja um rico relacionamento em si mesma, ou uma multiforme relação para com outros.” Não, a verdade apreendida pelo informe ou pela certeza sensível é apenas que o objeto ou a coisa é, apenas o ser da coisa sem nenhum outro acréscimo do Eu que, com seu conceituar, acabe com a pureza do informe ou da certeza sensível. O Eu está no informe ou na certeza sensível como puro testemunho da Coisa, de modo que o que importa e o que sabe é o ser da Coisa, é o singular saber do singular ser.


No entanto o ser da coisa que no informe efetivo ou na certeza sensível efetiva é testemunhado ou apreendido não é o ser em geral da coisa mas sim um exemplo do seu ser em geral, mesmo assim, este exemplo precisa considerar que o objeto ou a coisa é o essencial e que o saber ou o Eu é o inessencial, porque “o objeto é o verdadeiro e a essência: ele é, tanto faz que seja conhecido ou não. Permanece mesmo não sendo conhecido – enquanto o saber não é, se o objeto não é.”


[1. O objeto desta certeza]


E é o informe ou a certeza sensível que precisa responder sobre o objeto. Precisa responder fazendo um exame do objeto para verificar se ele corresponde à essência, à verdade que o informe ou a certeza sensível, como conceito, garante que é: o objeto é, seja conhecido ou não, já o saber não é, se o objeto não é. Para verificar esta correspondência do objeto ao conceito é preciso que o próprio informe ou a própria certeza sensível pergunte:


 “Que é o isto? Se o tomamos no duplo aspecto do seu ser, como o agora e o aqui, a dialética que tem nele vai tomar uma forma tão inteligível quanto o ser mesmo. À pergunta: que é o agora? respondemos, por exemplo: o agora é a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza sensível (desse informe) basta uma experiência simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade nada perde por ser anotada, nem tampouco porque a guardamos {o mesmo ocorre com uma foto}. Vejamos de novo, agora, neste meio-dia, a verdade anotada {fotografada}; devemos dizer, então, que se tornou vazia.

O agora que é noite foi conservado, isto é, foi tratado tal como se ofereceu, como um essente (ser); mas se mostra, antes, como um não-essente (não-ser). O agora mesmo, bem que se mantém, mas como um agora que não é noite. Também em relação ao dia que é agora, ele se mantém como um agora que não é dia, ou seja, mantém-se como um negativo {curioso: estamos acostumados a chamar o registro fotográfico de negativo, mas, aqui nem a foto da noite nem a foto do dia são o negativo e sim o agora que não cessa de ser não-ser, nem dia nem noite mas é a sucessão de dia-noite, a sucessão de fotos – o que escapa de ser fotografado ou do filme? – que é o negativo} em geral.


“Portanto, esse agora que se mantém não é um imediato, mas um mediatizado, por ser determinado como o que permanece e se mantém porque outro – ou seja, o dia e a noite – não é {costumamos chamá-lo de tempo}. Com isso, o agora é tão simples ainda como antes: agora; e nessa simplicidade é indiferente àquilo que se joga em torno dele. Como o dia e a noite não são o seu ser, assim também ele não é o dia e a noite; não é afetado por esse seu ser-Outro.


“Nós denominamos um universal um tal Simples que é por meio da negação; nem isto nem aquilo – um não-isto -, e indiferente também a ser isto ou aquilo. O universal, portanto, é de fato o verdadeiro da certeza sensível (do informe).”


Um jornal (diário) é composto disto, de um agora, de um dia (e noite) – que, em italiano, é giorno, jornal é giornale e jornalismo é giornalismo, e correspondem a jour, journal e journalisme em francês - que permanece e “que é por meio da negação” “e indiferente a ser isto (dia) ou aquilo (noite). O universal, portanto, é de fato o verdadeiro do informe”. Mas também uma jornada de trabalho, melhor, um salário é composto disto, de um agora abstrato e pobre: sem forma/informe.


Enunciamos também o sensível como um universal. O que dizemos é: isto, quer dizer, o isto universal; ou então: ele é, ou seja, o ser em geral. Com isso, não nos representamos (reproduzimos/significamos), de certo, o isto universal ou o ser em geral, mas enunciamos o universal; ou por outra, não falamos pura e simplesmente tal como nós o ‘visamos’ (‘focamos’/‘significamos’) na certeza sensível. Mas, como vemos, o mais verdadeiro é a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso visar (focar/significar), e porque o universal é o verdadeiro da certeza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro, está pois totalmente excluído que possamos dizer o ser sensível que ‘visamos’ (‘focamos’/‘significamos’).


“O mesmo sucede com a outra forma do isto, com o aqui. O aqui, por exemplo, é a árvore. Quando me viro, essa verdade desvaneceu, e mudou na oposta: o aqui não é uma árvore {foto}, mas antes uma casa {outra foto}. O próprio aqui {suceder ou sucessão ‘de fotos’} não desvanece, mas é algo que fica no desvanecer da casa, da árvore etc.; e indiferente quanto a ser casa ou árvore {costumamos chamá-lo de espaço}. Assim o isto se mostra de novo como simplicidade mediatizada, ou como universalidade.


“Portanto, o puro ser permanece como essência dessa certeza sensível, enquanto ela mostra em si mesma o universal como a verdade do seu objeto; mas não como imediato, e sim como algo a que a negação e a mediação são essenciais. Por isso, não é o que ‘visamos’ (‘focamos’/‘significamos’) como ser, mas é o ser com a determinação de ser abstração ou o puro universal. Nossovisar’ (‘focar’/‘significar’) para o qual o verdadeiro da certeza sensível não é o universal, é tudo quanto resta frente a esses aqui e agora vazios e indiferentes.


“Comparando a relação, em que o saber e o objeto surgiram primeiro, com a relação que estabelecem, uma vez chegados a esse resultado, [vemos que] a relação se inverteu. O objeto, que deveria ser o essencial, agora é o inessencial da certeza sensível; isso porque o universal, no qual o objeto se tornou, não é mais aquele que deveria ser essencialmente para a certeza sensível; pois ela agora se encontra no oposto, isto é, no saber que antes era o inessencial. Sua verdade está no objeto como meu objeto, ou seja, no ‘visar’ [meinem/Meinen] (meu/significar): o objeto é porque Eu sei dele. Assim, a certeza sensível foi desalojada do objeto, sem dúvida, mas nem por isso foi ainda suprassumida, se não apenas recambiada ao Eu. Vejamos o que a experiência nos mostra sobre sua realidade.”


[2. O sujeito desta certeza]


Antes o repórter só tinha importância por trazer ou portar a certeza sensível ou o informe do objeto, mas este se mostrou um universal e a singularidade deve estar com o sujeito, com o Eu, com o testemunho subjetivo do repórter ou com o foco ou significação do repórter. Logo, é o seu saber que conta, de modo que ele passa a ser valorizado e a aparecer na reportagem tal qual um colunista ou cronista.


“Agora, pois, a força de sua verdade está no Eu, na imediatez do meu ver, ouvir, etc. O desvanescer do agora e do aqui singulares, que visamos, é evitado porque Eu os mantenho. O agora é dia porque Eu o vejo; o aqui é uma árvore pelo mesmo motivo. Porém a certeza sensível experimenta nessa relação a mesma dialética que na anterior. Eu, este, vejo a árvore e afirmo a árvore como o aqui; mas um outro Eu vê a casa e afirma: o aqui não é uma árvore, e sim uma casa. As duas verdades têm a mesma credibilidade, isto é, a imediatez do ver, e a segurança e afirmação de ambos quanto a seu saber; uma porém desvanece na outra.


“O que nessa experiência não desvanece é o Eu como universal: seu ver, nem é um ver da árvore, nem o dessa casa; mas é um ver simples que embora mediatizado pela negação dessa casa etc., se mantém simples e indiferente diante do que está em jogo: a casa, a árvore. O Eu é só universal, como agora, aqui, ou isto, em geral. ‘Viso’ (‘significo’/‘foco’), de certo, um Eu singular, mas como não posso dizer o que ‘viso’ (‘foco’/‘significo’) no agora, no aqui, também não o posso no Eu. Quando digo: este aqui, este agora, ou um singular, estou dizendo todo este, todo aqui, todo agora, todo singular. Igualmente quando digo: Eu, este Eu singular, digo todo Eu em geral; cada um é o que digo: Eu, este Eu singular.


“Quando se apresenta à ciência, como pedra de toque, - diante da qual não poderia de modo algum sustentar-se, - a exigência de deduzir, construir, encontrar a priori (ou seja como for) o que se chama esta coisa ou um este homem, então seria justo que a exigência dissesse qual é esta coisa, ou qual é este Eu que ela ‘visa’ (‘foca’/‘significa’); porém é impossível dizer isso.”


[3. A experiência desta certeza]


“A certeza sensível experimenta, assim, que sua essência nem está no objeto nem no Eu, e que a imediatez nem é a imediatez de um nem a de outro, pois o que ‘viso’ (‘foco’/‘significo’)em ambos é, antes, um inessencial. Ora, o objeto e o Eu são universais: neles o agora, o aqui e o Eu – que ‘viso’ – não se sustêm, ou não são. Com isso chegamos a [esse resultado de] pôr como essência da própria certeza sensível o seu todo, e não mais apenas um momento seu – como ocorria nos dois casos em que sua realidade tinha de ser primeiro o objeto oposto ao Eu, e depois o Eu. Assim, é só a certeza sensível toda que se mantém em si como imediatez, e por isso exclui de si toda oposição que ocorria precedentemente.


“Portanto não interessa a essa imediatez pura o ser-Outro do aqui como árvore, que passa para um aqui que é não-árvore, nem o ser-Outro do agora como dia, que passa para um agora que é noite; nem um outro Eu com algo outro por objeto. A verdade dessa imediatez se mantém como relação que-fica-igual a si mesma, que entre o Eu e o objeto não faz distinção alguma de essencialidade e inessencialidade; por isso também nela em geral não pode penetrar nenhuma diferença.


“Eu, este, afirmo assim o aqui como árvore, e não me viro de modo que o aqui se tornaria para mim uma não-árvore. Também não tomo conhecimento de que um outro Eu veja o aqui como não-árvore, ou que Eu mesmo em outra ocasião tomasse o aqui como não-árvore, e o agora como não-dia. Eu, porém, sou um puro intuir; eu, quanto a mim, fico nisto: o agora é dia; ou então neste outro: o aqui é árvore. Também não comparo o aqui e o agora um com o outro, mas me atenho firme a uma relação imediata: o agora é dia.”

Então o que interessa é a foto de cada reportagem, é o testemunho, o foco de cada repórter.


“Já que essa certeza sensível não quer mais dar um passo na nossa direção – quando lhe fazemos notar um agora que é noite ou um Eu para quem é noite -, vamos a seu encontro e fazer com que nos indique o agora que é afirmado. Temos de fazer que nos indique, pois a verdade dessa relação imediata é a verdade desse Eu, que se restringe a um agora ou a um aqui. A verdade desse Eu não teria a mínima significação se a captássemos posteriormente ou ficássemos distante dela; pois lhe teríamos suprassumido a imediatez que lhe é essencial. Devemos, portanto, penetrar no mesmo ponto do tempo ou do espaço, mostrá-lo a nós, isto é, fazer de nós [um só e] o mesmo com esse Eu que-sabe com certeza. Vejamos assim como está constituído o imediato que nos é indicado.


“O agora é indicado: - este agora. Agora: já deixou de ser enquanto era indicado. O agora que é, é um outro que o indicado. E vemos que o agora é precisamente isto: enquanto é, já não ser mais. O agora, como nos foi indicado, é um que-já-foi – e essa é sua verdade; ele não tem a verdade do ser. É porém verdade que já foi. Mas o que foi é, de fato, nenhuma essência [Kein Wesen/gewesen]. Ele não é; e era do ser que se tratava.”


A foto só é insuficiente porque quando indicada/revelada ela mesma já não é mais. Melhor seria uma transmissão ininterrupta de televisão.


Vemos, pois, nesse indicar só um movimento e seu curso é o seguinte:


1)      indico o agora, que é afirmado como o verdadeiro; mas o indico como o-que-já-foi, ou como suprassumido. Suprassumo a primeira verdade, e:


2)      agora afirmo como segunda verdade que ele foi, que está suprassumido.


3)      Mas o-que-foi não é. Suprassumo o ser-que-foi ou o ser-suprassumido – a segunda verdade; nego com isso a negação do agora e retorno à primeira afirmação de que o agora é.


O agora e o indicar do agora são assim constituídos que nem o agora nem o indicar são um Simples imediato, e sim um movimento que contém momentos diversos. Põe-se este, mas é um Outro que é posto, ou seja, o este é suprassumido. Esse ser-Outro, ou suprassumir do primeiro, é, por sua vez, suprassumido de novo, e assim retorna ao primeiro. No entanto, esse primeiro refletido em si mesmo não é exatamente o mesmo que era de início, a saber, um imediato; ao contrário, é propriamente algo em si refletido ou um simples, que permanece no ser-Outro o que ele é: um agora que é absolutamente muitos agoras; e esse é o verdadeiro agora, o agora como simples dia que tem em si muitos agoras [ou] horas. E esse agora – uma hora – é também muitos minutos, e esse agora igualmente muitos agoras, e assim por diante {tal qual conta um relógio}.


Assim, o indicar é ele mesmo, o movimento que exprime o que em verdade é o agora, a saber: um resultado ou uma pluralidade de agoras rejuntados; e o indicar é o experimentar que o agora é [um] universal.


O informe é inesgotável no jornalismo porque o seu agora é inesgotável e sua sucessão inesgotável tal qual os agoras do relógio e o agora que é aquele que consome os outros agoras, ele ficou conhecido acima como o negativo ou universal e à maneira do fogo seu ser é consumo do ser pelo não ser.


O aqui indicado, que retenho com firmeza, é também um este aqui que de fato não é um este aqui, mas um diante e atrás, um acima e abaixo, um à direita e à esquerda. O acima, por sua vez, é também este múltiplo ser-Outro, com acima, abaixo etc. O aqui que deveria ser indicado desvanece em outros aquis; mas esses desvanecem igualmente. O indicado, o retido, o permanente, é um este negativo, que só é tal porque os aquis são tomados como devem ser, mas nisso se suprassumem, constituindo um complexo simples de muitos aquis.
                          

O aqui que foi 'visado', seria o ponto; mas ele não é. Porém ao ser indicado como essente, o indicar mostra que não é um saber imediato, e sim um movimento, desde um aqui 'visado', através de muitos aquis, rumo ao aqui universal; e, como o dia é uma pluralidade simples de agoras, esse universal é uma multiplicidade simples de aquis.”


O aqui-ponto não é localizável e o aqui universal é o negativo e indeterminado à maneira do princípio de indeterminação da física contemporânea do dito espaço quântico.


“É claro que a dialética da certeza sensível não é outra coisa que a simples história de seu movimento ou de sua experiência; e a certeza sensível mesma não é outra coisa que essa história apenas. A consciência natural por esse motivo atinge sempre esse resultado, que nela é o verdadeiro, e disso faz experiência; mas torna sempre a esquecê-lo também, e começa de novo o movimento desde o início.


“É, pois, de admirar que se sustente contra essa experiência, como experiência universal – mas também como afirmação filosófica, e de certo modo como resultado do cepticismo – que a realidade ou o ser das coisas externas, enquanto estas ou enquanto sensíveis, tem uma verdade absoluta para a consciência. Uma afirmação dessas não sabe o que diz, não sabe que diz o contrário do que quer dizer.


“A verdade do isto sensível para a consciência tem de ser uma experiência universal; mas o que é experiência universal é, antes, o contrário. Qualquer consciência suprassume de novo uma verdade do tipo: o aqui é uma árvore ou: o agora é meio-dia, e enuncia o contrário: o aqui não é uma árvore, mas uma casa. A consciência também suprassume logo o que é afirmação de um isto sensível, nessa afirmação que suprassume a primeira. Assim, em toda certeza sensível só se experimenta, em verdade, o que já vimos: a saber, o isto como um universal, - o contrário do que aquela afirmação garante ser a experiência universal.”


A verdade e a certeza das coisas sensíveis que obtivemos foi o não-ser, o universal, a sucessão sem fim do negativo.



“Quanto à essa alusão à experiência universal, que se nos permita antecipar uma consideração atinente à prática. Nesse sentido pode-se dizer aos que asseveram tal verdade e certeza da realidade dos objetos sensíveis, que devem ser reenviados à escola inferior da sabedoria, isto é, aos mistérios de Eleusis, de Ceres e de Baco, e aprender primeiro o segredo de comer o pão e beber o vinho. De fato, o iniciado nesses mistérios não só chega à dúvida do ser das coisas sensíveis, mas até ao seu desespero. O iniciado, consuma, de uma parte, o aniquilamento dessas coisas, e, de outra, vê-las consumarem seu aniquilamento. Nem mesmo os animais estão excluídos dessa sabedoria, mas antes, se mostram iniciados no seu mais profundo; pois não ficam diante das coisas sensíveis como em si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais e as consomem. E a natureza toda celebra como eles esses mistérios revelados, que ensinam qual é a verdade das coisas sensíveis.”


O fogo ou o consumo contínuo do ser pelo não-ser.


“Entretanto, conforme notamos anteriormente, os que colocam tal afirmação dizem imediatamente o contrário do que ‘visam’ – fenômeno esse que é talvez o mais capaz de levar à reflexão sobre a natureza da certeza sensível. Falam do ser-aí de objetos externos, que poderiam mais propriamente ser determinados como coisas efetivas, absolutamente singulares, de todo pessoais, individuais; cada uma delas não mais teria outra que lhe fosse absolutamente igual. Esse ser-aí teria absoluta certeza e verdade. ‘Visam’ este pedaço de papel no qual escrevo isto, ou melhor, escrevi; mas o que ‘visam’ não dizem. Se quisessem dizer efetivamente este pedaço de papel que ‘visam’ – e se quisessem dizer [mesmo] – isso seria impossível, porque o isto sensível, que é ‘visado’, é inatingível pela linguagem, que pertence à consciência, ao universal em si. Ele seria decomposto numa tentativa efetiva para dizê-lo; os que tivessem começado sua descrição não a poderiam completar, mas deveriam deixá-la para outros, que no fim admitiriam que falavam de uma coisa que não é. ‘Visam’, pois, de certo, este pedaço de papel, que aqui é totalmente diverso do que se falou acima; falam, porém, de coisas efetivas, objetos sensíveis ou externos, essências absolutamente singulares etc. Quer dizer: é só o universal que falam dessas coisas. Por isso, o que se chama indizível não é outro que o não-verdadeiro, não-racional, puramente ‘visado’.”




Quando o que se diz de uma coisa é apenas que é uma coisa efetiva, um objeto externo, então ela é enunciada somente como o que há de mais universal, e com isso se enuncia mais sua igualdade que sua diferença com todas as outras. Quando digo: uma coisa singular, eu a enuncio antes como de todo universal, pois uma coisa singular todas são; e igualmente, esta coisa é tudo que se quiser. Determinando mais exatamente, como este pedaço de papel, nesse caso, todo e cada papel é um este pedaço de papel, e o que eu disse foi sempre e somente o universal.


“O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o ‘visar’, de torná-lo algo diverso, não o deixando assim aceder à palavra. Mas se eu quiser vir-lhe em auxílio indicando este pedaço de papel, então faço a experiência do que é, de fato, a verdade da certeza sensível: eu o indico como um aqui que é um aqui de outros aquis, ou que nele mesmo é um conjunto simples de muitos aquis, isto é, um universal. Eu o tomo como é em verdade, e em vez de saber um imediato, eu o apreendo verdadeiramente: [eu o percebo]. *

*Trocadilho em alemão: nehme wahr/wahrnehmen.



Ainda não fiquei satisfeito porque quase que só citei, que só reproduzi o texto de Hegel. Não sei se passei o que experimentei e que foi algo similar à fotografia. Já sei que a fotografia estava nos primórdios - e só surgiu mesmo anos depois da publicação da fenomenologia -, mas a outra realidade de Hegel era a imprensa. E ao repórter é dito que vá e busque os fatos, a informação, a certeza sensível, aquilo que pedem ao repórter é que esteja certo sensivelmente de algo, que informe que algo pura e simplesmente é.


Hegel é um leitor de jornais que compara esta atividade de leitura de jornais à oração diária que era feita na sociedade feudal anterior ao aparecimento da imprensa burguesa. E o que faz um jornal - a palavra tem relação com giorno/jour (dia) e com jornada, antigamente um jornaleiro era um diarista e não tão só alguém que trabalha com jornal - é informar.


Informar é dar um informe, dar uma certeza ou certificação sensível. Certeza sensível é por onde Hegel começa a Fenomenologia do Espírito, talvez, antes, na época da oração, o Espírito fosse encontrado numa "Numenologia do Espírito" - númeno (coisa em si) era o termo de Kant para aquilo que é oposto a fenômeno (coisa para nós) e a que temos acesso direto pelos sentidos, enquanto que o númeno é inacessível aos sentidos e apenas conjecturado pela fé, a qual, em Kant vai ser a razão prática, ou seja, aquilo em que se acredita ser o númeno virá à existência por meio da razão prática, quer dizer, por meio da produção/criação da razão na prática, então a prática é criação/produção do espírito, do que se encontra suposto na razão -, logo, Hegel parte da mesma dita razão pura que tem acesso direto pelos sentidos às coisas tais quais são para nós, aos ditos fenômenos.


A imprensa por sua vez está voltada para a informação obtida pelos sentidos, pela certeza sensível dos fenômenos. E aí ela quer saber do imediato, daquilo que é. Mas aquilo que ela sabe do imediato é muito pobre porque sabe apenas que ele é, que a coisa sensível é certeza sensível, ou seja, é e ponto. A informação da imprensa exigida do repórter é a seguinte: nos dê o máximo de informação do objeto e o mínimo de informação do repórter, de preferência, só a informação de um testemunho fiel do objeto. Porque isso? Porque o objeto é o essencial da informação. E sem ele não existe a informação. Já sem o repórter a informação continua lá, então o objeto é a fonte da informação e o repórter é apenas a coleta nesta fonte.


Então, Hegel pede que se observe o objeto do mesmo modo que a imprensa pede ao repórter que se fixe na observação do objeto. E Hegel escolhe o seguinte exemplo do observar: "agora é noite", então anota e guarda esta informação e a lê depois quando é "meio-dia" e descobre o vazio desta informação. Aí faz o mesmo com o "aqui é árvore" porque basta se virar para verificar que "aqui é casa", quer dizer, que o "aqui" tal qual o "agora" permanecem mas como "não noite"/"não meio-dia" e "não-árvore"/"não-casa", de modo que o agora ou o aqui - que permanece e que é - é um não isto nem aquilo, é um negativo, um não-ser e a isto, ao negativo ou não-ser, Hegel chama de um universal.


Talvez a imprensa diga para o repórter que isto, o negativo ou não-ser, é a informação universal que constitui um jornal, por isso que ele vive sendo impresso como o agora ou o aqui que permanece, que é jornalismo (jour-nalisme). No entanto, nesse momento ocorre também um problema com este se ater ao agora ou ao aqui que permanece e que é porque o agora e o aqui, que permanece e que é, é aquele que é testemunhado pelo repórter, ou seja, a informação passou a ser dependente do testemunho dele e é ele quem informa e assegura que agora ou aqui é isto ou aquilo. Desse modo é o Eu, como testemunho e portador da informação do agora e do aqui que permanece, que se torna essencial como fonte do objeto que é, quer dizer, é o Eu quem garante que o objeto ou a informação é. No entanto, se pedimos que o Eu, o repórter, indique o que é e ele diz “agora é...” ou “aqui é...”, então notamos para ele que o “agora é..” ou “o aqui é...” já não é mais o mesmo agora nem o mesmo aqui porque já passaram na temporalidade e porque o aqui na espacialidade tem um a frente e atrás, um acima e abaixo, um lado direito e outro lado esquerdo, de modo que o ponto que deveria ser localizado não é e é mais como uma nuvem do que como um ponto, um localizado, ou seja, é como na física contemporânea focalizado como partícula quântica ou "nuvem".


Mas o observador, o Eu, permanece sendo a fonte que assegura todas essas alterações do agora e do aqui, logo, Eu me torno ainda mais importante para a obtenção da informação do jornal. No entanto Eu sou Eu também é dito por todo mundo de modo que pode ser qualquer um, logo, um não-Eu singular, melhor, todo Eu singular é qualquer um, é um não-Eu singular, portanto, é um negativo, um não-ser, um universal. Então, o objeto é universal, o Eu é universal, ambos são negativos, são não-seres, são não-sendo, melhor, são universais como a linguagem é universal de modo que quando digo agora, aqui, Eu é o universal que digo. Então se quero captar a informação, para além ou sob a linguagem, preciso me ater à conjunção entre o objeto e o Eu, me ater ao agora que é uma pluralidade de agora, ao aqui que é uma pluralidade de aqui, ao Eu que é uma pluralidade de Eu. Desse modo preciso passar da certeza sensível para a percepção sensível, ou seja, não me atenho mais a um simples negativo e sim a um todo negativo que vai/está sendo, me atenho a um complexo que é uma conjunção e que é, tal qual a linguagem, um universal, um negativo e, desse modo, via linguagem, nunca conseguirei outra informação que não seja o universal, o negativo.


Mas como é essa a informação que obtive e como continuo querendo obter a informação daquilo que efetivamente é e isso, até o momento, é essa conjunção, então se me atenho a essa conjunção, a considerar essencial tanto o objeto quanto o sujeito, mais ainda, a considerar essencial a observação do universal, do negativo para verificar se aí posso vir a encontrar o positivo, o singular, então, desse modo, passo da certeza sensível que fala para a percepção que cala e observa o todo.


Concluo que Hegel termina a certeza sensível passando o bastão para a percepção sensível, para outro capítulo da Fenomenologia do Espírito. Veja que ninguém tirou uma foto e que na época de Hegel a fotografia ainda estava em gestação, não tinha nascido ainda. No entanto, o negativo é aquilo que Hegel mostra como a essência do real. Mas ele só conta com a memória e a contagem do tempo (hora, minuto, segundo etc.) e a localização no espaço (em frente, detrás, acima, abaixo, à esquerda, à direita etc.), ou seja, o negativo ou universal com o qual ele conta é a linguagem e não ainda uma foto, o negativo daquilo que vem a resultar numa foto "positiva". E mesmo assim é a um negativo que ele se atém, quer dizer, a observar detidamente a sucessão de agora/aqui/Eu ou o todo em curso, quase como se fosse a vigilância duma máquina de fotografar, melhor, duma máquina de filmar, duma filmadora para conseguir captar a singularidade do sensível. Mesmo assim ainda não existe máquina fotográfica nem de filmar na época de Hegel nem no capitulo chamado de “A Percepção ou: a coisa e a ilusão” da Fenomenologia do Espírito. Noto apenas que este último capítulo vai ser sucedido pelo capítulo “Força e Entendimento; Fenômeno e Mundo Supra-sensível” quase como se o supra-sensível fosse o processo de produção do negativo fotográfico. E este terceiro capítulo aparece como o último da “Consciência” e é sucedido, claro, pelo quarto capítulo, que é o primeiro capítulo da “Consciência de Si”, que é intitulado de "A verdade da certeza de si mesmo", como se fosse a revelação do negativo e como se tal revelação ocorresse no laboratório da consciência de si e aí, nelaviesse a ser a manifestação do "positivo" - na certeza de si mesmo e não na certeza sensível.